Cada episódio mais ou menos equivale a uma ou mais rapsódias de Odisseia, uma cena, uma hora, um órgão do corpo humano, uma arte, uma cor, u...
Cada episódio mais ou menos equivale a uma ou mais rapsódias de Odisseia, uma cena, uma hora, um órgão do corpo humano, uma arte, uma cor, um símbolo e uma técnica narrativa. São perto de mil páginas condensadas em um único dia: 16 de junho de 1904, o chamado “Bloom’s day”, ou simplesmente “Bloomsday”
É dessa forma que começa uma das obras-primas do escritor irlandês James Joyce, Ulysses – na versão original e, respectivamente, nas traduções de Antonio Houaiss, Bernardina da Silveira Pinheiro e Caetano W. Galindo –, uma das maiores paródias literárias de todos os tempos: a história do judeu húngaro Leopold Bloom em sua odisseia de quase 18 horas por Dublin, capital da Irlanda. Ao tomar como base a Odisseia, de Homero – o livro-fundador por excelência da cultura ocidental –, e recriar o arquétipo da “volta para casa”, Joyce constrói o romance-símbolo do projeto moderno do século XX. Para tanto, fundiu as 24 rapsódias do clássico grego em dezoito episódios e transformou o guerreiro Ulisses no medíocre redator de anúncios publicitários Leopold Bloom; sua mulher, a doce e determinada Penélope, na moderníssima, sensual e descolada cantora de ópera Molly; e seu filho, o corajoso Telêmaco, no indeciso intelectual Stephen Dedalus. Dessa forma, nasceu Ulysses, o “romance para acabar com todos os romances”, uma vez que Joyce esgotou praticamente todas as formas de narrativa existentes até então (monólogo interior, catecismo, dialética, tumescência e intumescência, narrativa sênior, catecismo, teatro etc.) para recriar, em um único dia, toda a experiência do homem contemporâneo.
A história é mais ou menos a seguinte: transtornado pela suspeita de que Molly o está traindo com o produtor musical Blazes Boylan, Bloom sai de casa às 8 horas da manhã, enquanto sua esposa ainda está dormindo. Volta pouco tempo depois para fritar rim de porco e servi-lo como café da manhã para ela e também deixar algumas correspondências que pegou no correio. Tem uma conversa cheia de entrelinhas com Molly e, depois, sai, novamente, e anda errante por vários locais de Dublin, cruzando com pessoas com as quais queria evitar o contato, bêbados, poetas, jornalistas, prostitutas, ateus, excêntricos e, por fim, com o “órfão” Stephen Dedalus, que acaba sendo “adotado” por ele lá pelas duas horas da madrugada do dia seguinte. Pelo caminho, monólogos interiores, blasfêmias, (muita) escatologia, momentos sublimes, piadas infames, reflexões sobre a vida e a morte e um roteiro fidedigno da capital irlandesa relatados em dezoito episódios divididos em três partes (conforme a tradução de Caetano W. Galindo): “Telemaquia”, “Odisseia” e “Nostos”. Na primeira parte, os episódios são “Telêmaco”, “Nestor” e “Proteu”; na segunda, “Calipso”, “Lotófagos”, “Hades”, “Éolo”, “Lestrigões”, Cila e Caribde”, “Rochedos errantes”, “Sereias”, “Ciclope”, Nausícaa”, “O gado do Sol” e “Circe”; e na terceira e última, “Eumeu”, “Ítaca” e “Penélope”. Cada episódio mais ou menos equivale a uma ou mais rapsódias de Odisseia, uma cena, uma hora, um órgão do corpo humano, uma arte, uma cor, um símbolo e uma técnica narrativa. São perto de mil páginas condensadas em um único dia: 16 de junho de 1904, o chamado “Bloom’s day”, ou simplesmente “Bloomsday”.
Essa data, aliás, que já se tornou universal, é possivelmente o maior spoiler da história da literatura mundial. Explico. Como Joyce, com Ulysses, decidiu estraçalhar com a ideia de romance – e, por extensão, de narrativa, muito embora isso ele faça com muito mais força em Finnegans Wake –, nada no livro é mostrado de forma simples. Quem vai ler o livro pela primeira vez que não espere por facilidades – muito pelo contrário. Só que, na leitura cerrada do livro, o leitor só vai começar a ter uma vaga noção de que se trata do dia 16 de junho de 1904 lá pelo quinto capítulo (“Lotófagos”; mais um spoiler). Essa informação básica, digamos assim, é distribuída em pequenos sinais ao longo da obra, assim como inúmeras outras. Logo, se considerar que o Bloomsday é comemorado desde quando o livro foi publicado, em 1922, é de se concluir que praticamente já não existem mais leitores de Ulysses que não saibam de antemão da famosa data.
