Testemunha privilegiada das tragédias de seu tempo, Forrest não diz absolutamente nada sobre o caráter dessas tragédias. É como se elas lhe escapassem. Subjetivamente, Forrest seria Forrest tendo crescido na América, na França, em Israel.
O esvaziamento do político garante a perpetuidade das injustiças do Estado de Direito atual. Até que ponto as críticas dirigidas ao sistema foram internalizadas? O que a cultura poderia dizer sobre uma “onda conservadora” e suas estratégias?
Em outubro de 1789, no início da Revolução Francesa, deputados do antigo Clube Bretão se instalaram numa sede própria, localizada em Paris. No local ocorriam quase todas as noites acaloradas discussões, cujo objetivo era ampliar os temas tratados, horas antes, na reunião dos Estados Gerais, recém-convocados para tentar solucionar a crise política e financeira do governo de Luís XVI. Muitos dos deputados ali presentes – inclusive um jovem advogado provinciano cujo nome os jornais grafaram errado por meses, Maximilien Robespierre – viam na convocação uma chance de ascender politicamente. A nova sede do Clube Bretão ficava no antigo convento dos jacobinos. No entanto, a denominação especial que les jacobins se outorgaram à época não foi essa. Naqueles dias tumultuados, os aprendizes da política moderna preferiram denominar-se “Sociedade dos Amigos da Constituição”. O nome nos soa curioso, visto que se tratava de uma época de importantes transformações. Sua justificativa, porém, é simples: naquele momento, a Constituição era a própria revolução, porque vinha substituir os códigos feudais que sustentavam o ancien régime. Ser amigo da Constituição significava ser amigo da revolução.
Visto que o período da Assembléia Nacional Constituinte (1789-1791) fora dominado pela posição girondina – moderada no que tangia à Igualdade e radical no que dizia respeito à proteção da Propriedade –, os jacobinos se viram desde o início conduzidos a um dilema: no contexto frágil da Primeira República, tendo a conquista da Constituição como expressão máxima do acordo entre as forças nacionais, como aprofundar seu caráter democrático sem colocar em risco a própria revolução? As contradições se agravam e o rei Luís XVI é executado no início de 1793. O descontentamento crescente da população mais pobre leva os jacobinos à supremacia da Convenção, que deve apontar um rumo ao país. A França já se encontrava então em guerra com potências monárquicas e a unidade nacional se transformara em ponto crítico. Foi nessa fase de grandes tensões que os jacobinos, com a Constituição como pedra-de-toque da unidade, assumiram posições tais como: “Os infelizes são a força da terra; eles têm o direito de falar como donos aos governos que os negligenciam”; ou ainda: “Quando o governo viola os direitos do povo, a insurreição é, para o povo, e para cada porção do povo, o mais sagrado dos direitos e o mais indispensável dos deveres”.
Pese a complexidade do processo revolucionário, chama a atenção o fato de que, no mesmo período em que instituíam um código positivo de leis, aqueles deputados buscassem resguardar a resistência e a sublevação como direitos fundamentais, caso a Constituição viesse a ser desrespeitada pelas autoridades. O processo traumático, que colocara em xeque o direito divino do rei e limitara suas ações, tinha requerido de seus partidários o esforço de elaboração de uma nova legitimidade (poder-se-ia dizer: de uma nova narrativa do mundo), apta a sustentar no âmbito do Direito a lenta reestruturação social encabeçada pela burguesia. Se essa narrativa se via em disputa, naquele momento, entre as frações mais oligárquicas e mais populares da burguesia, os jacobinos (ligados a esta última) buscavam garantir uma interpretação da democracia como um “ponto de excesso” em relação ao Estado de Direito e o reconhecimento da legalidade da “violação política”.
Desnecessário mencionar o que isto significava, por exemplo, às colônias francesas, onde o trabalho escravo se mantinha no mesmo momento em que, na metrópole, declarava-se que “os homens nascem livres e permanecem livres e iguais em direitos” .4 Embora considerada legal, a escravidão dificilmente poderia ser mantida como instituição legítima à luz dos novos acontecimentos. De fato, chegou a ser abolida, em fevereiro de 1794, pressionada pelo desenrolar da revolução dominicana liderada por Toussaint L’Ouverture (1743-1803). No romance histórico El Siglo de Las Luces (1962), o cubano Alejo Carpentier narra a trajetória de Víctor Hugues, designado pela Convenção para levar às colônias caribenhas a nova ordem fundada com a Primeira República. Ao se debruçar sobre os descaminhos do processo revolucionário francês, Carpentier se debruça sobre a própria Revolução Cubana. Seu clássico traça certa distinção essencial entre a legitimidade das causas do processo social e a (quase previsível) ilegitimidade das razões de seus múltiplos atores individuais.
Vale lembrar que as duas coisas – a democracia como “ponto de excesso” em relação ao Estado de Direito e a distinção entre processo social e seus protagonistas – são largamente ignoradas em nossos dias. Este “ponto de excesso” e aqueles que ali se posicionam são alvo de crescente deslegitimação e criminalização.
A revolução antiimperialista também foi tema do psiquiatra martiniquês Frantz Fanon (1925-1961), autor de Les Damnés de la Terre (1961). Após participar dos conflitos na Argélia, Fanon defendeu que a mera descolonização dos territórios ocupados pelos europeus não constituía retratação suficiente. Seria preciso, segundo ele, que a Europa assumisse responsabilidade moral e econômica pela destruição das bases produtivas das populações subjugadas e, consequentemente, pela desagregação das formas de vida social. Porém, Argel não era Paris. Qual a garantia de Fanon para exigências não previstas em contrato? Bastaria que olhássemos, hoje, à tragédia de milhões de imigrantes que tentam adentrar a União Europeia. A resposta é: a história. Continua...
