Rubem Alves e a escola ideal

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Vídeos mostram a visão rubemalveana de uma escola dos sonhos dos educadores. O que seria a educação ideal?

Vídeos mostram a visão rubemalveana de uma escola dos sonhos dos educadores. O que seria a educação ideal?

Rubem Alves é um psicanalista, educador, teólogo e escritor brasileiro, é autor de livros e artigos abordando temas religiosos, educacionais e existenciais, além de uma série de livros infantis.

No pequeno trecho a seguir, ele propõe um tipo de professor que nada ensina, pois o conhecimento está disponível por toda parte. Defende que exista um professor de espantos.



Nesse outro vídeo, Rubem Alves analisa a Escola da Ponte. A controversa escola alternativa portuguesa.



Matéria do programa Fantástico visita a Escola da Ponte.


[Via BBA]

Eu acho que a função fundamental do professor é provocar a ereção da inteligência dos alunos.



Entrevista de Rubem Alves ao Programa Roda Viva (2003).

Paulo Markun: Boa noite. Hoje é o dia internacional da alfabetização e o governo federal aproveitou a data para lançar o programa Brasil Alfabetizado. A meta é alfabetizar três milhões dos vinte milhões de analfabetos existentes no país, segundo dados do Ministério da Educação. E aqui em São Paulo, a educação ganha um debate especial esta semana com o Saber 2003, um congresso e uma feira que vão reunir os mais importantes educadores brasileiros e também estrangeiros numa discussão sobre a escola, sobre o ensino, sobre o aprendizado. A educação, sempre colocada como questão fundamental, continua sendo um desafio para o governo e para a sociedade, e esse é o tema do Roda Viva desta noite. O nosso entrevistado é o educador Rubem Alves, professor emérito da Unicamp, psicanalista, bacharel em teologia e doutor em filosofia. O professor Rubem Alves há muitos anos tem se colocado no centro deste debate sobre o ensino no Brasil e tornou-se uma referência na busca de mudanças na forma e no conteúdo do ensino brasileiro.

[Comentarista]: O Brasil não é só um país ainda com altos índices de analfabetismo e evasão escolar. Talvez seja possível dizer que o Brasil também é um recordista em diagnósticos sobre problemas de educação, análises e estatísticas que há vários anos superam em quantidade as propostas de políticas públicas para mudar o quadro educacional no Brasil. Ainda temos, segundo o Ministério da Educação, aproximadamente vinte milhões de analfabetos, e os que não são sequer concluem o [ensino] básico. De cada cem alunos matriculados no ensino fundamental, 41 abandonam a escola bem antes de terminar o ciclo. Os que continuam apresentam alto grau de repetência e em média gastam mais de dez anos para concluir um ciclo de oito. Os que chegaram ao final e conseguiram um diploma ainda vão enfrentar um outro problema: em geral tiveram um ensino de má qualidade que resultou em aprendizado fraco, em menor conhecimento, e menos habilidades para enfrentar a vida e o mercado de trabalho. As causas são as mesmas de sempre: faltam investimentos e competências, faltam políticas públicas de educação e falta também muita pedagogia. O debate que se abre em torno da educação não se limita mais ao investimento público, é preciso também, na visão de educadores, rever a idéia de ensino e a idéia de aprendizado. O professor Rubem Alves, autor de dezenas de livros e crônicas, tem trazido para esse debate um pensamento crítico e provocador. Instiga os pais a um interesse de verdade pela educação, instiga os professores a uma competência maior para o ensino, instiga a todos por um ensino que antes de tudo ensine a aprender. Provoca por uma educação romântica e estampa na capa de seu mais conhecido livro O sonho por uma escola que é possível existir [A escola que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir, Ed. Papirus, 2003].

Paulo Markun: Para entrevistar o educador e escritor Rubem Alves, nós convidamos a escritora Tatiana Belinq; Gilberto Dimenstein, integrante do conselho editorial do jornal Folha de S. Paulo, autor de livros educacionais e criador da Cidade Escola Aprendiz; Leila Ianonne, assessora pedagógica da Secretaria de Educação do estado de São Paulo; Leonardo Trevisan, professor da PUC, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e jornalista do jornal O Estado de S. Paulo; Nélio Bizzo, vice-diretor e professor titular da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e vice-presidente da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação; e Paola Gentile, editora da revista Nova Escola. O Roda Viva está sendo transmitido em rede nacional para todos os estados brasileiros e para Brasília também. Boa noite, professor Rubem Alves.

Rubem Alves: Boa noite. É um prazer estar aqui.

Paulo Markun: Eu queria começar fazendo uma provocação e queria declarar em alto e bom som aqui que eu, na verdade, vou dirigir este programa como um provocador barato, porque eu tenho a sensação de que a bancada que foi montada, em que pese alguma peculiaridade aqui e ali, na verdade transforma isto aqui numa ação entre amigos. E a provocação que eu faria é a seguinte: eu fui um bom aluno, graças a minha mãe que era muito rígida e que ficava sentada do meu lado e me obrigava a estudar. Pelo menos naquele início do jogo, quando ela ainda estava presente, eu fui um bom aluno. E às vezes, eu fico perguntando se essa radicalização que o senhor apresenta nos seus livros não corre o risco de fazer com que a gente descambe para o outro lado. E eu sei que meu filho de 17 anos está assistindo ao programa, então eu estou fazendo também o papel do pai preocupado com um menino que não gosta de estudar. Não existe o risco, falando sério agora, de a gente, na medida em que há uma crítica muito intensa às mazelas do sistema educacional," jogar o bebê junto com a água do banho" , ou seja, dizer o seguinte: “Não tem conserto, então vamos acabar com tudo"?