Mas o que é essa data? Eis uma das marcas registradas de Joyce: a pessoalidade. O dia 16 de junho de 1904 marca o primeiro encontro entre ele e aquela que viria a tornar-se sua única esposa: a camareira de hotel Nora Barnacle. E não é somente a referência a essa data o único detalhe pessoal utilizado por Joyce em Ulysses. Praticamente todas as suas obras são impregnadas por episódios da sua vida conturbada: de Dublinenses, passando por Retrato do Artista quando Jovem, Giacomo Joyce até sua outra obra capital, Finnegans Wake, onde exercitou todo o seu inesgotável talento e prodigiosa memória para criar um romance onírico com palavras reinventadas a partir de 65 línguas.
Mas o que também é importante falar acerca de Ulysses é sobre o processo orgânico e até mesmo fisiológico do ato de ler o livro. Passados 94 anos da sua publicação, a obra continua ao mesmo tempo encantando e incomodando leitores em todo o mundo. E o que toca especificamente Ulysses são as duas dimensões desse processo de leitura: o ato físico de ler, e o que isso significa para a compreensão da leitura, e em que medida essa leitura impacta na vida do leitor.
É o filósofo, ensaísta, teórico da comunicação e escritor italiano Umberto Eco quem dá algumas pistas valiosas de como dar conta desse processo. Em Seis Passeios Pelos Bosques da Ficção, Eco define dois tipos de “leitor-modelo”: o de primeiro nível e o de segundo nível. No capítulo “Os Bosques de Loisy”, ele compara a leitura de um livro com o ato de percorrer um bosque e afirma que há duas maneiras de fazer isso: a primeira é experimentar um ou vários caminhos e a segunda, “andar para ver como é o bosque e descobrir por que algumas trilhas são acessíveis ou não”. “Todo texto desse tipo se dirige sobretudo a um leitor-modelo do primeiro nível, que quer saber muito bem como a história termina (se Ahab consegue capturar a baleia e se Leopold Bloom encontrará Stephen Dedalus depois de cruzar com ele algumas vezes no dia 16 de junho de 1904). Mas também todo texto se dirige a um leitor-modelo de segundo nível, que se pergunta que tipo de leitor a história deseja que ele se torne e que quer descobrir precisamente como o autor-modelo faz para guiar o leitor. Para saber como uma história termina, basta em geral lê-la uma vez. Em contrapartida, para identificar o autor-modelo é preciso ler o texto muitas vezes e algumas histórias incessantemente. Só quando tiverem descoberto o autor-modelo e tiverem compreendido (ou começado a compreender) o que o autor queria deles é que os leitores empíricos se tornarão leitores-modelo maduros”.
Em outro livro, Obra Aberta, Umberto Eco afirma que toda obra de arte é aberta porque não comporta apenas uma interpretação. “A ‘obra aberta’ não é uma categoria crítica, mas um modelo teórico para tentar explicar a arte contemporânea; qualquer referencial teórico usado para analisar a arte contemporânea não revela suas características estéticas, mas apenas um modo de ser dela segundo seus próprios pressupostos”.
Eco categoriza Ulysses como exemplo máximo de uma “obra aberta”. “É supérfluo lembrar aqui ao leitor, como exemplo máximo de obra ‘aberta’ – com o intuito justamente de proporcionar uma imagem de certa condição existencial e ontológica do mundo contemporâneo –, a obra de James Joyce. Em Ulysses, um capítulo como ‘Wandering Rocks’ [‘Rochedos errantes’, na tradução de Caetano W. Galindo] constitui um pequeno universo observável dentro de perspectivas sempre novas, onde desapareceu totalmente o último vestígio de uma poética de molde aristotélico, e com ela um decurso unívoco do tempo dentro de um espaço homogêneo”.
Mais adiante, Eco cita o teórico e escritor Edmund Wilson, que diz que a força de Ulysses, “ao invés de acompanhar uma linha, expande-se a si mesma em todas as dimensões (inclusive a do Tempo) em torno de um único ponto. O mundo de Ulysses é animado por uma vida complexa e inexaurível: revisitamo-lo tal como faríamos com uma cidade, à qual voltamos mais vezes para reconhecer os rostos, compreender as personalidades, estabelecer relações e correntes de interesses. Joyce desenvolveu considerável mestria técnica para apresentar-nos os elementos de sua história numa ordem tal que nos torne capazes de encontrar sozinhos os nossos caminhos: duvido bastante que uma memória humana consiga satisfazer todas as exigências de Ulisses, na primeira leitura. E, quando voltamos a lê-lo, podemos começar de um ponto qualquer, como uma cidade que existe realmente no espaço e na qual pode entrar por onde quer que se queira – aliás, o próprio Joyce declarou, ao compor o livro, ter trabalhado simultaneamente em várias de suas partes”.