[next]
O acesso à história é uma das condições para a mobilização de uma narrativa que aborda (e às vezes funda) o que é legítimo, e não apenas o que é legal do ponto de vista do Estado de Direito. Esvaziar o âmbito político da vida pelo bloqueio de racionalizações históricas é uma das estratégias permanentes do conservadorismo. Certa corrente da literatura escrita ao final do século 19 e início do 20 possui uma lição sobre este tema. Na leitura do filósofo György Lukács, ela vincula-se aos acontecimentos da Primavera dos Povos, que em 1848 se espalharam pela Europa como “fogo na palha”. Quando aquela burguesia revolucionária, que da França havia abalado, em 1789, todo o sistema monárquico, assume poucas décadas depois o papel de reprimir as classes pobres em revolta, tal significaria que seu papel progressista como classe na longa trajetória de emancipação da humanidade chegara ao fim. Em Paris, onde muitos escritores foram testemunhas de batalhas violentas livradas pelas ruas, era como se o caminho aberto pela Revolução Francesa ao protagonismo do cidadão comum houvesse se fechado.
Diante de tais fatos, a literatura moderna, até então em sua fase “heróica” (à qual pertenceria Balzac), entra em crise. A expressão mais alta dessa crise, segundo Lukács, seria uma bifurcação. De um lado, a corrente do realismo crítico, que vê na resistência à progressiva brutalização do indivíduo pelo capitalismo uma expressão justa do tempo histórico: o realismo salvaguardaria, por assim dizer, as conquistas realizadas até ali pelas sociedades ocidentais modernas (um exemplo seria a obra de Flaubert). De outro lado está a corrente não-realista, que encara tal brutalização como processo inelutável, em que o indivíduo se vê condenado paulatinamente a espectador (e não mais protagonista) de um mundo que se fecha à própria compreensão (aqui, Lukács insiste no naturalismo de Zola).
Para Lukács, existe uma ligação íntima entre o naturalismo do século 19 e o modernismo vanguardista do século 20. No romance naturalista, o alheamento das personagens dos principais acontecimentos favorece o nivelamento das experiências: niveladas, não mais hierarquizadas, tais experiências falham em fornecer sentido à vida. No século 20, este nivelamento assume uma forma singular. Em algumas das principais obras, surge na forma de périplos que se esgotam em si mesmos. É uma ação vazia, porque seu resultado não significa modificação alguma, seja no mundo ou no foro íntimo da personagem. Ulysses (1922), de James Joyce, é possivelmente a maior expressão dessa corrente. O teatro de Samuel Beckett seria sua expressão paroxística, porque fundada numa inação exasperante. Sob essa perspectiva – de uma ação rebaixada, que nada transforma – chegamos a um tempo também rebaixado, que nada traz (nem pode trazer) de novo. É um tempo de perpetuidades, contrário em tudo ao tempo de transformações. Ação vazia e tempo vazio são, portanto, complementares.
Um caso mais recente dessa modalidade de ação é aquele do filme Forrest Gump (1994), lançado no auge da era neoliberal. Ali, a recapitulação de parte do século 20 norte-americano assume a forma de uma série cronológica de eventos, todos precariamente articulados, alguns sequer no nível de uma causalidade rudimentar. Da ascensão do rock and roll aos impactos sobre a moral conservadora dos golden years, em 1950; passando pela Guerra do Vietnã, no contexto da Guerra Fria, e pelos movimentos por Direitos Civis contra a discriminação racial e sexual, em 1960; até o escândalo Watergate e a escalada do poder corporativo na política no início do decênio seguinte... Percorremos em sequência impactos, conflitos, lutas, corrupção.
Quarenta anos separam o pequeno Forrest daquele, adulto, que narra sua história aos transeuntes num ponto de ônibus. História notável, diga-se de passagem, porque unida por melindrosos fios aos acontecimentos centrais de seu país. E, não obstante, a partir do filme pouco ou nada podemos dizer em que os Estados Unidos da infância do narrador mudaram em relação aos Estados Unidos de sua madurez. Sequer poderíamos apostar qual desses fatos (decisivos na vida do Estado-nação) foi mais decisivo em sua própria vida. A reflexão de Simone de Beauvoir de que foi a Segunda Guerra Mundial que a despertou para o vínculo indissociável de sua existência com a trajetória do mundo e da França é aqui (em Forrest Gump) completamente estranha.
Testemunha privilegiada das tragédias de seu tempo, Forrest não diz absolutamente nada sobre o caráter dessas tragédias. É como se elas lhe escapassem. Subjetivamente, Forrest seria Forrest tendo crescido na América, na França, em Israel. Não há nada em seu modo de ver que prove que ele é um yankee (isso explica em grande medida, segundo creio, o sucesso mundial de um filme que trata, supostamente, do percurso íntimo dos EUA). Para existir, bastaria que seu relato seguisse permeado de périplos incríveis, real interesse da trama. Os conflitos não marcam rupturas (pessoais ou coletivas), mas servem como pano de fundo à narração de alguém que é quase aquilo mesmo que narra.
Suspeitamos assim, contra todas as evidências, que o tempo não passa em Forrest Gump. À sua maneira, o filme partilha da perspectiva (da qual tratamos anteriormente) de uma ação esvaziada, à qual corresponde um tempo homogêneo. Se olharmos em Beckett (tomemos o exemplo mais paradigmático), veremos que a ausência de ação e o tempo homogêneo estão vinculados necessariamente a outro fator: a falência do sujeito. Na obra do irlandês, a ruína da subjetividade e da razão se deve a um dado colossal: a sociedade, que conforma o indivíduo, entrou em colapso. Em Forrest (personagem), também há um sujeito falido. Nesse caso, entretanto, justificado por fatores mais adequados a uma sociedade que nega a própria desagregação: Forrest tem um problema biológico.
Por carecer de integridade mental, o relato de Forrest equipara-se ao relato de uma criança. Tudo é imediato, nada é mediato. Sua qualidade principal é o tom naïf. E, no que concerne à ingenuidade, nada é mais estranho a ela do que isto: a vida política. Como uma criança, Forrest não possui uma perspectiva política da realidade. É este, afinal, o núcleo ausente de toda a narrativa, e que poderia fornecer substância aos acontecimentos, dar-lhes sentido (à história dos Estados Unidos e à sua própria). Enfim, podemos dizer: o tempo não passa em Forrest Gump porque, no que concerne às representações que o homem faz de si mesmo, não existe tempo verdadeiro no exterior de uma perspectiva política sobre a existência.