Rubem Alves: Você veja que várias pessoas têm me feito essa crítica, mas na verdade, por exemplo, o que você está dizendo, que foi bom aluno, e eu e Gilberto [Dimenstein] falamos naquele livro [Fomos maus alunos, Ed. Papirus, 2003] nós não escrevemos... - nós falamos como maus alunos, o fato de eu ter sido mau aluno -, não fui muito mau aluno não, acho que o Gilberto, no curso primário, foi pior do que eu. [risos]

Gilberto Dimenstein: Só no primário?

Rubem Alves: Primário, sei lá. Mas o que acontecia era o seguinte. É que na verdade eu me saí bem no curso primário porque eu achava tudo tão fácil que não me gastava nada. Mas o meu interesse... eu tinha avidez de conhecer coisas. Por exemplo, [quando] eu tinha oito anos de idade, eu inventei que ia criar galinhas. Isso não tinha na escola, se eu chegasse lá para a professora e dissesse: “Professora, como eu faço para criar galinhas?”. Ela não ia me dizer nada, ia me dizer que não estava no programa. Eu saí então pesquisando. Quer dizer, é preciso estudar. E as crianças... coisa extraordinária... Sabe que Aristóteles começa a Metafísica dele dizendo: “Todos os homens têm por natureza o desejo de aprender” [Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.), filósofo grego cujos estudos mais conhecidos foram reunidos pelo filósofo Andrônico de Rodes e por ele intitulados Metafísica, que trata do estudo da filosofia primeira, das causas e dos princípios da existência, do ser enquanto ser, distinguindo diferentes graus do conhecimento como o empirismo, a ciência e a arte]. Eu acho que Aristóteles estava errado. Então, ao fazer uma pequena correção: “Todos os homens - vírgula - enquanto crianças - vírgula - têm naturalmente o desejo de aprender”. Então, o que eu quero é uma escola que não seja determinada por decisões de burocratas ausentes, mas uma escola que seja atenta à imensa curiosidade, ao desejo que as crianças têm de aprender. Veja você: ter o mesmo currículo para crianças das praias de Alagoas, das populações ribeirinhas da Amazônia, das montanhas de Minas Gerais, das favelas de São Paulo e do Rio Grande do Sul, o que se pressupõe é que todas as crianças são iguais, têm os mesmos interesses, na mesma hora, no mesmo ritmo. E isso patentemente não é verdade. Então, se eu faço a crítica da escola, eu faço a crítica porque eu acho ensinar uma coisa tão maravilhosa, e um dos meus livros tem o título: A alegria de aprender. Deixa eu dizer outra coisa para você. Eu viajo muito pelo Brasil e falo sempre as mesmas coisas. Há vários anos que eu só falo a mesma coisa. Variações sobre um tema dado. E a coisa que me impressiona profundamente é como é que existe sintonia. Os professores não ficam irritados com essas críticas porque eles dizem: “É isso mesmo, é isso mesmo! É isso que nós estamos sentindo e não temos forma de articular”. De modo que eu digo para você que eu não acredito muito que vá acontecer de "jogar a criança junto com a água", não. Eu acho o contrário, que essas perguntas, essas provocações estão dando coragem às pessoas para dizer que elas estão sentindo igual.

Nélio Bizzo: Então se o senhor me permite, vou fazer mais uma provocação, vou seguir essa linha aberta pelo Markun. A crítica ao currículo que o senhor acaba de fazer é uma crítica que se aplicaria bem, por exemplo, à França, ou mesmo à Suíça. Eu estava conversando há pouco tempo com uma diplomata brasileira que estava servindo na Suíça, e ela dizia que tinha que mudar de bairro, e tinha que mudar os filhos de escola. E aí, ela preocupada, disse para o diretor: “Espere eles acabarem o bimestre, pelo menos, porque aí eles vão para outra escola e pegam já o bimestre no começo”. E o diretor disse: “Não tem problema nenhum, porque os seus filhos vão sair de uma escola no dia dez e no dia 11 eles vão num outro bairro ter exatamente a aula seguinte que eles teriam naquela escola”. Quer dizer, essa sincronia existe em sistemas europeus altamente desenvolvidos...

Rubem Alves: Sim.

Nélio Bizzo: ... mas ela não existe na escola brasileira. Nós não podemos falar no currículo nacional, nós temos diretrizes curriculares nacionais, no Brasil, mas a escola é autora do seu próprio projeto pedagógico. E eu iria além, eu diria que seria difícil nós encontrarmos duas escolas brasileiras, mesmo dentro da cidade de São Paulo - é uma provocação - que tenham exatamente o mesmo currículo. Então, como é que o senhor explica essa crítica à sincronicidade dentro de um país que é absolutamente diacrônico.

Paola Gentile: Só ilustrando, professor, agora em junho, toda a equipe da revista Nova Escola [revista educativa, apresenta temas educacionais como entrevistas com educadores, experiências pedagógicas, planos de aula, etc] visitou o Brasil inteiro, todos os estados, à procura de escolas que atendessem justamente essa diversidade cultural. A gente conheceu escolas remanescentes de quilombos que usam a cultura negra como base da educação, escola para filhos de pescadores no Sul, no Nordeste, na região Norte, escolas rurais que têm o tempo e o espaço completamente adaptados à cultura da região, os filhos dos agricultores são liberados na época da colheita e do plantio para ajudar em casa. Então, eu acho que a LDB [Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei federal nº 9394 aprovada em 1996] atual permitiu, deixou na mão da escola essa flexibilização. Então, é um caminho que está sendo trilhado, que está começando. É esse o caminho que o senhor propõe para a escola?