Bem, como todo mundo, eu comecei como leitor-modelo de primeiro nível em relação a Ulysses. Muito tempo depois é que iniciei meus primeiros passos no segundo nível. E confesso que ainda estou nessa fase, digamos, embrionária.
O primeiro contato que tive com Ulysses foi em 1991. Eu morava em São Paulo, capital, e, numas das minhas muitas andanças por sebos ali nas proximidades da biblioteca Mario de Andrade, bem no final da rua da Consolação, deparei com um exemplar do livro publicado pelo saudoso Clube do Livro – ainda com a tradução, claro, de Antonio Houaiss. Era uma época em que era raríssimo encontrar o livro, mesmo em sebos. Como não tinha dinheiro na hora, fiquei a ver navios britânicos imaginários.
Certo dia, estava eu em uma livraria da rua Pamplona, na região dos Jardins, quando me ocorreu de perguntar ao livreiro se ele tinha o Ulysses. Ele respondeu que não e reafirmou o que eu já sabia: havia tempos que o livro não era publicado no Brasil. Eis que se aproxima de mim um homem de cavanhaque e pergunta se eu já tinha lido Ulysses. Respondi que não e, então, ele contou que tinha um exemplar e que poderia me vender. Topei na hora, meio sem pensar. Anotei o telefone e o endereço, que era do seu consultório de psicanálise, bem próximo da livraria, e também a data e o horário da provável compra. Quando saí da livraria é que me dei conta de que dificilmente iria ter dinheiro para tal negociação. Cheguei em casa e me pus a pensar o que fazer. Olhei para os meus poucos livros e mirei num exemplar de Os Sertões, de Euclides da Cunha, cuja publicação era – vejam só! – de 1906, apenas a quarta edição. Claro que entrei em conflito, pois era trocar um livro-raridade por outro que, à época, também era de certa forma uma raridade, muito embora de publicação bem mais recente. Pelo sim, pelo não, resolvi ligar ao psicanalista. Quando ele ouviu a minha proposta, aceitou na hora. Desliguei o telefone e me arrependi na hora. Mas já não dava para retroceder. Com toda a dor que um rato de sebo pode ter, e paradoxalmente com vontade de enfim ter Ulysses nas mãos, lá fui eu rumo aos Jardins com um livro de 85 anos embaixo do braço.
A cena da troca dos livros eu diria que foi joyciana. Dois seres abestalhados trocando, meio a contragosto, duas preciosidades da literatura universal – uma mais do que a outra. De qualquer forma, saí do consultório maravilhado pela aquisição de um Joyce, mas ao mesmo tempo com dor no ventrículo esquerdo por ter deixado escapar um Euclides. Subi a Pamplona, cheguei à Paulista e atravessei-a como quem está jogando Genius: absorto e sob o risco de ser atropelado. Não sei como subi no ônibus rumo a Pinheiros e decidi que ali mesmo eu começaria a ler o livro.
Hu-hum, tá, ok. Ledo e Ivo engano. O que entendi das três primeiras páginas que li foi zero vezes necas. Como leitor de Ulysses eu era um bom engenheiro químico. À medida que folheava o livro nos capítulos mais à frente, ficava me perguntando do porquê de tudo aquilo. Que diabos Joyce queria dizer com aquele calhamaço? Quando inadvertidamente cheguei lá no final, no monólogo da Molly Bloom, aí é que eu me senti um pedaço de isopor boiando na água. E me arrependi mais ainda de ter deixado Os Sertões com o psicanalista. Das duas, uma: ou tinha feito a troca da minha vida, ou uma tremenda besteira.
Ironicamente, não passou muito tempo e eu tive de passar nos cobres, não só o Ulysses, como também alguns Kafkas, Manns, Becketts e Gracilianos. A infraestrutura falou mais alto que a superestrutura. Estava sem grana e tinha de vir a Ponta Grossa visitar meus pais. Uma situação bem joyciana, eu diria.