Negamos acima que Forrest Gump narraria o percurso íntimo dos Estados Unidos. Agora, constatamos que é na chave da falsa historicidade que o filme fala algo concreto e atual sobre a realidade norte-americana (e, quem sabe, de nossa própria). Homérico, Forrest encarna a figura do narrador por excelência, de cuja narrativa, anti-homericamente, nenhuma lição se depreende. Esvaziada de sentido histórico profundo, este tipo de narrativa obstrui a enunciação de qualquer julgamento sobre a legitimidade dos processos sociais e sobre o valor de nossas ações até o presente, além de impedir que o sujeito encare a si mesmo como tal, responsável pelas mudanças do mundo.
Esta estratégia – de esvaziamento contumaz e velado do âmbito político – é justamente um dos traços que se fortalecem em nossos dias. Ela se estende do discurso sobre a corrupção (como dado “policialesco” e avulso na modernização do Estado brasileiro) às manobras redutoras variadas que consideram “democráticas” as manifestações populares em defesa de condições básicas de existência, ameaçadas por interesses antidemocráticos; ou que, em período de eleição, desejam fazer crer que a luta de classes é um discurso de ódio, oportunista e retrógrado, que profana o “altar natural” da fraterna unidade nacional. Em última instância, este esvaziamento do político visa garantir que se perpetuem os vetustos privilégios sociais que assombram a trajetória do país desde a colônia. Neste exato momento de crise profunda da Nova República, o combate a este tipo de narrativa (nas ruas, inclusive) ganha centralidade.Continua...
[next]
Alguns dos intelectuais mais sensíveis ao problema da ideologia perceberam que certa corrente da arte contemporânea, bem como certa estratégia de discurso mobilizada no estágio atual do capitalismo realizam um movimento de reflexão sobre si mesmas, implicando no discurso a própria condição, quando não fazendo desta o centro de seu enunciado. Para ir direto ao ponto, mencione-se a campanha, lançada aqui em 2012 e intitulada “Gestão de Patrimônio”, do banco britânico HSBC. O filme da terceira fase foi veiculado ao longo de 2015 e se apresenta em duas partes: na primeira, crianças divagam sobre o que desejam ser no futuro; na segunda, homens e mulheres da chamada “terceira idade” realizam um balanço de suas vidas, mencionando quais sonhos foram abandonados em prol da construção de um patrimônio. Após uma sequencia de devaneios infantis intercalados com arrependimentos pungentes dos mais velhos, vai à tela esta questão: “Em que momento o dinheiro passa a ser o mais importante?”. Em seguida, surge o anúncio da Gestão de Patrimônio do HSBC e uma voz, em off: “O importante não é ter mais dinheiro. É saber o que ele pode fazer por você”. Alguém poderia perguntar: quem precisa de uma crítica à sociedade de consumo e à cultura do acúmulo com bancos assim? Mais prevenidamente, consideraria que se trata de uma postura cínica, visto que o banco instrumentaliza sua crítica ao acúmulo em prol do... Acúmulo. Vejamos, portanto, um caso para além do cinismo.
A peça publicitária possui 30 segundos, mas contém um dado revelador. A empresa é a marca de tênis Olympikus e a estrutura do comercial também possui duas partes intercaladas: na primeira, cenas da opressão da vida cotidiana na metrópole; na segunda, pessoas correndo em grandes espaços abertos, próximos à natureza. Não há dúvida de que o efeito sedutor do filme se dá pela sucessão frenética das imagens, permeadas o tempo todo por um narrador em off. Pese a multiplicidade dos elementos envolvidos, o que chama a atenção é isto: contraposta às cenas de corrida, a assunção deliberada da violência causada pela rotina do trabalho, pela repetição sem finalidade e sem fim de tarefas conduzidas pelo autômato, pela negação de qualquer vida mental, pelos códigos de conduta impostos. Interessante é a imagem do escritório: contra o clichê do ambiente espaçoso, iluminado e clean, é posta em cena uma ambientação monocromática, apagada e sufocante. Tem-se a impressão de que, longe de ser a consolidação de uma ética do trabalho – que admite o cumprimento das obrigações, por exemplo –, dá-se uma aceitação das "leis laborais” sem mais justificativas, restando somente o imperativo do hard work. Aliás, a propaganda não desautoriza de forma alguma esta interpretação: o esforço físico intenso realizado fora das horas de trabalho é uma espécie de catarse, onde se dá a compensação das longas horas também intensas e mortificantes.
É a passagem do Work hard, fly right – bordão dos anos 1990 da empresa aérea Continental Airlines – ao Work hard, play hard, como reformulado pelo rapper norte-americano Wiz Khalifa, em 2012. Este "play hard" – com o qual dialoga sem dúvida o “espírito de desporto” do comercial da Olympikus – expressa muito das faltas e estragos causados por aquele "work hard" de uma década atrás. Khalifa explica: [I got] so much paper right in front of me it's hard to think / Bought so many bottles, it's gonna be hard to drink (...) Go hard, make sure you do it whatever is that you gotta do / That's your job / And niggas gonna hate, but that's no prob.