Rubem Alves: Olha, uma das coisas que mais me estimulam no Brasil atualmente é, ao viajar por aí, a gente se defrontar com a fantástica variedade de experimentos. Só para dar uns exemplos bem simples, eu estive em Palmas, em Tocantins, e me contaram coisas incríveis que estão acontecendo numa cidade a quatrocentos quilômetros de Palmas. As professoras e as crianças começaram a ficar preocupadas com a situação dos velhos, aqueles velhos agricultores, analfabetos, cujas mãos são quase patas de tão grossas. E elas resolveram criar então o programa que não está previsto, não está em currículo nenhum, resolveram criar um programa de relação com os velhinhos. E aconteceu uma coisa muito interessante porque o programa era o seguinte. Os velhinhos contariam histórias, daquele tempo, para as crianças sobre as lendas, os brinquedos, e as crianças e adolescentes iam contar para os velhinhos sobre as coisas de agora, que têm a ver com internet. E então, aqueles velhinhos que jamais poderiam pegar em um lápis para escrever porque a mão não lhes obedecia mais, descobriram que no computador bastava apertar uma tecla para a letra aparecer pronta. Se apertar outra, a letra cresce, se apertar outra, fica vermelha. E eles descobriram então que agora através do computador eles poderiam ser alfabetizados. Uma coisa que eu nunca pensei. Em um outro lugar, criaram um programa de bibliotecas ambulantes. Quando a gente pensa em biblioteca ambulante, a gente pensa num ônibus, numa Kombi cheia de livros que vai para os bairros. E a biblioteca ambulante deles era um carrinho de pedreiro cheio de livros, eles iam para uma rua de periferia, faziam uma barulhada, palhaços, aquela zorra total, todo mundo ia para rua e eles distribuíam livros. De modo que existe atualmente uma pipocação – gosto muito da idéia das pipocas – de experimentos interessantes que estão acontecendo. Estou vindo agora de Novo Hamburgo, e segundo os programas de lá, os professores de português e literatura me disseram que os adolescentes têm que estudar, ler os livros de Machado de Assis [Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), escritor brasileiro que figura entre os maiores escritores da literatura mundial] que eles não queriam ler, porque disseram que Machado de Assis era muito chato e usava uma linguagem que eles não queriam. Os professores então tiveram a idéia maravilhosa e sugeriram aos alunos que eles fariam filmes sobre livros de Machado de Assis. Foi uma excitação total, todos eles trabalhando para produzir filmes. Então, há uma imensa criatividade acontecendo. Voltando ao seu caso. Nós, na realidade, não conseguimos ainda a perfeição de relojoeiro que têm os suíços. Esta perfeição de todas as coisas acontecerem ao mesmo tempo, não acontece só com a escola, mas com todas as coisas. No ônibus, por exemplo. O Paulo Freire me contou, ele viveu em Genebra, e lá tem os pontos de ônibus dizendo os horários: 12 horas e seis minutos. Um dia ele estava no ponto e o ônibus atrasou dois minutos, e ele começou a ficar irritado. Quando ele ficou irritado porque o ônibus tinha atrasado dois minutos, disse: “É hora de voltar para o Brasil”. Mas vamos voltar ao seu caso da sincronização. Eu acho que essa unidade de programas se manifesta de maneira mais brutal, quando está em jogo a questão dos vestibulares, porque diante dos vestibulares todas as diferenças e todas as experiências desaparecem, porque todos têm que entrar realmente no clima de linha de montagem, querendo ou não. Então, a sensação que eu tenho é que a tendência é que essas experiências abertas, não tão sincronizadas, sejam [suspiro] engolidas pela lógica.

Nélio Bizzo: Vão se afunilando...

Rubem Alves: Por isso é que eu considero o vestibular, eu tenho medo de dizer que é o maior fantasma, o maior monstro da educação brasileira, talvez não seja isso, o analfabetismo é o maior. Mas eu considero os vestibulares um dos maiores desastres na nossa educação porque eles são não somente inúteis como são perniciosos para a educação.

Nélio Bizzo: O senhor me permite um...

Rubem Alves: Opa!

Nélio Bizzo: Aprofundar isso?

Rubem Alves: Sim.

Nélio Bizzo: É evidente que os vestibulares têm uma imagem muito ruim, mas eu já ouvi uma defesa dos vestibulares, há pouco tempo atrás, que me impressionou bastante. Eu ouvi que os vestibulares são o que mais se aproxima do ideal republicano na história do Brasil. Ou seja, no vestibular o sujeito é anônimo; o pai, a mãe, a família, a herança, nada disso conta. E no Brasil essa é uma tradição recente. A história diz: “Você sabe com quem está falando?” Isso pesa na história brasileira, não é? Mas num vestibular são todos anônimos e todos são iguais. O senhor não acha que o vestibular, por esse lado, traz uma contribuição republicana?

Rubem Alves: Não são todos iguais porque todo mundo sabe que para entrar no vestibular, essa é a regra geral, embora haja exceções, você tem que passar pelos caríssimos cursinhos, e no cursinho vale o “você sabe com quem está falando?”, ou seja, é preciso ter um alto poder aquisitivo. De modo que eu acho que tem alguma coisa errada com esse seu argumento. A Igreja Católica desenvolveu aquela teologia da opção preferencial pelos pobres, que é uma coisa muito bonita. Os vestibulares desenvolveram a opção contrária: opção preferencial pelos ricos.