Curiosamente, aos poucos comecei a perceber que, quanto mais eu não entendia nada de Ulysses, mais eu me aproximava dele, e decidi encarar aquela sopa fumegante fazendo o óbvio: tomando-a pelas bordas e ainda assoprando na colher. Tomei de assalto a hemeroteca da Mario de Andrade e vasculhei por artigos e ensaios sobre o livro e também sobre Joyce. Consegue imaginar, caro leitor, uma vida sem Google? Pois é, eu vivi isso. Era conhecimento adquirido no braço.
Em 2000, quando já estava bem fornido, tal qual um Buck Mulligan up to date, de informações várias sobre as obras de Joyce (tinha até comprado Retrato do Artista Quando Jovem, no sebo, claro), um amigo me mostrou um exemplar de Homem Comum Enfim – Uma Introdução a James Joyce para o Leitor Comum. A-rá! Era do que eu precisava! Pedi emprestado e fotocopiei o dito. Eu já era joyciano desde a medula, mas ainda não sabia disso, porque, exatamente no dia 16 de junho de 2000, eu comprei um Ulysses que havia sido republicado pela Civilização Brasileira um ano antes.
Bem, para completar a sina joyciana, decidi que o livro seria o primeiro que eu iria ler no século 21. E assim o fiz. Havia terminado de ler Submundo, do escritor norte-americano Don DeLillo (que, diga-se de passagem, me impulsionou mais ainda a ler Ulysses), e, exatamente no dia 1º de janeiro de 2001, comecei a minha odisseia de ler o livro – sem trocadilhos. Como gato escaldado tem medo de ducha fria, me fiz acompanhar de ninguém menos que o guia de Anthony Burgess, e, durante exatos 42 dias, eu não olhei nem para a data da folhinha do Sagrado Coração de Jesus, que era para não me desconcentrar.
Passei pelos três episódios da “Telemaquia” – “Telêmaco”, “Nestor” e “Proteu” – com dificuldades, mas sem maiores sobressaltos. Enquanto um olho vidrava no Ulysses, o outro escapava para o Homem Comum Enfim. O início da “Odisseia” foi recompensador, principalmente em “Calipso”, “Lotófagos” e “Hades”. Em “Éolo”, “Lestrigões”, Cila e Caribde” e “Rochedos errantes”, o caldo começou a engrossar. Já estava varando madrugadas, mas venci com muitas dificuldades “Sereias”, “Ciclope”, Nausícaa” e “O gado do Sol”. Mas, quando cheguei ao último episódio dessa parte, “Circe”, o bicho pegou. Travou tudo. As voltas ao texto começaram a ficar mais recorrentes e mais concentradas. Foi doloroso, confesso. Mas consegui chegar ao final. Senti-me, então, mais preparado para enfrentar a última parte, “Nostos”. “Eumeu” e “Ítaca” foram divertidíssimos. Porém, quando finalmente aportei em “Penélope”, o célebre monólogo interior de Molly Bloom, aí eu fui pra galera. E comecei a fazer algo que é recorrente quando chego ao final de um livro do qual gostei muito: comecei a ralentar a leitura para que demorasse para chegar ao final. Só que, no caso do monólogo, isso foi conflitante, porque um texto de mais de 60 páginas sem pontuação alguma impede o leitor, que já está embalado, de pisar no freio. Quando cheguei à palavra “Sims”, era o amanhecer do dia 12 de fevereiro – joycianamente, dez dias após a data de aniversário de James Joyce.
Dormi 13 horas seguidas e, claro, sonhei com Molly Bloom. (...) Você queria o que?
Em 2012, já devidamente mais equipado, devorei (bom, nem tanto...) a tradução de Caetano W. Galindo. Ainda quero ler a de Bernardina da Silveira Pinheiro. E, no momento, estou lendo Sim, eu Digo Sim – Uma Visita Guiada ao Ulysses de James Joyce, de Caetano W. Galindo. E constatei que, enfim, sou um homem comum e um leitor de segundo nível. Peleei, mas cheguei a esse patamar. Mas sei que ainda tenho um bosque entrelaçado de raízes para percorrer, e com direito a uma neblina cerrada.
Porque, definitivamente, Ulysses não é um livro para se ler. Mas, sim, para se reler, reler, reler e reler. Ad infinitum.
Helcio Kovaleski
Helcio Kovaleski é jornalista, roteirista e crítico de teatro, autor do livro Festival crítico: dez anos escrevendo sobre o Fenata (Festival Nacional de Teatro). Atualmente é assessor parlamentar da Câmara Municipal de Ponta Grossa, Paraná.