Arranjemos lado a lado ambos os discursos – de HSBC e Olympikus – e o que se insinua é que o establishment realizou certa internalização da crítica que, até há pouco tempo, o marxismo fazia ao trabalho alienado como “desefetivação” da vida, não apenas durante o expediente, mas durante o “tempo ocioso”. Franz Kafka já a sentiu no início do século 20, quando constatou que a escrita e o trabalho burocrático do escritório “não podem se tolerar mutuamente e não admitem uma felicidade comum a ambos”. Esta mesma incompatibilidade é problematizada por Ricardo Antunes em Os sentidos do trabalho (1999), acrescida do tema da intensificação do tempo de trabalho na era neoliberal. De ideologia de segundo grau – como Roberto Schwarz definiu as ideias liberais no Brasil escravista do século 19 –, tais exemplos da propaganda sugerem uma conjuntura na qual, frente à manutenção estrutural da ordem neoliberal (inclusive ou sobretudo por governos ligados à esquerda) e a neutralização recorrente de contra-narrativas que legitimem oposições ao status quo, mesmo a ideologia liberal de primeiro grau teria se tornado supérflua. As representações sobre o trabalho, assim, já não simulariam realizar destino pessoal algum, acolhendo aquele como uma dimensão morta da vida do sujeito. Tudo é o que é. Poder-se-ia dizer, parafraseando Drummond do período entre guerras, "chegou um tempo em que a vida é uma ordem. A vida apenas, sem mistificação". Teríamos chegado ao grau zero da ideologia liberal? Seria este um passo anterior ao seu esvaziamento completo porque esta ideologia ainda precisa sustentar, por negativo, não tanto a noção de aprimoramento quanto a de impossível superação?
O sentido conformista que imediatamente emerge daí pode ser corroborado no espaço da cultura. Nas artes plásticas, parte desse sentido está latente no chamado hiperrealismo, que lotou a Pinacoteca de São Paulo no ano passado com a exposição das obras do australiano Ron Mueck, artista cuja ligação seminal com o mercado da publicidade e do cinema certamente não é por acaso. Na contramão da arte conceitual, o hiperrealismo de Mueck trabalha no estreitamento radical das possibilidades de construção intelectual do observador. Isto porque, se é verdade que não esgota as elaborações pessoais (mas alguma arte esgota?), por outro lado direciona a todo instante essas elaborações para a mundanidade da existência já sobejamente conhecida. Confirmando a vida burguesa com imagens que são o paroxismo dessa mesma vida (inclusive na sua solidão), o hiperrealismo de Mueck cria um jogo inesperado de expectativas e resultados. O real, dirimido em suas partes infinitesimais, assume o aspecto de coisa estranha, e estranhamente flerta com o irreal, porque nenhuma realidade tem a qualidade de expor-se nos mesmos termos: tão francos, transparentes e duros. É assim que o hiperrealismo retira de si todo espaço de sombra para relançá-lo sobre o mundo lá fora, de carne e osso. Em outras palavras, seu excesso de luz torna opaca e incerta a vida ao redor, resultado que o conserva do discurso publicitário, embora ambos operem sobre o mesmo núcleo de problemas.
Na indústria do cinema, talvez fosse possível vincular ao grau zero da ideologia um mote cada vez mais comum, visível em produções que vão de Tropa de Elite a 007 contra Spectre (última continuação da franquia James Bond) – e que poderia ser resumido na seguinte frase: o inferno não são os outros, o inimigo não mora ao lado. Atormentados pelos desdobramentos tentaculares do próprio ofício (lembre-se que Bond, em Skyfall, de 2012, pensa inclusive em renunciar aos afagos das bondgirls e se aposentar), tais heróis descobrem continuamente e sem assombro que a maior ameaça de fato não está “do outro lado”, mas reside no interior do “mundo livre”, e sugerem que as instituições democráticas do Estado de Direito possuem algo de mera fachada “para francês ver”. A isso refere o esloveno Slavoj Žižek quando, à propósito de The Truman Show (1998), recorda que “a última fantasia paranóica americana é a do indivíduo vivendo numa idílica cidadezinha californiana, um paraíso consumista, e que subitamente começa a suspeitar de que o mundo onde vive é falso, um espetáculo encenado para convencê-lo de que vive no mundo real, enquanto ao redor só existem atores e extras num gigantesco show”. A experiência deste espetáculo hiperrealista ao redor é, segundo Žižek, “irreal à sua maneira”, “sem substância”, no que conversa com as imagens de Mueck. À diferença de The Truman Show, entretanto, os filmes recentes colocam suas personagens como viventes numa “encenação da vida real”, constrangidos a seguir adiante sob o véu rasgado das velhas ilusões.
Ao que estarão ligados todos esses reconhecimentos sobre a substância cinzenta da vida contemporânea? À queda de todas as expectativas suscitadas pelo socialismo – do legado estalinista no século 20 aos esforços recentes do partido grego Syriza, podados brutalmente pela troika (Eurogrupo, Banco Europeu e FMI), passando pelo esgotamento dos governos de centro-esquerda na América Latina – segue-se a derrocada das promessas feitas também pelo liberalismo e pela direita. Assunções vergonhosas, impensáveis na década de 1990 (como a do Banco Mundial que admite ter agravado ainda mais as vidas dos miseráveis a quem deveria proteger; ou do FMI acerca dos equívocos do receituário neoliberal aplicado à reestruturação grega logo após 2008), tais assunções surtiram um efeito inesperado no que diz respeito às expectativas de construção de uma nova sociedade: vieram realizar o mea culpa sobre as “distorções do sistema” e de suas frustradas promessas de redenção pelo free market sem, no entanto, arremessá-las ao mármore do inferno das ideologias (como ocorreu com o socialismo). Exemplo disso são as pressões exercidas hoje sobre a Grécia pelos mesmos que, há três anos, foram responsabilizados pelo agravamento de sua crise.
Alguém dirá que ainda é muito cedo para afirmar que o receituário neoliberal se safou satisfatoriamente das encrencas que ele mesmo criou. Ou é isso, ou a moral da história é outra, mais engenhosa, e se vincula à emergência de um novo paradigma nos processos de legitimação e deslegitimação das políticas postas em prática por governos e instituições estatais e privadas. Como parte constituinte deste novo paradigma (se a hipótese é verdadeira) poderíamos citar a capacidade patente das grandes corporações de se posicionarem, não como obstáculos às transformações planetárias urgentes mas, ao contrário, justamente como a via principal através da qual essas transformações podem e devem se dar. Alguns dos ecologistas mais céticos (para não dizer "realistas") apostam, por exemplo, que a única saída à crise climática mundial seria a criação de mecanismos legais que regulamentassem a exploração e a depredação da natureza, inserindo fauna e flora na lógica do mercado. Em escala reduzida, este raciocínio se encontra em declarações de biólogos e funcionários governamentais que, à sombra da morte do leão Cecil por um pacato dentista de Minnesota (EUA), Walter Palmer, no ano passado, insistem que a única proteção possível aos grandes felinos não seria a proibição completa da caça, mas a cobrança de 1 milhão de dólares pela “licença para matar”. O próprio Banco Mundial já teria investido 700 mil dólares em Moçambique, em 2014, “a fim de promover a caça esportiva como parte de um fundo de conservação de 40 milhões de dólares”.