Paulo Markun: Vestibulares das escolas públicas, porque das particulares é opção preferencial pelos pobres, desde que eles tenham dinheiro para pagar mensalidade.

Rubem Alves: Claro, tem que ter dinheiro para pagar. Então, acontece aquela coisa terrível que aqueles, no caso de vestibulares, aqueles que tiverem dinheiro para pagar os cursinhos, entram nas universidades gratuitas, USP [Universidade de São Paulo], Unicamp [Universidade Estadual de Campinas] e etc, e os outros que não tiveram, os mais pobres, são obrigados a pagar para freqüentar as universidades particulares.

Leonardo Trevisan: Professor, posso lhe fazer uma pergunta? Como é que a gente substitui isso?

Rubem Alves: Como é que substitui?

Leonardo Trevisan: Porque é fácil, né? Criticar o vestibular é fácil, é como falar da Suíça. Suíça é uma maravilha, realmente. É melhor a gente nem comentar, esquece, viu Markun. Tem 18% na Suíça que não admite, puramente, é racista declarado. Então, antes de elogiar a Suíça, vamos devagar. Tem outros 20%... Deixe para lá. Vamos falar de vestibular. Professor, o que a gente põe no lugar? Vou lhe contar um caso. Uma família com três filhos, os três com as mesmas oportunidades, iguais, os pais colocam os filhos na mesma escola, e tudo mais. Dois deles resolvem que não vão aproveitar aquele esforço todo oferecido, e um resolve que vai aproveitar. O caso é concreto. Como é que a gente faz? Um entrou, os outros dois não entraram. Vestibular no Brasil é mais ou menos como metrô: funciona. Como é que a gente faz, professor? O que a gente põe no lugar? Porque é fácil criticar, mas quero saber o que põe no lugar.

Rubem Alves: Exatamente, você veja, estou me lembrando de um versinho do Mário Quintana [(1906-1994), poeta e tradutor brasileiro], e eu não sei se me lembro exatamente, alguns de vocês aí poderiam me ajudar. Ele diz assim; "Utopias, dizem, são irreais, mas isso não é razão para não tê-las. E tristes seriam as noites sem a luz mágica das estrelas”. ["Das utopias: Se as coisas são inatingíveis... ora!/ Não é motivo para não querê-las/ Que tristes os caminhos se não fora/ A mágica presença das estrelas!"]

Leonardo Trevisan: Com certeza.

Rubem Alves: O fato de não podermos realizar um ideal não nos deve fazer deixar o ideal e simplesmente nos acomodarmos à situação tal como existe. Eu, há muitos anos, sofro com o vestibular a partir da experiência com meus filhos, com a minha filha, primeiro porque eu acho tudo inútil. Faz uns tempos que eu escrevi uma crônica, acho que saiu no Sinapse [era um dos cadernos do jornal Folha de S. Paulo], dizendo o seguinte: “Se eu fosse fazer vestibular, eu não passaria, os reitores das universidades não passariam, os professores das universidades não passariam, os professores dos cursinhos não passariam. Professor de português não ia conseguir resolver problemas de química e de física." Não é? Aí eu perguntei: “Os que prepararam as questões não passariam”. Interessante que quem prepara a questão não sabe que a grande questão do vestibular, para mim, não é questão de entrar na universidade, é o que ela faz com o que vem antes. Veja, a grande questão é: cai no vestibular ou não cai no vestibular. Poesia cai no vestibular ou não cai no vestibular? Música cai no vestibular ou não cai no vestibular? Então, tudo isso é abandonado porque os que fazem as questões determinam realmente o rumo da educação que vem no primeiro... eu até sou antiquado [refere-se ao fato de estar usando a denominação estabelecida pela Lei federal nº 5692, de 1971 e que já tinha sido alterada pela LDB, Lei federal nº 9394 de 1996], no primeiro [ensino fundamental, de acordo com a LDB nº 9394/96] e segundo grau [ensino médio]. Há muitos anos atrás, quando eu era professor da Unicamp, eu fui pró-reitor para assuntos de ensino e me dediquei a tentar modificar o vestibular da Unicamp. Reuni um grupo de amigos e trabalhamos muito nisso. E a coisa que nós queríamos naquela época era simplesmente criar um novo perfil de ideal de educação, porque o vestibular cria um ideal de saber. Então, o que nós queríamos era o seguinte: alunos que fossem mais capazes de fazer perguntas do que dar respostas porque as respostas estão nos livros.

Leonardo Trevisan: Sim.

Rubem Alves: A ciência é feita não com as respostas, ela é feita com as perguntas. E nós trabalhamos nesse sentido, nós queríamos testar a capacidade de pensar dos alunos. E naquela ocasião a idéia que um colega apresentou, que nos pareceu a melhor, é que o vestibular devia ser baseado numa redação, porque é vendo como os alunos escrevem que nós podemos saber como é que eles pensam. Então, naquele tempo, eu não sei como é agora, nós dávamos várias alternativas de redação, desde escrever uma carta para o presidente da República, defendendo ou condenando o uso da energia nuclear; um ensaio biográfico, auto-biográfico sobre porque escolheu esta profissão, este curso; um texto poético. Não havia respostas certas nem estávamos lá para corrigir acentos. Não era isso. A gente queria saber a capacidade de pensar dos alunos e isso, naquela ocasião, mudou o perfil dos alunos.

Gilberto Dimenstein: Ou seja, a má educação é aquela que espera a resposta certa?

Rubem Alves: Claro! Claro! Os alunos se sentem intimidados, eles não podem errar. Uma amiga minha...