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
[Visto no Brasil Acadêmico]
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- “Stately, plump Buck Mulligan came from the stairhead, bearing a bowl of lather on which a mirror and a razor lay crossed. A yellow dressing-gown, ungirdled, was sustained gently behind him by the mild morning air. He held the bowl aloft and intoned:
– Introibo ad altare Dei.
Halted, he peered down the dark winding stairs and called up coarsely:
– Come up, Kinch. Come up, you fearful jesuit.”
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- “Sobranceiro, fornido, Buck Mulligan vinha do alto da escada, com um vaso de barbear, sobre o qual se cruzavam um espelho e uma navalha. Seu roupão amarelo, desatado, se enfunava por trás à doce brisa da manhã. Elevou o vaso e entoou:
– Introibo ad altare Dei.
Parando, perscrutou a escura escada espiral e chamou asperamente:
– Suba, Kinch. Suba, jesuíta execrável.”
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- “Majestoso, o gorducho Buck Mulligan apareceu no topo da escada, trazendo na mão uma tigela com espuma sobre a qual repousavam, cruzados, um espelho e uma navalha de barba. Um penhoar amarelo, desamarrado, flutuando suavemente atrás dele no ar fresco da manhã. Ele ergueu a tigela e entoou:
– Introibo ad altare Dei.
Parado, ele perscrutou a escada sombria de caracol e gritou asperamente:
- Suba, Kinch! Suba, seu temível jesuíta!”
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- “Solene, o roliço Buck Mulligan surgiu no alto da escada, portando uma vasilha de espuma em que cruzados repousavam espelho e navalha. Um roupão amarelo, com cíngulo solto, era delicadamente sustentado atrás dele pelo doce ar da manhã. Elevou a vasilha e entoou:
– Introibo ad altare Dei.
Detido, examinou o escuro recurvo da escada e invocou ríspido:
– Sobe, Kinch. Sobe, seu jesuíta medonho.”
A história é mais ou menos a seguinte: transtornado pela suspeita de que Molly o está traindo com o produtor musical Blazes Boylan, Bloom sai de casa às 8 horas da manhã, enquanto sua esposa ainda está dormindo. Volta pouco tempo depois para fritar rim de porco e servi-lo como café da manhã para ela e também deixar algumas correspondências que pegou no correio. Tem uma conversa cheia de entrelinhas com Molly e, depois, sai, novamente, e anda errante por vários locais de Dublin, cruzando com pessoas com as quais queria evitar o contato, bêbados, poetas, jornalistas, prostitutas, ateus, excêntricos e, por fim, com o “órfão” Stephen Dedalus, que acaba sendo “adotado” por ele lá pelas duas horas da madrugada do dia seguinte. Pelo caminho, monólogos interiores, blasfêmias, (muita) escatologia, momentos sublimes, piadas infames, reflexões sobre a vida e a morte e um roteiro fidedigno da capital irlandesa relatados em dezoito episódios divididos em três partes (conforme a tradução de Caetano W. Galindo): “Telemaquia”, “Odisseia” e “Nostos”. Na primeira parte, os episódios são “Telêmaco”, “Nestor” e “Proteu”; na segunda, “Calipso”, “Lotófagos”, “Hades”, “Éolo”, “Lestrigões”, Cila e Caribde”, “Rochedos errantes”, “Sereias”, “Ciclope”, Nausícaa”, “O gado do Sol” e “Circe”; e na terceira e última, “Eumeu”, “Ítaca” e “Penélope”. Cada episódio mais ou menos equivale a uma ou mais rapsódias de Odisseia, uma cena, uma hora, um órgão do corpo humano, uma arte, uma cor, um símbolo e uma técnica narrativa. São perto de mil páginas condensadas em um único dia: 16 de junho de 1904, o chamado “Bloom’s day”, ou simplesmente “Bloomsday”.
Essa data, aliás, que já se tornou universal, é possivelmente o maior spoiler da história da literatura mundial. Explico. Como Joyce, com Ulysses, decidiu estraçalhar com a ideia de romance – e, por extensão, de narrativa, muito embora isso ele faça com muito mais força em Finnegans Wake –, nada no livro é mostrado de forma simples. Quem vai ler o livro pela primeira vez que não espere por facilidades – muito pelo contrário. Só que, na leitura cerrada do livro, o leitor só vai começar a ter uma vaga noção de que se trata do dia 16 de junho de 1904 lá pelo quinto capítulo (“Lotófagos”; mais um spoiler). Essa informação básica, digamos assim, é distribuída em pequenos sinais ao longo da obra, assim como inúmeras outras. Logo, se considerar que o Bloomsday é comemorado desde quando o livro foi publicado, em 1922, é de se concluir que praticamente já não existem mais leitores de Ulysses que não saibam de antemão da famosa data.