Se é certo que o capitalismo contemporâneo internalizou parcela importante das críticas a ele dirigidas e que novas formas de neutralização das oposições estão em jogo, resta insistir na lição jacobina da prerrogativa do político sobre a ordem jurídica. Vale lembrar que, na América Latina, a rica tradição dos “fora da lei” – com Zapata, Sandino ou mesmo Zumbi – não versa sobre outra coisa: o resgate constante de sua memória ainda significa garantia, para muita gente, de que a história não cessou e uma ideia popular de democracia será cumprida
*Fábio Salem Daie é jornalista e pesquisador no programa de pós-graduação da Universidade de São Paulo e um dos autores de "Thomas Piketty e o Segredo dos Ricos", ed Venetta.
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
[Visto no Brasil Acadêmico]
Visto que o período da Assembléia Nacional Constituinte (1789-1791) fora dominado pela posição girondina – moderada no que tangia à Igualdade e radical no que dizia respeito à proteção da Propriedade –, os jacobinos se viram desde o início conduzidos a um dilema: no contexto frágil da Primeira República, tendo a conquista da Constituição como expressão máxima do acordo entre as forças nacionais, como aprofundar seu caráter democrático sem colocar em risco a própria revolução? As contradições se agravam e o rei Luís XVI é executado no início de 1793. O descontentamento crescente da população mais pobre leva os jacobinos à supremacia da Convenção, que deve apontar um rumo ao país. A França já se encontrava então em guerra com potências monárquicas e a unidade nacional se transformara em ponto crítico. Foi nessa fase de grandes tensões que os jacobinos, com a Constituição como pedra-de-toque da unidade, assumiram posições tais como: “Os infelizes são a força da terra; eles têm o direito de falar como donos aos governos que os negligenciam”; ou ainda: “Quando o governo viola os direitos do povo, a insurreição é, para o povo, e para cada porção do povo, o mais sagrado dos direitos e o mais indispensável dos deveres”.
Pese a complexidade do processo revolucionário, chama a atenção o fato de que, no mesmo período em que instituíam um código positivo de leis, aqueles deputados buscassem resguardar a resistência e a sublevação como direitos fundamentais, caso a Constituição viesse a ser desrespeitada pelas autoridades. O processo traumático, que colocara em xeque o direito divino do rei e limitara suas ações, tinha requerido de seus partidários o esforço de elaboração de uma nova legitimidade (poder-se-ia dizer: de uma nova narrativa do mundo), apta a sustentar no âmbito do Direito a lenta reestruturação social encabeçada pela burguesia. Se essa narrativa se via em disputa, naquele momento, entre as frações mais oligárquicas e mais populares da burguesia, os jacobinos (ligados a esta última) buscavam garantir uma interpretação da democracia como um “ponto de excesso” em relação ao Estado de Direito e o reconhecimento da legalidade da “violação política”.
Desnecessário mencionar o que isto significava, por exemplo, às colônias francesas, onde o trabalho escravo se mantinha no mesmo momento em que, na metrópole, declarava-se que “os homens nascem livres e permanecem livres e iguais em direitos” .4 Embora considerada legal, a escravidão dificilmente poderia ser mantida como instituição legítima à luz dos novos acontecimentos. De fato, chegou a ser abolida, em fevereiro de 1794, pressionada pelo desenrolar da revolução dominicana liderada por Toussaint L’Ouverture (1743-1803). No romance histórico El Siglo de Las Luces (1962), o cubano Alejo Carpentier narra a trajetória de Víctor Hugues, designado pela Convenção para levar às colônias caribenhas a nova ordem fundada com a Primeira República. Ao se debruçar sobre os descaminhos do processo revolucionário francês, Carpentier se debruça sobre a própria Revolução Cubana. Seu clássico traça certa distinção essencial entre a legitimidade das causas do processo social e a (quase previsível) ilegitimidade das razões de seus múltiplos atores individuais.
Vale lembrar que as duas coisas – a democracia como “ponto de excesso” em relação ao Estado de Direito e a distinção entre processo social e seus protagonistas – são largamente ignoradas em nossos dias. Este “ponto de excesso” e aqueles que ali se posicionam são alvo de crescente deslegitimação e criminalização.
A revolução antiimperialista também foi tema do psiquiatra martiniquês Frantz Fanon (1925-1961), autor de Les Damnés de la Terre (1961). Após participar dos conflitos na Argélia, Fanon defendeu que a mera descolonização dos territórios ocupados pelos europeus não constituía retratação suficiente. Seria preciso, segundo ele, que a Europa assumisse responsabilidade moral e econômica pela destruição das bases produtivas das populações subjugadas e, consequentemente, pela desagregação das formas de vida social. Porém, Argel não era Paris. Qual a garantia de Fanon para exigências não previstas em contrato? Bastaria que olhássemos, hoje, à tragédia de milhões de imigrantes que tentam adentrar a União Europeia. A resposta é: a história. Continua...
[next]
Narre, Forrest, narre!
Diante de tais fatos, a literatura moderna, até então em sua fase “heróica” (à qual pertenceria Balzac), entra em crise. A expressão mais alta dessa crise, segundo Lukács, seria uma bifurcação. De um lado, a corrente do realismo crítico, que vê na resistência à progressiva brutalização do indivíduo pelo capitalismo uma expressão justa do tempo histórico: o realismo salvaguardaria, por assim dizer, as conquistas realizadas até ali pelas sociedades ocidentais modernas (um exemplo seria a obra de Flaubert). De outro lado está a corrente não-realista, que encara tal brutalização como processo inelutável, em que o indivíduo se vê condenado paulatinamente a espectador (e não mais protagonista) de um mundo que se fecha à própria compreensão (aqui, Lukács insiste no naturalismo de Zola).