Leonardo Trevisan: Mas na Unicamp, o seu trabalho na Unicamp redundou num bom fruto.

Rubem Alves: Foi.

Leonardo Trevisan: A Unicamp hoje tem 42% dos seus alunos aprovados no vestibular, [oriundos] de escola pública, e ela de fato norteia o ensino da escola pública...

Rubem Alves: Sim, senhor.

Leonardo Trevisan: ... pelo interior de São Paulo.

Rubem Alves: É verdade.

Leonardo Trevisan: Ela aproveita os bons alunos da boa escola pública do interior de São Paulo, que existe, e que é melhor, em muitas cidades, do que a escola privada.

Rubem Alves: Você está absolutamente certo. Eu acho que o resultado daquela comissão foi um resultado positivo, nós avançamos e nós saímos daquela bitola de respostas certas, não era isso que nós queríamos. Aliás, eu era muito amigo de uma professora de neuroanatomia na Unicamp, Vilma Clóvis de Carvalho, hoje ela está aposentada, vive em Recife. Ela era uma educadora extraordinária. Aliás, interessante, só uma observação entre parênteses - a avaliação dos professores atualmente através dos relatórios da Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior, órgão público responsável pela avaliação da educação superior e da pós-graduação stricto sensu em todo o país] não tem nada que se refira à docência. Todos os docentes deixaram de ser docentes e são pesquisadores, e são avaliados pelos artigos eruditos publicados em revistas indexadas internacionais. Mas a Vilma era uma educadora. E ela me contou o seguinte. Os piores alunos que ela tinha eram aqueles que tinham tirado as melhores notas no vestibular, no vestibular antigo. Falei: “mas por quê, Vilma?” Ela dizia: “É o seguinte, eu estou lá explicando para eles a complexidade do cérebro, da medula, dos nervos, coisas todas complicadas, e não sabemos direito como são as coisas, e sempre um desses alunos levanta a mão e pergunta: “mas professora, qual é a resposta certa mesmo?" Ou seja, o vestibular ensina sub-repticiamente algo que é contrário ao pensamento, ou seja, que há respostas certas para todas as questões e não há. Freqüentemente na vida e na ciência, a gente está lidando é com palpites. O maior filósofo da ciência do século passado, Karl Popper, dizia que nós não temos conhecimento, naquele sentido grego de epstéme [ciência do conhecimento – deu origem ao termo epistemologia], nós temos palpites, fazemos palpites, e nunca sabemos direito o que é certo. Mas você perguntou um negócio, Gilberto, o que é?

Gilberto Dimenstein: Se o mal da educação é apostar nas respostas certas...

Rubem Alves: Ah, se é apostar nas respostas certas! Deixa eu me recordar de um trecho que eu acho delicioso de Roland Barthes [(1915-1980) pensador e escritor francês considerado um dos mais importantes críticos literários do século XX, trabalhou com ciência geral dos signos]. Eu amo Roland Barthes. Ele era um educador do Colégio de France, mas ele era maternal. E ele dizia que o ideal dele, de educação, era “maternagem”, e ele escreve “maternagem” assim. Eu fico pensando quando ele começou falar em “maternagem”, na aula inaugural dele para os eruditos no Colégio de França, eles devem ter ficado horrorizados: "veio um Roland Barthes aqui para falar de “maternagem”. E escreveu “maternagem” assim: “a mãe e o filhinho. E o filhinho anda para lá, pega o barbantinho, traz o barbantinho para a mãe. E aí ele anda para lá, pega uma pedrinha e traz a pedrinha para a mãe”. E Roland Barthes diz o seguinte: que o barbantinho e a pedrinha não têm a menor importância, e a coisa realmente importante é que a presença da mãe criou um espaço lúdico de experimentação para o filho. Então, esse é o ideal que eu vejo para as escolas. É preciso criar um espaço lúdico de experimentação, porque é nesse espaço lúdico que as idéias, os pensamentos começam a surgir.

Paola Gentile: Mas, professor, como o senhor vê, por exemplo, a formação dos professores? Porque mesmo para trabalhar em escolas ditas alternativas como Escola da Ponte, ou então o pessoal lá de Reggio Emilia, na Itália, que trabalha com crianças até os dez anos, tendo a arte como fio condutor da educação, e outras propostas semelhantes ditas alternativas, o professor precisa ter formação para isso. Ele precisa aprender a trabalhar desse jeito porque o modelo dele é um modelo antigo de educação. Como o senhor vê a reformulação, uma proposta para os cursos de formação de professores?

Rubem Alves: Já que eu falei sobre Barthes, deixa eu dizer uma coisinha sobre ele. No finalzinho do famoso texto dele, "A aula”, ele diz que a vida de um professor se divide em três fases [contando nos dedos]: na primeira fase, ensina o que sabe; na segunda fase, ele ensina o que não sabe. Ou seja, pesquisa para ensinar o que não se sabe. E finalmente, ele dizia: “Chegou para mim o momento supremo em que eu me entrego à maior de todas as forças vivas que é o esquecimento. Procuro desaprender tudo o que aprendi”. Mas desaprender, por quê? Por aprender? Não! É preciso às vezes desaprender para lembrar. Essa é toda a pedagogia da psicanálise que ensina o esquecimento do sabido para a gente se lembrar do esquecido. Eu creio, eu não tenho provas para isso. Se me pedirem as provas estatísticas, eu não tenho, mas eu acredito que todos nós temos uma sabedoria natural de ensino. Foi assim que a humanidade por - sei lá - cem mil anos, os pais ensinaram os filhos de maneira muito bem-sucedida, tanto que os filhos sobreviveram. Uma das provas dessa capacidade natural de ensino, que eu acho extraordinária, é no ensino da linguagem. Não existe nada mais difícil para ser ensinado do que a linguagem. É muito complexo, muito complexo. Quem é que ensina a linguagem? É a mãe analfabeta, é o pai ignorante que nada sabem sobre teorias lingüísticas, sobre aquisição de linguagem e ensinam de uma maneira natural. E eu acredito nisso, sabe. Eu acredito que nós todos somos naturalmente educadores, mas esse saber - eu acho que isso é muito verdadeiro com nossos professores - está soterrado por sedimentações de teorias. Isso acontece freqüentemente...

