O escritor italiano Antonio Scurati, premiado por uma biografia de Mussolini embasada em farta documentação, que examina de 1919 a 1925, do ...
O escritor italiano Antonio Scurati, premiado por uma biografia de Mussolini embasada em farta documentação, que examina de 1919 a 1925, do agitador socialista até o líder fascista, escreve de sua janela milanesa o fim de uma era. Como a cidade dos cinquentões de tênis que nos brindou com a invenção do happy hour terá que encarar e amadurecer diante da trágica epidemia.
Como posso convencer a minha mulher de que, enquanto olho pela janela, estou a trabalhar? - perguntava-se Joseph Conrad no início do século passado. Eu, em vez disso, pergunto-me: como posso explicar à minha filha que, quando olho pela janela, vejo o fim de uma era? A era em que ela nasceu, mas que não conhecerá, a era do mais longo e distraído período de paz e prosperidade desfrutado na história da Humanidade.
Vivo em Milão, até ontem a mais evoluída, rica e brilhante cidade de Itália, uma das mais desejadas do mundo. A cidade da moda, do design, da Expo. A cidade do aperitivo, que deu ao mundo o Negroni Sbagliato e a happy hour e que hoje é a capital mundial do Covid-19, a capital da região que, sozinha, soma trinta mil contágios confirmados e três mil mortos. Uma taxa de mortalidade de 10 por cento, os caixões empilhados à frente dos pavilhões dos hospitais, uma pestilência vaporosa que paira sobre as torres da sua catedral como sobre as cidades amaldiçoadas das antigas tragédias gregas.
Como posso convencer a minha mulher de que, enquanto olho pela janela, estou a trabalhar? - perguntava-se Joseph Conrad no início do século passado. Eu, em vez disso, pergunto-me: como posso explicar à minha filha que, quando olho pela janela, vejo o fim de uma era? A era em que ela nasceu, mas que não conhecerá, a era do mais longo e distraído período de paz e prosperidade desfrutado na história da Humanidade.
Vivo em Milão, até ontem a mais evoluída, rica e brilhante cidade de Itália, uma das mais desejadas do mundo. A cidade da moda, do design, da Expo. A cidade do aperitivo, que deu ao mundo o Negroni Sbagliato e a happy hour e que hoje é a capital mundial do Covid-19, a capital da região que, sozinha, soma trinta mil contágios confirmados e três mil mortos. Uma taxa de mortalidade de 10 por cento, os caixões empilhados à frente dos pavilhões dos hospitais, uma pestilência vaporosa que paira sobre as torres da sua catedral como sobre as cidades amaldiçoadas das antigas tragédias gregas.
As sirenes das ambulâncias tornaram-se na banda sonora dos nossos dias; as nossas noites são atormentadas por homens adultos que choramingam no sono:
Se, neste momento, olhar pela janela, vejo uma pobre loja de conveniência gerida com admirável diligência por imigrantes cingaleses [gentílico do Sri Lanka]. Até ontem, era uma singular anomalia neste bairro semi-central e, ao seu modo elegante, uma nota dissonante. Hoje é um lugar de peregrinação. Na fila para o pão em frente às suas vitrinas despidas, vejo homens e mulheres que até ontem o desdenhavam por não ter a sua marca preferida de farinha.
“O que é, sentes-te bem?”; “Nada, não é nada, volta a dormir”.Milhares de amigos, parentes e conhecidos seus tossem até cuspir sangue, sozinhos, fora de todas as estatísticas e sem qualquer assistência, nas camas dos seus estúdios decorados por arquitetos de renome.
Se, neste momento, olhar pela janela, vejo uma pobre loja de conveniência gerida com admirável diligência por imigrantes cingaleses [gentílico do Sri Lanka]. Até ontem, era uma singular anomalia neste bairro semi-central e, ao seu modo elegante, uma nota dissonante. Hoje é um lugar de peregrinação. Na fila para o pão em frente às suas vitrinas despidas, vejo homens e mulheres que até ontem o desdenhavam por não ter a sua marca preferida de farinha.
Ficam, apoiados pela disciplina do desânimo, a um metro de distância uns dos outros, ao mesmo tempo ameaçadores e ameaçados, com máscaras improvisadas, feitas de pedaços de tecido com os quais, até ontem, protegiam as plantas exóticas do seu roof garden, gazes desfiadas penduradas nos seus rostos com a melancolia mole dos restos de uma era acabada.
Olho-os da janela do meu estúdio enquanto escrevo. Observo-os enquanto o número de mortes sobe para quatro mil, enquanto a abcissa do contágio cresce exponencialmente, enquanto seguro a respiração para não inalar o ar do tempo.
Olho-os e compadeço-me deles porque foram a geração mais sortuda da história humana, mas, depois, tocou-lhes viver o fim do seu mundo justamente quando começaram a ficar demasiado velhos para esperar um mundo vindouro.
Porém, terão de fazê-lo, e o farão, estou seguro. Vão ter de imaginar o mundo que têm sido obrigados a experimentar nesses dias: um mundo que se questiona sobre como educar os próprios filhos, sobre como preservar um ar respirável, sobre como cuidar de si e dos outros.