Para Lukács, existe uma ligação íntima entre o naturalismo do século 19 e o modernismo vanguardista do século 20. No romance naturalista, o alheamento das personagens dos principais acontecimentos favorece o nivelamento das experiências: niveladas, não mais hierarquizadas, tais experiências falham em fornecer sentido à vida. No século 20, este nivelamento assume uma forma singular. Em algumas das principais obras, surge na forma de périplos que se esgotam em si mesmos. É uma ação vazia, porque seu resultado não significa modificação alguma, seja no mundo ou no foro íntimo da personagem. Ulysses (1922), de James Joyce, é possivelmente a maior expressão dessa corrente. O teatro de Samuel Beckett seria sua expressão paroxística, porque fundada numa inação exasperante. Sob essa perspectiva – de uma ação rebaixada, que nada transforma – chegamos a um tempo também rebaixado, que nada traz (nem pode trazer) de novo. É um tempo de perpetuidades, contrário em tudo ao tempo de transformações. Ação vazia e tempo vazio são, portanto, complementares.
Um caso mais recente dessa modalidade de ação é aquele do filme Forrest Gump (1994), lançado no auge da era neoliberal. Ali, a recapitulação de parte do século 20 norte-americano assume a forma de uma série cronológica de eventos, todos precariamente articulados, alguns sequer no nível de uma causalidade rudimentar. Da ascensão do rock and roll aos impactos sobre a moral conservadora dos golden years, em 1950; passando pela Guerra do Vietnã, no contexto da Guerra Fria, e pelos movimentos por Direitos Civis contra a discriminação racial e sexual, em 1960; até o escândalo Watergate e a escalada do poder corporativo na política no início do decênio seguinte... Percorremos em sequência impactos, conflitos, lutas, corrupção.
Quarenta anos separam o pequeno Forrest daquele, adulto, que narra sua história aos transeuntes num ponto de ônibus. História notável, diga-se de passagem, porque unida por melindrosos fios aos acontecimentos centrais de seu país. E, não obstante, a partir do filme pouco ou nada podemos dizer em que os Estados Unidos da infância do narrador mudaram em relação aos Estados Unidos de sua madurez. Sequer poderíamos apostar qual desses fatos (decisivos na vida do Estado-nação) foi mais decisivo em sua própria vida. A reflexão de Simone de Beauvoir de que foi a Segunda Guerra Mundial que a despertou para o vínculo indissociável de sua existência com a trajetória do mundo e da França é aqui (em Forrest Gump) completamente estranha.
Testemunha privilegiada das tragédias de seu tempo, Forrest não diz absolutamente nada sobre o caráter dessas tragédias. É como se elas lhe escapassem. Subjetivamente, Forrest seria Forrest tendo crescido na América, na França, em Israel. Não há nada em seu modo de ver que prove que ele é um yankee (isso explica em grande medida, segundo creio, o sucesso mundial de um filme que trata, supostamente, do percurso íntimo dos EUA). Para existir, bastaria que seu relato seguisse permeado de périplos incríveis, real interesse da trama. Os conflitos não marcam rupturas (pessoais ou coletivas), mas servem como pano de fundo à narração de alguém que é quase aquilo mesmo que narra.
Suspeitamos assim, contra todas as evidências, que o tempo não passa em Forrest Gump. À sua maneira, o filme partilha da perspectiva (da qual tratamos anteriormente) de uma ação esvaziada, à qual corresponde um tempo homogêneo. Se olharmos em Beckett (tomemos o exemplo mais paradigmático), veremos que a ausência de ação e o tempo homogêneo estão vinculados necessariamente a outro fator: a falência do sujeito. Na obra do irlandês, a ruína da subjetividade e da razão se deve a um dado colossal: a sociedade, que conforma o indivíduo, entrou em colapso. Em Forrest (personagem), também há um sujeito falido. Nesse caso, entretanto, justificado por fatores mais adequados a uma sociedade que nega a própria desagregação: Forrest tem um problema biológico.
Por carecer de integridade mental, o relato de Forrest equipara-se ao relato de uma criança. Tudo é imediato, nada é mediato. Sua qualidade principal é o tom naïf. E, no que concerne à ingenuidade, nada é mais estranho a ela do que isto: a vida política. Como uma criança, Forrest não possui uma perspectiva política da realidade. É este, afinal, o núcleo ausente de toda a narrativa, e que poderia fornecer substância aos acontecimentos, dar-lhes sentido (à história dos Estados Unidos e à sua própria). Enfim, podemos dizer: o tempo não passa em Forrest Gump porque, no que concerne às representações que o homem faz de si mesmo, não existe tempo verdadeiro no exterior de uma perspectiva política sobre a existência.
Negamos acima que Forrest Gump narraria o percurso íntimo dos Estados Unidos. Agora, constatamos que é na chave da falsa historicidade que o filme fala algo concreto e atual sobre a realidade norte-americana (e, quem sabe, de nossa própria). Homérico, Forrest encarna a figura do narrador por excelência, de cuja narrativa, anti-homericamente, nenhuma lição se depreende. Esvaziada de sentido histórico profundo, este tipo de narrativa obstrui a enunciação de qualquer julgamento sobre a legitimidade dos processos sociais e sobre o valor de nossas ações até o presente, além de impedir que o sujeito encare a si mesmo como tal, responsável pelas mudanças do mundo.
Esta estratégia – de esvaziamento contumaz e velado do âmbito político – é justamente um dos traços que se fortalecem em nossos dias. Ela se estende do discurso sobre a corrupção (como dado “policialesco” e avulso na modernização do Estado brasileiro) às manobras redutoras variadas que consideram “democráticas” as manifestações populares em defesa de condições básicas de existência, ameaçadas por interesses antidemocráticos; ou que, em período de eleição, desejam fazer crer que a luta de classes é um discurso de ódio, oportunista e retrógrado, que profana o “altar natural” da fraterna unidade nacional. Em última instância, este esvaziamento do político visa garantir que se perpetuem os vetustos privilégios sociais que assombram a trajetória do país desde a colônia. Neste exato momento de crise profunda da Nova República, o combate a este tipo de narrativa (nas ruas, inclusive) ganha centralidade.Continua...