Paola Gentile: E o que o professor deve fazer para quebrar essa barreira?

Rubem Alves: Eu ia fazer uma sugestão. A primeira coisa que eu diria é o seguinte: o professor precisa aprender a brincar com criança. A faculdade de educação em que... Posso lhe contar uma historinha? Um amigo meu levou o filho para uma fazenda para conhecer as coisas da fazenda, e foram lá no curral, de manhã, tirar leite, aquela coisa deliciosa, todo mundo tomando leite saindo da vaca. Aí ele pegou um copo de leite da vaca e deu para o filho, e o filho começou a chorar e disse: “Pai, eu não tomo leite de bicho, eu só tomo leite de saquinho!” [risos] Às vezes eu tenho a impressão de que - desculpem talvez a caricatura que eu vou fazer - que os professores, depois de muitos anos de estudo de psicologia, quando vêem uma criança, eles vão dizer: “não, eu não lido com criança verdadeira, eu só lido com criança do livro”. Acho que um exercício muito bom seria, quem sabe, estudar menos teoria e brincar mais com as crianças, sabe?

Leonardo Trevisan: O senhor recomenda isso para os filósofos também?

Rubem Alves: Ah, eu me despedi dos filósofos faz muito tempo. O que eu vou fazer com os filósofos? Eles ficam escrevendo para eles mesmos. Chegou a um ponto em minha vida, você sabe... Eu hoje me denomino escritor porque as pessoas dizem que eu sou escritor. Por que eu fiquei escritor? Fiquei escritor porque eu fiquei de "tá-tá-tá" cheio [usa essa expressão em lugar de outra, que seria censurada, significando ter se entediado] com o discurso filosófico, e eu resolvi que não ia falar mais para meia dúzia de pessoas, mas que eu ia falar para pessoas comuns, para as crianças, para os públicos, para pessoas comuns. Então, eu adoro filosofia, mas o meu prazer é fazer filosofia através de imagens, poeticamente, sabe.

Paulo Markun: Pergunta de Antônio Luiz Altieres, de Cotia, aqui de São Paulo: o que é ser professor hoje em dia, ou o que teria que ser? A escola ainda tem função nos dias de hoje?

Rubem Alves: Ah! [suspira profundamente] Eu acho que há duas maneiras de você responder a essa pergunta, há duas vertentes. Uma delas quando perguntam: o que é ser professor hoje em dia? Eu posso dizer, respondendo com a experiência de professoras de periferia, que ser professor é ser uma espécie de domador de tigre. Quando elas me contam as experiências com os adolescentes de periferia, de violência, de ameaças, de medo, é uma coisa absolutamente terrível. E eu vejo aquelas mocinhas, aquelas senhoras como frágeis domadoras com chicotinho, tentando acalmar os tigres, mas os tigres não acalmam. Bom, isso é o que é; em alguns lugares, há outras situações diferentes, não é? Uma outra possibilidade de responder é o que significa ser um professor sempre, não é hoje em dia não, porque acho que o professor é a mesma coisa sempre. A primeira tarefa do professor é ensinar os alunos a ver, porque o mundo é absolutamente maravilhoso. São coisas fantásticas! O ovo é maravilhoso. Eu escrevi uma crônica sobre o ovo. Ah! Uma concha de caramujo de jardim é maravilhosa, uma teia de aranha é maravilhosa. Há coisas absolutamente fantásticas. E a primeira tarefa do professor é levar os alunos a sentir o espanto dessas coisas. E quando as crianças se sentem espantadas, elas começam a fazer perguntas, porque elas são curiosas. Os gregos diziam que o pensamento começa quando, diante de um objeto qualquer, qual era a palavra que eles usavam? [fica pensando, tentando lembrar] É... fica bestificado. Você olha para o objeto: “Mas como? Mas como? O que é isso?”. Nesse momento, a gente sente uma ericção [o mesmo que ereção] da inteligência. Essa idéia de ericção da inteligência eu peguei do Fernando Pessoa [(1888-1935), um dos maiores poetas da língua portuguesa, menciona no poema "Saudação a Walt Whitman", sob o heterônimo de Álvaro de Campos: "Uma ereção abstrata e indireta no fundo da minha alma", trecho que o entrevistado discute em seu livro Ao professor, com o meu carinho, Ed. Verus, 2004]. Mas é que eu acho realmente que a inteligência se parece muito com o pênis, porque o pênis é um órgão de duas funções, tem uma função excretora, ridícula e está lá, flácido, mas se ele for excitado por alguma coisa, então transformações hidráulicas fantásticas acontecem, e ele tem a possibilidade de ter prazer e de dar vida! [risos] E assim é a inteligência. Muitas crianças estão com a inteligência adormecida, quietinha, flácida. E dizem: “Burrinho!” Burrinho nada! Burrinho porque a inteligência e a criança ainda não foram provocadas, portanto a inteligência não teve a sua ereção. Eu acho que a função fundamental do professor é provocar a ereção da inteligência dos alunos. E quando a gente faz isso...