Mas o que é essa data? Eis uma das marcas registradas de Joyce: a pessoalidade. O dia 16 de junho de 1904 marca o primeiro encontro entre ele e aquela que viria a tornar-se sua única esposa: a camareira de hotel Nora Barnacle. E não é somente a referência a essa data o único detalhe pessoal utilizado por Joyce em Ulysses. Praticamente todas as suas obras são impregnadas por episódios da sua vida conturbada: de Dublinenses, passando por Retrato do Artista quando Jovem, Giacomo Joyce até sua outra obra capital, Finnegans Wake, onde exercitou todo o seu inesgotável talento e prodigiosa memória para criar um romance onírico com palavras reinventadas a partir de 65 línguas.
Leitores-modelo
Mas o que também é importante falar acerca de Ulysses é sobre o processo orgânico e até mesmo fisiológico do ato de ler o livro. Passados 94 anos da sua publicação, a obra continua ao mesmo tempo encantando e incomodando leitores em todo o mundo. E o que toca especificamente Ulysses são as duas dimensões desse processo de leitura: o ato físico de ler, e o que isso significa para a compreensão da leitura, e em que medida essa leitura impacta na vida do leitor.
É o filósofo, ensaísta, teórico da comunicação e escritor italiano Umberto Eco quem dá algumas pistas valiosas de como dar conta desse processo. Em Seis Passeios Pelos Bosques da Ficção, Eco define dois tipos de “leitor-modelo”: o de primeiro nível e o de segundo nível. No capítulo “Os Bosques de Loisy”, ele compara a leitura de um livro com o ato de percorrer um bosque e afirma que há duas maneiras de fazer isso: a primeira é experimentar um ou vários caminhos e a segunda, “andar para ver como é o bosque e descobrir por que algumas trilhas são acessíveis ou não”. “Todo texto desse tipo se dirige sobretudo a um leitor-modelo do primeiro nível, que quer saber muito bem como a história termina (se Ahab consegue capturar a baleia e se Leopold Bloom encontrará Stephen Dedalus depois de cruzar com ele algumas vezes no dia 16 de junho de 1904). Mas também todo texto se dirige a um leitor-modelo de segundo nível, que se pergunta que tipo de leitor a história deseja que ele se torne e que quer descobrir precisamente como o autor-modelo faz para guiar o leitor. Para saber como uma história termina, basta em geral lê-la uma vez. Em contrapartida, para identificar o autor-modelo é preciso ler o texto muitas vezes e algumas histórias incessantemente. Só quando tiverem descoberto o autor-modelo e tiverem compreendido (ou começado a compreender) o que o autor queria deles é que os leitores empíricos se tornarão leitores-modelo maduros”.
Em outro livro, Obra Aberta, Umberto Eco afirma que toda obra de arte é aberta porque não comporta apenas uma interpretação. “A ‘obra aberta’ não é uma categoria crítica, mas um modelo teórico para tentar explicar a arte contemporânea; qualquer referencial teórico usado para analisar a arte contemporânea não revela suas características estéticas, mas apenas um modo de ser dela segundo seus próprios pressupostos”.
Eco categoriza Ulysses como exemplo máximo de uma “obra aberta”. “É supérfluo lembrar aqui ao leitor, como exemplo máximo de obra ‘aberta’ – com o intuito justamente de proporcionar uma imagem de certa condição existencial e ontológica do mundo contemporâneo –, a obra de James Joyce. Em Ulysses, um capítulo como ‘Wandering Rocks’ [‘Rochedos errantes’, na tradução de Caetano W. Galindo] constitui um pequeno universo observável dentro de perspectivas sempre novas, onde desapareceu totalmente o último vestígio de uma poética de molde aristotélico, e com ela um decurso unívoco do tempo dentro de um espaço homogêneo”.
Mais adiante, Eco cita o teórico e escritor Edmund Wilson, que diz que a força de Ulysses, “ao invés de acompanhar uma linha, expande-se a si mesma em todas as dimensões (inclusive a do Tempo) em torno de um único ponto. O mundo de Ulysses é animado por uma vida complexa e inexaurível: revisitamo-lo tal como faríamos com uma cidade, à qual voltamos mais vezes para reconhecer os rostos, compreender as personalidades, estabelecer relações e correntes de interesses. Joyce desenvolveu considerável mestria técnica para apresentar-nos os elementos de sua história numa ordem tal que nos torne capazes de encontrar sozinhos os nossos caminhos: duvido bastante que uma memória humana consiga satisfazer todas as exigências de Ulisses, na primeira leitura. E, quando voltamos a lê-lo, podemos começar de um ponto qualquer, como uma cidade que existe realmente no espaço e na qual pode entrar por onde quer que se queira – aliás, o próprio Joyce declarou, ao compor o livro, ter trabalhado simultaneamente em várias de suas partes”.