[next]
É pau, é pedra
A peça publicitária possui 30 segundos, mas contém um dado revelador. A empresa é a marca de tênis Olympikus e a estrutura do comercial também possui duas partes intercaladas: na primeira, cenas da opressão da vida cotidiana na metrópole; na segunda, pessoas correndo em grandes espaços abertos, próximos à natureza. Não há dúvida de que o efeito sedutor do filme se dá pela sucessão frenética das imagens, permeadas o tempo todo por um narrador em off. Pese a multiplicidade dos elementos envolvidos, o que chama a atenção é isto: contraposta às cenas de corrida, a assunção deliberada da violência causada pela rotina do trabalho, pela repetição sem finalidade e sem fim de tarefas conduzidas pelo autômato, pela negação de qualquer vida mental, pelos códigos de conduta impostos. Interessante é a imagem do escritório: contra o clichê do ambiente espaçoso, iluminado e clean, é posta em cena uma ambientação monocromática, apagada e sufocante. Tem-se a impressão de que, longe de ser a consolidação de uma ética do trabalho – que admite o cumprimento das obrigações, por exemplo –, dá-se uma aceitação das "leis laborais” sem mais justificativas, restando somente o imperativo do hard work. Aliás, a propaganda não desautoriza de forma alguma esta interpretação: o esforço físico intenso realizado fora das horas de trabalho é uma espécie de catarse, onde se dá a compensação das longas horas também intensas e mortificantes.
É a passagem do Work hard, fly right – bordão dos anos 1990 da empresa aérea Continental Airlines – ao Work hard, play hard, como reformulado pelo rapper norte-americano Wiz Khalifa, em 2012. Este "play hard" – com o qual dialoga sem dúvida o “espírito de desporto” do comercial da Olympikus – expressa muito das faltas e estragos causados por aquele "work hard" de uma década atrás. Khalifa explica: [I got] so much paper right in front of me it's hard to think / Bought so many bottles, it's gonna be hard to drink (...) Go hard, make sure you do it whatever is that you gotta do / That's your job / And niggas gonna hate, but that's no prob.
Arranjemos lado a lado ambos os discursos – de HSBC e Olympikus – e o que se insinua é que o establishment realizou certa internalização da crítica que, até há pouco tempo, o marxismo fazia ao trabalho alienado como “desefetivação” da vida, não apenas durante o expediente, mas durante o “tempo ocioso”. Franz Kafka já a sentiu no início do século 20, quando constatou que a escrita e o trabalho burocrático do escritório “não podem se tolerar mutuamente e não admitem uma felicidade comum a ambos”. Esta mesma incompatibilidade é problematizada por Ricardo Antunes em Os sentidos do trabalho (1999), acrescida do tema da intensificação do tempo de trabalho na era neoliberal. De ideologia de segundo grau – como Roberto Schwarz definiu as ideias liberais no Brasil escravista do século 19 –, tais exemplos da propaganda sugerem uma conjuntura na qual, frente à manutenção estrutural da ordem neoliberal (inclusive ou sobretudo por governos ligados à esquerda) e a neutralização recorrente de contra-narrativas que legitimem oposições ao status quo, mesmo a ideologia liberal de primeiro grau teria se tornado supérflua. As representações sobre o trabalho, assim, já não simulariam realizar destino pessoal algum, acolhendo aquele como uma dimensão morta da vida do sujeito. Tudo é o que é. Poder-se-ia dizer, parafraseando Drummond do período entre guerras, "chegou um tempo em que a vida é uma ordem. A vida apenas, sem mistificação". Teríamos chegado ao grau zero da ideologia liberal? Seria este um passo anterior ao seu esvaziamento completo porque esta ideologia ainda precisa sustentar, por negativo, não tanto a noção de aprimoramento quanto a de impossível superação?
O sentido conformista que imediatamente emerge daí pode ser corroborado no espaço da cultura. Nas artes plásticas, parte desse sentido está latente no chamado hiperrealismo, que lotou a Pinacoteca de São Paulo no ano passado com a exposição das obras do australiano Ron Mueck, artista cuja ligação seminal com o mercado da publicidade e do cinema certamente não é por acaso. Na contramão da arte conceitual, o hiperrealismo de Mueck trabalha no estreitamento radical das possibilidades de construção intelectual do observador. Isto porque, se é verdade que não esgota as elaborações pessoais (mas alguma arte esgota?), por outro lado direciona a todo instante essas elaborações para a mundanidade da existência já sobejamente conhecida. Confirmando a vida burguesa com imagens que são o paroxismo dessa mesma vida (inclusive na sua solidão), o hiperrealismo de Mueck cria um jogo inesperado de expectativas e resultados. O real, dirimido em suas partes infinitesimais, assume o aspecto de coisa estranha, e estranhamente flerta com o irreal, porque nenhuma realidade tem a qualidade de expor-se nos mesmos termos: tão francos, transparentes e duros. É assim que o hiperrealismo retira de si todo espaço de sombra para relançá-lo sobre o mundo lá fora, de carne e osso. Em outras palavras, seu excesso de luz torna opaca e incerta a vida ao redor, resultado que o conserva do discurso publicitário, embora ambos operem sobre o mesmo núcleo de problemas.