Paola Gentile: É um Viagra do [...] [risos]

Rubem Alves: E quando a gente faz isso, então solte a criança que ela vai por conta própria! [risos]

Tatiana Belinky: Por falar em olhar, deixe-me contar. Quando meu filho, o avô dos meus bisnetos [risos], quando ele tinha três anos, nós estávamos na cozinha e deixei cair um ovo, e o ovo se estatelou no chão. Ele teve uma ereção! [sem conseguir conter sua risada]

Rubem Alves: Teve? [expressando surpresa] Ah, que fantástico!

Tatiana Belinky: Foi para a cesta de ovos, pegou o ovo e “tec”, tacou no chão [faz o gesto de quem atira algo no chão]. Eu fiquei olhando. Ele ficou maravilhado, e foi buscar outro ovo. Ele acabou com a cesta de ovos e eu fiquei olhando. Ele era o menino mais curioso, mais xereta, mais engraçado do mundo e era meio autista [O autismo é uma doença que se manifesta tipicamente antes dos três anos de idade. A criança autista apresenta reações diferentes e certas características especiais, sendo que uma delas é a linguagem atrasada ou sua não manifestação], ele não falava, mas ele enxergava e registrava e me deu uma aula magistral naquele dia.

Rubem Alves: Aliás, o interessante é que as crianças fazem perguntas incríveis!

Tatiana Belinky: Eu sei.

Rubem Alves: O meu amigo, Zé Pacheco, lá da escola de Portugal [refere-se ao diretor da Escola da Ponte], numa outra escola, ele colocou uma caixa e estimulou as crianças para que elas colocassem ali as perguntas que elas tinham para fazer. E as perguntas eram do tipo: por que a água fervendo endurece o ovo e amolece a cenoura? Por que quando a gente fica dentro d'água muito tempo a mão fica enrugada? Quando eu era menino e ficava muito tempo no banho, eu ficava aterrorizado com medo de ficar com mão de velho. Quem é que sabe isso? Eu não sei. Por que é que a Terra gira? Todo mundo fala que a Terra gira. Por que a Terra gira?

Tatiana Belinky: Como, o porquê...

Rubem Alves: Que a Terra gira, sabe. É feito o pião... [brinquedo feito de madeira, tem o formato de uma gota e possui uma ponta fina sobre a qual pode girar, desde que impulsionado com a mão ou através de um barbante enrolado no corpo do pião] Quem foi que fez "assim” com a Terra para ela girar? [faz o gesto de quem puxa o barbante para impulsionar o pião para ele girar] Pergunta de criança.

Tatiana Belinky: Lógica.

Rubem Alves: Fantástico! E aí, o que ele fez? Ele falou: “Se as crianças fazem essas perguntas tão maravilhosas, imaginem as perguntas dos professores?” E colocou uma caixa para os professores fazerem suas perguntas. Deveriam ser muito mais maravilhosas, e vieram as perguntas dos professores. O de geografia perguntava: “Onde é que fica o Cabo das Tormentas?”.

Tatiana Belinky: Que horror!

Rubem Alves: Ou o de história: qual é a data da batalha de Guadalquivir? [refere-se à uma batalha muito antiga que teria ocorrido antes de Cristo, no vale de Guadalquivir, no sul da Espanha] O de matemática: qual é a resolução...

Tatiana Belinky: Mas nossa escola é letal. É um horror!

Rubem Alves: Ou seja, os professores, pobres, eles não são culpados, mas eles são obrigados a seguir sempre o mesmo programa, e no final a mente vai afunilando. O Wittgenstein, aquele maravilhoso filósofo dizia que "os limites da minha linguagem denotam os limites do meu mundo". Então, o mundo do professor vai ficando do tamanho de sua disciplina. Aliás, eu detesto esta palavra disciplina, eu preferia que fosse brinquedo, cada professor tem que ensinar para a criança...

Paulo Markun: Mas professor, voltando à provocação, eu não resisto. Se esse sistema que permite absoluta liberdade nas escolas e total autonomia for implantado dentro do mundo em que a gente vive, dentro do país em que a gente vive, dentro da cidade onde nós estamos gravando este programa, não se corre o risco de a gente ter geniais escolas nos bairros mais bacanas e escolas absolutamente terríveis nos bairros mais populares?

Rubem Alves: Eu acho que não. Eu vou dizer com toda honestidade que eu acho que a sua... Não sei se você falou isso para provocar, mas há um preconceito: o preconceito é que os riquinhos são disciplinados, inteligentes e os marginais...

Paulo Markun: [interrompendo] Não, eu acho que os riquinhos têm melhores professores, pessoas que não estão ali só lutando para garantir o pão de cada dia.

Rubem Alves: Mas você veja uma coisa. Quando essas professoras... Eu estava falando sobre a violência nas escolas. Quando eu comecei a pensar sobre isso, sobre essa violência, veio à minha memória uma coisa terrível que eu fazia quando era menino. Eu gostava muito de fazer arapuca e pegar passarinho. Então depois de capturar o passarinho, eu o pegava com a mão e o colocava dentro da gaiola. A reação do passarinho é de uma absurda violência! Ele se bate! Ele foi criado para voar, e fica todo sangrando. Então, a gente pode pensar: “que violência do pássaro”. Não! Violência da gaiola! Veja o que acontece com os adolescentes. Você já imaginou? Você, um adolescente de periferia, tem tráfico de drogas, crime a todo tempo, e você tem que aprender para a prova quais as enzimas que entram na digestão. O que ele vai fazer com as enzimas, o que eu vou fazer com as enzimas? O que o Lula vai fazer com as enzimas, o que reitor da USP, da Unicamp vão fazer com as enzimas? Nada! Mas ele tem que aprender aquilo. O que acontece? Uma das razões para essa situação das escolas de periferia é que elas não estão lidando com os problemas! A gente pensa com problema, a gente pensa em problema. Eu tenho um princípio de criatividade, resumidinho, que diz assim: ostra feliz não faz pérola. Ostra para fazer pérola precisa de ter um grãozinho... [gesticula insinuando a existência da concha com o grãozinho dentro]

Paulo Markun: Um grão de areia.