Odisseia de uma leitura
Bem, como todo mundo, eu comecei como leitor-modelo de primeiro nível em relação a Ulysses. Muito tempo depois é que iniciei meus primeiros passos no segundo nível. E confesso que ainda estou nessa fase, digamos, embrionária.
O primeiro contato que tive com Ulysses foi em 1991. Eu morava em São Paulo, capital, e, numas das minhas muitas andanças por sebos ali nas proximidades da biblioteca Mario de Andrade, bem no final da rua da Consolação, deparei com um exemplar do livro publicado pelo saudoso Clube do Livro – ainda com a tradução, claro, de Antonio Houaiss. Era uma época em que era raríssimo encontrar o livro, mesmo em sebos. Como não tinha dinheiro na hora, fiquei a ver navios britânicos imaginários.
Certo dia, estava eu em uma livraria da rua Pamplona, na região dos Jardins, quando me ocorreu de perguntar ao livreiro se ele tinha o Ulysses. Ele respondeu que não e reafirmou o que eu já sabia: havia tempos que o livro não era publicado no Brasil. Eis que se aproxima de mim um homem de cavanhaque e pergunta se eu já tinha lido Ulysses. Respondi que não e, então, ele contou que tinha um exemplar e que poderia me vender. Topei na hora, meio sem pensar. Anotei o telefone e o endereço, que era do seu consultório de psicanálise, bem próximo da livraria, e também a data e o horário da provável compra. Quando saí da livraria é que me dei conta de que dificilmente iria ter dinheiro para tal negociação. Cheguei em casa e me pus a pensar o que fazer. Olhei para os meus poucos livros e mirei num exemplar de Os Sertões, de Euclides da Cunha, cuja publicação era – vejam só! – de 1906, apenas a quarta edição. Claro que entrei em conflito, pois era trocar um livro-raridade por outro que, à época, também era de certa forma uma raridade, muito embora de publicação bem mais recente. Pelo sim, pelo não, resolvi ligar ao psicanalista. Quando ele ouviu a minha proposta, aceitou na hora. Desliguei o telefone e me arrependi na hora. Mas já não dava para retroceder. Com toda a dor que um rato de sebo pode ter, e paradoxalmente com vontade de enfim ter Ulysses nas mãos, lá fui eu rumo aos Jardins com um livro de 85 anos embaixo do braço.
A cena da troca dos livros eu diria que foi joyciana. Dois seres abestalhados trocando, meio a contragosto, duas preciosidades da literatura universal – uma mais do que a outra. De qualquer forma, saí do consultório maravilhado pela aquisição de um Joyce, mas ao mesmo tempo com dor no ventrículo esquerdo por ter deixado escapar um Euclides. Subi a Pamplona, cheguei à Paulista e atravessei-a como quem está jogando Genius: absorto e sob o risco de ser atropelado. Não sei como subi no ônibus rumo a Pinheiros e decidi que ali mesmo eu começaria a ler o livro.
Hu-hum, tá, ok. Ledo e Ivo engano. O que entendi das três primeiras páginas que li foi zero vezes necas. Como leitor de Ulysses eu era um bom engenheiro químico. À medida que folheava o livro nos capítulos mais à frente, ficava me perguntando do porquê de tudo aquilo. Que diabos Joyce queria dizer com aquele calhamaço? Quando inadvertidamente cheguei lá no final, no monólogo da Molly Bloom, aí é que eu me senti um pedaço de isopor boiando na água. E me arrependi mais ainda de ter deixado Os Sertões com o psicanalista. Das duas, uma: ou tinha feito a troca da minha vida, ou uma tremenda besteira.
Ironicamente, não passou muito tempo e eu tive de passar nos cobres, não só o Ulysses, como também alguns Kafkas, Manns, Becketts e Gracilianos. A infraestrutura falou mais alto que a superestrutura. Estava sem grana e tinha de vir a Ponta Grossa visitar meus pais. Uma situação bem joyciana, eu diria.