Uma era acabou, outra começará. Amanhã. Hoje estamos na fila para o pão. Hoje os jornais titulam: resiste, Milão! E Milão resiste.
Lanço um último olhar pela janela sobre os meus contemporâneos dos cinquenta anos, os meus concidadãos milaneses, os meus rapazes repentinamente envelhecidos:
Fonte: Corriere Della Sera
[Visto no Brasil Acadêmico]
Vejo estes homens e estas mulheres tristes, incongruentes consigo mesmos. Olho-os. Não tenho nenhuma intenção de os diminuir ou de troçar deles.
São homens e mulheres adultos, contudo por cima das máscaras mostram o olhar assustado das crianças carentes. Chegaram totalmente impreparados ao seu encontro com a história e, no entanto, precisamente por este motivo, são homens e mulheres corajosos. Fizeram parte do pedaço mais abastado, protegido, longevo, bem vestido, nutrido e cuidado da Humanidade a pisar a face da Terra e, agora, na casa dos cinquenta, estão na fila do pão.
A sua aprendizagem na vida foi uma longa aprendizagem da irrealidade televisiva. Tinham vinte anos quando assistiram, a partir das suas salas de estar, à primeira guerra da história humana ao vivo na televisão, trinta quando foram alvejados através dos televisores pelo terror midiático, quarenta quando a odisseia dos condenados da terra chegou nas praias das suas férias. Todos encontros fatídicos que não poderiam perder.
As grandes cenas da sua existência foram consumidas em eventos midiáticos, foram guerreiros de sala, banhistas nas praias dos imigrantes, veteranos traumatizados pelas noites passadas em frente à televisão. E agora estão na fila do pão.
A sua infância foi uma mangá japonês, a sua juventude uma festa de piscina — lembram-se? Era sábado à noite e íamos a uma festa; era sempre sábado à noite e íamos sempre a uma festa —, a sua idade adulta é um tributo a uma trindade insossa e feroz: o frenesi do trabalho, os verões no outlet, o sublime do spa.
Viveram bem, melhor do que qualquer outra pessoa, mas quanto mais viviam mais inexperientes eram na vida: nunca conheceram o terror da guerra, nunca foram tocados pelo sentimento trágico da existência, nunca viveram uma questão sobre o seu lugar no universo.
As grandes cenas da sua existência foram consumidas em eventos midiáticos, foram guerreiros de sala, banhistas nas praias dos imigrantes, veteranos traumatizados pelas noites passadas em frente à televisão. E agora estão na fila do pão.
A sua infância foi uma mangá japonês, a sua juventude uma festa de piscina — lembram-se? Era sábado à noite e íamos a uma festa; era sempre sábado à noite e íamos sempre a uma festa —, a sua idade adulta é um tributo a uma trindade insossa e feroz: o frenesi do trabalho, os verões no outlet, o sublime do spa.
Viveram bem, melhor do que qualquer outra pessoa, mas quanto mais viviam mais inexperientes eram na vida: nunca conheceram o terror da guerra, nunca foram tocados pelo sentimento trágico da existência, nunca viveram uma questão sobre o seu lugar no universo.
E agora, aos cinquenta anos, com os cabelos já brancos, o abdômen distendido e a ânsia que lhes incomoda os pulmões, estão na fila do pão.Turistas compulsivos, correram o mundo sem nunca sair de casa e agora a sua casa marca para eles os limites do mundo; sofreram quase só dramas interiores e agora o drama da história catapulta-os para a linha de fogo de uma pandemia global; têm uma casa na praia e um celular de última geração, mas agora estão na fila do pão; tiveram mais cães do que filhos e agora arriscam as suas vidas para levar o seu poodle para urinar.
Olho-os da janela do meu estúdio enquanto escrevo. Observo-os enquanto o número de mortes sobe para quatro mil, enquanto a abcissa do contágio cresce exponencialmente, enquanto seguro a respiração para não inalar o ar do tempo.
Olho-os e compadeço-me deles porque foram a geração mais sortuda da história humana, mas, depois, tocou-lhes viver o fim do seu mundo justamente quando começaram a ficar demasiado velhos para esperar um mundo vindouro.
Porém, terão de fazê-lo, e o farão, estou seguro. Vão ter de imaginar o mundo que têm sido obrigados a experimentar nesses dias: um mundo que se questiona sobre como educar os próprios filhos, sobre como preservar um ar respirável, sobre como cuidar de si e dos outros.
Uma era acabou, outra começará. Amanhã. Hoje estamos na fila para o pão. Hoje os jornais titulam: resiste, Milão! E Milão resiste.
Lanço um último olhar pela janela sobre os meus contemporâneos dos cinquenta anos, os meus concidadãos milaneses, os meus rapazes repentinamente envelhecidos:
Como são grandes e patéticos com os seus tênis de corrida e as suas máscaras cirúrgicas.Tenho piedade, compreendo-os, compadeço-me deles. Dentro de alguns segundos estarei na fila junto deles.
Fonte: Corriere Della Sera
[Visto no Brasil Acadêmico]
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