Na indústria do cinema, talvez fosse possível vincular ao grau zero da ideologia um mote cada vez mais comum, visível em produções que vão de Tropa de Elite a 007 contra Spectre (última continuação da franquia James Bond) – e que poderia ser resumido na seguinte frase: o inferno não são os outros, o inimigo não mora ao lado. Atormentados pelos desdobramentos tentaculares do próprio ofício (lembre-se que Bond, em Skyfall, de 2012, pensa inclusive em renunciar aos afagos das bondgirls e se aposentar), tais heróis descobrem continuamente e sem assombro que a maior ameaça de fato não está “do outro lado”, mas reside no interior do “mundo livre”, e sugerem que as instituições democráticas do Estado de Direito possuem algo de mera fachada “para francês ver”. A isso refere o esloveno Slavoj Žižek quando, à propósito de The Truman Show (1998), recorda que “a última fantasia paranóica americana é a do indivíduo vivendo numa idílica cidadezinha californiana, um paraíso consumista, e que subitamente começa a suspeitar de que o mundo onde vive é falso, um espetáculo encenado para convencê-lo de que vive no mundo real, enquanto ao redor só existem atores e extras num gigantesco show”. A experiência deste espetáculo hiperrealista ao redor é, segundo Žižek, “irreal à sua maneira”, “sem substância”, no que conversa com as imagens de Mueck. À diferença de The Truman Show, entretanto, os filmes recentes colocam suas personagens como viventes numa “encenação da vida real”, constrangidos a seguir adiante sob o véu rasgado das velhas ilusões.
Ao que estarão ligados todos esses reconhecimentos sobre a substância cinzenta da vida contemporânea? À queda de todas as expectativas suscitadas pelo socialismo – do legado estalinista no século 20 aos esforços recentes do partido grego Syriza, podados brutalmente pela troika (Eurogrupo, Banco Europeu e FMI), passando pelo esgotamento dos governos de centro-esquerda na América Latina – segue-se a derrocada das promessas feitas também pelo liberalismo e pela direita. Assunções vergonhosas, impensáveis na década de 1990 (como a do Banco Mundial que admite ter agravado ainda mais as vidas dos miseráveis a quem deveria proteger; ou do FMI acerca dos equívocos do receituário neoliberal aplicado à reestruturação grega logo após 2008), tais assunções surtiram um efeito inesperado no que diz respeito às expectativas de construção de uma nova sociedade: vieram realizar o mea culpa sobre as “distorções do sistema” e de suas frustradas promessas de redenção pelo free market sem, no entanto, arremessá-las ao mármore do inferno das ideologias (como ocorreu com o socialismo). Exemplo disso são as pressões exercidas hoje sobre a Grécia pelos mesmos que, há três anos, foram responsabilizados pelo agravamento de sua crise.
Alguém dirá que ainda é muito cedo para afirmar que o receituário neoliberal se safou satisfatoriamente das encrencas que ele mesmo criou. Ou é isso, ou a moral da história é outra, mais engenhosa, e se vincula à emergência de um novo paradigma nos processos de legitimação e deslegitimação das políticas postas em prática por governos e instituições estatais e privadas. Como parte constituinte deste novo paradigma (se a hipótese é verdadeira) poderíamos citar a capacidade patente das grandes corporações de se posicionarem, não como obstáculos às transformações planetárias urgentes mas, ao contrário, justamente como a via principal através da qual essas transformações podem e devem se dar. Alguns dos ecologistas mais céticos (para não dizer "realistas") apostam, por exemplo, que a única saída à crise climática mundial seria a criação de mecanismos legais que regulamentassem a exploração e a depredação da natureza, inserindo fauna e flora na lógica do mercado. Em escala reduzida, este raciocínio se encontra em declarações de biólogos e funcionários governamentais que, à sombra da morte do leão Cecil por um pacato dentista de Minnesota (EUA), Walter Palmer, no ano passado, insistem que a única proteção possível aos grandes felinos não seria a proibição completa da caça, mas a cobrança de 1 milhão de dólares pela “licença para matar”. O próprio Banco Mundial já teria investido 700 mil dólares em Moçambique, em 2014, “a fim de promover a caça esportiva como parte de um fundo de conservação de 40 milhões de dólares”.
Se é certo que o capitalismo contemporâneo internalizou parcela importante das críticas a ele dirigidas e que novas formas de neutralização das oposições estão em jogo, resta insistir na lição jacobina da prerrogativa do político sobre a ordem jurídica. Vale lembrar que, na América Latina, a rica tradição dos “fora da lei” – com Zapata, Sandino ou mesmo Zumbi – não versa sobre outra coisa: o resgate constante de sua memória ainda significa garantia, para muita gente, de que a história não cessou e uma ideia popular de democracia será cumprida
Fábio Salem Daie*
*Fábio Salem Daie é jornalista e pesquisador no programa de pós-graduação da Universidade de São Paulo e um dos autores de "Thomas Piketty e o Segredo dos Ricos", ed Venetta.
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
[Visto no Brasil Acadêmico]
"Brasil Acadêmico"?? Esse nome é uma piada? Deve ser, julgando pela qualidade esquerdopata dos textos apresentados aqui. Parecem os temas das redações "democráticas" impostas pelo ENEM...TOMEM VERGONHA NA CARA, SEUS BOST@S COMUNISTAS!
ResponderExcluirSei. Tudo que não concorda com você não é acadêmico, não é? Você gostaria de ver um texto do Donald Trump aqui? Podemos providenciar. ewntrevista com o Serra ou FHC? Tem também. Mas você verá dentro de alguns anos a vergonha que é esse período histórico de ira onde vândalos escondidos pelo anonimato xingam e colocam suas ideia ACADÊMICAS só porque podem. Resolvi publicar esse comentário para manter o viés democrático. Mas acredito que você possa assinar seu comentário e mostrar todo seu descontentamento com muito mais urbanidade. Afinal, nosso maior problema é a falta de educação. Em lato sensu.
ExcluirO velho ,desde 1917,mi mi mi esquerdopata!
ResponderExcluirViu? Já melhorou. Agora só falta sair do anonimato. O problema não é ser de esquerda. O problema é que o capitalismo NÃO FUNCIONA. Aí você começa a ter que intervir para distribuir riqueza pois foi provado ACADEMICAMENTE que o maior problema da atualidade é a concentração de riqueza. Não precisa de comunismo. Uma boa social-democracia, como a dos países nórdicos, ou mesmo do Canadá, já resolve o problema.
Excluir