Curiosamente, aos poucos comecei a perceber que, quanto mais eu não entendia nada de Ulysses, mais eu me aproximava dele, e decidi encarar aquela sopa fumegante fazendo o óbvio: tomando-a pelas bordas e ainda assoprando na colher. Tomei de assalto a hemeroteca da Mario de Andrade e vasculhei por artigos e ensaios sobre o livro e também sobre Joyce. Consegue imaginar, caro leitor, uma vida sem Google? Pois é, eu vivi isso. Era conhecimento adquirido no braço.
Em 2000, quando já estava bem fornido, tal qual um Buck Mulligan up to date, de informações várias sobre as obras de Joyce (tinha até comprado Retrato do Artista Quando Jovem, no sebo, claro), um amigo me mostrou um exemplar de Homem Comum Enfim – Uma Introdução a James Joyce para o Leitor Comum. A-rá! Era do que eu precisava! Pedi emprestado e fotocopiei o dito. Eu já era joyciano desde a medula, mas ainda não sabia disso, porque, exatamente no dia 16 de junho de 2000, eu comprei um Ulysses que havia sido republicado pela Civilização Brasileira um ano antes.
Bem, para completar a sina joyciana, decidi que o livro seria o primeiro que eu iria ler no século 21. E assim o fiz. Havia terminado de ler Submundo, do escritor norte-americano Don DeLillo (que, diga-se de passagem, me impulsionou mais ainda a ler Ulysses), e, exatamente no dia 1º de janeiro de 2001, comecei a minha odisseia de ler o livro – sem trocadilhos. Como gato escaldado tem medo de ducha fria, me fiz acompanhar de ninguém menos que o guia de Anthony Burgess, e, durante exatos 42 dias, eu não olhei nem para a data da folhinha do Sagrado Coração de Jesus, que era para não me desconcentrar.
Passei pelos três episódios da “Telemaquia” – “Telêmaco”, “Nestor” e “Proteu” – com dificuldades, mas sem maiores sobressaltos. Enquanto um olho vidrava no Ulysses, o outro escapava para o Homem Comum Enfim. O início da “Odisseia” foi recompensador, principalmente em “Calipso”, “Lotófagos” e “Hades”. Em “Éolo”, “Lestrigões”, Cila e Caribde” e “Rochedos errantes”, o caldo começou a engrossar. Já estava varando madrugadas, mas venci com muitas dificuldades “Sereias”, “Ciclope”, Nausícaa” e “O gado do Sol”. Mas, quando cheguei ao último episódio dessa parte, “Circe”, o bicho pegou. Travou tudo. As voltas ao texto começaram a ficar mais recorrentes e mais concentradas. Foi doloroso, confesso. Mas consegui chegar ao final. Senti-me, então, mais preparado para enfrentar a última parte, “Nostos”. “Eumeu” e “Ítaca” foram divertidíssimos. Porém, quando finalmente aportei em “Penélope”, o célebre monólogo interior de Molly Bloom, aí eu fui pra galera. E comecei a fazer algo que é recorrente quando chego ao final de um livro do qual gostei muito: comecei a ralentar a leitura para que demorasse para chegar ao final. Só que, no caso do monólogo, isso foi conflitante, porque um texto de mais de 60 páginas sem pontuação alguma impede o leitor, que já está embalado, de pisar no freio. Quando cheguei à palavra “Sims”, era o amanhecer do dia 12 de fevereiro – joycianamente, dez dias após a data de aniversário de James Joyce.
Dormi 13 horas seguidas e, claro, sonhei com Molly Bloom. (...) Você queria o que?
Em 2012, já devidamente mais equipado, devorei (bom, nem tanto...) a tradução de Caetano W. Galindo. Ainda quero ler a de Bernardina da Silveira Pinheiro. E, no momento, estou lendo Sim, eu Digo Sim – Uma Visita Guiada ao Ulysses de James Joyce, de Caetano W. Galindo. E constatei que, enfim, sou um homem comum e um leitor de segundo nível. Peleei, mas cheguei a esse patamar. Mas sei que ainda tenho um bosque entrelaçado de raízes para percorrer, e com direito a uma neblina cerrada.
Porque, definitivamente, Ulysses não é um livro para se ler. Mas, sim, para se reler, reler, reler e reler. Ad infinitum.
Helcio Kovaleski
Helcio Kovaleski é jornalista, roteirista e crítico de teatro, autor do livro Festival crítico: dez anos escrevendo sobre o Fenata (Festival Nacional de Teatro). Atualmente é assessor parlamentar da Câmara Municipal de Ponta Grossa, Paraná.
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
[Visto no Brasil Acadêmico]
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