Rubem Alves: Grãozinho de areia.

Paulo Markun: Uma provocação.

Rubem Alves: Uma provocação! Eu tenho que pegar as provocações que aqueles moços estão vivendo, quais são os grãos de areia. Ensinar para eles coisas que não têm a ver com as suas... É inútil, entende? E é tudo esquecido. Então, eu cheguei à conclusão de que, via de regra, a grande maioria dos adolescentes, eu não sei se é só de periferia, eles não vão à escola para aprender nada não, não estão interessados em aprender nada, porque aquelas coisas não têm nada... Eles nunca estão interessados em história do Brasil, não estão interessados em matemática, inglês, eles vão à escola...

Leonardo Trevisan: [interrempnedo] Professor, deixa eu lhe perguntar uma coisa. O senhor, quando ia para a escola, estava interessado em história do Brasil?

Rubem Alves: Você sabe como eu fiquei interessado em história? Fiquei interessado em história,mas não foi em história do Brasil não. Foi porque era ocasião da guerra e não se falava nada sobre a guerra lá na escola, mas o meu pai botou um mapa da Europa na parede e a gente escutava o Carlos Frias [radialista, foi o primeiro locutor no Brasil a anunciar o fim da Segunda Guerra Mundial] falando em “Stalingrado [A batalha de Stalingrado (19/08/1942 a 02/02/1943) ocorreu durante a Segunda Guerra Mundial, entre as tropas soviéticas e o exército alemão. Calcula-se que mais de dois milhões de homens e mulheres, de ambos os lados, participaram dos violentos combates até a derrota do exército alemão e sua retirada do solo russo] continua a resistir”. E eu vivi aquela batalha, eu estava no campo de batalha porque aquilo era absolutamente vital. Mas ao mesmo tempo, na escola, eu aprendi que lá no Nordeste houve um naufrágio de um navio holandês e que o comandante... Como é que chama o comandante do navio holandês? Ao afundar [o comandante] declarou: “O mar é o único túmulo digno de um almirante bátavo!” Isso eu tinha que responder na prova. E passados alguns anos, eu comecei a pensar: quem é que estava no navio quando estava afundando para saber que ele falou isso? [risos] E depois: esse holandês falou em holandês? Quem estava lá, quem traduziu, como é isso? Então, de um lado, eu estou lá vivendo... Para mim a questão não é aprender a história em si, é desenvolver os órgãos de compreensão histórica, sabe? Por exemplo, lá nas Teses sobre Feuerbach, [Karl] Marx [(1818-1883), economista e filosofo alemão, escreveu O manifesto comunista e O capital, em que teoriza sobre o funcionamento do sistema capitalista, a partir dos conceitos de modo de produção, luta de classes, mais-valia e materialismo histórico] tem uma tese genial que diz assim: “todos os mistérios do mundo são resolvidos pela práxis”. [Possivelmente alusão à tese VIII: "Qualquer vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que levam ao misticismo encontram sua solução racional na práxis humana e na compreensão dessa práxis."]. Os marxistas transformaram essa práxis em comício, ação revolucionária. Não é nada disso. Isso é um princípio epistemológico que quer dizer o seguinte: para eu entender uma coisa, eu tenho que entender como ela foi feita, como o dinheiro foi feito, como seus óculos foram feitos, como meu relógio foi feito, senão eu não entendo nada. E isso significa compreender a história.

Leonardo Trevisan: Professor, para compreender não é preciso ter uma dose de sofrimento?

Rubem Alves: Meu amigo, absolutamente verdadeiro! Você disse uma coisa muito boa, mas eu preciso completar com um verso de um poeta inglês chamado Willian Blake [(1757-1827), poeta romântico, foi pintor, impressor, e um dos maiores gravadores da história inglesa, considerado lunático por alguns pelas idéias e comportamentos excêntricos] O verso do Willian Blake diz...

Leonardo Trevisan: Eu lembrei dele, “o prazer engravida”, não é?

Rubem Alves: Isso.

Leonardo Trevisan: É o sofrimento que faz parir.

Rubem Alves: Isso, mas vamos falar devagar para nossos telespectadores saberem. O Blake falou: “O prazer engravida, o sofrimento faz parir”. Ou seja, toda criança sabe disso. Quando a criança tem um sonho de uma coisa, ela fica possuída por aquilo, não precisa ser criança.

Leonardo Trevisan: Qualquer um.

Rubem Alves: Kepler, por 18 anos, ficou fazendo uma pesquisa doida. Sabe por quê? Porque ele estava fascinado com a idéia de ouvir a música das esferas que Deus tocava. Tanto que a obra dele se chama Harmonices Mundi [publicada em 1619]. A gente pensa que era a harmonia no sentido matemático, não, é no sentido musical. Ele estava fascinado com o trabalho. Criança, quando resolve fazer uma coisa, quando está apaixonada por uma coisa, ela trabalha, ela sofre. Mas a gente sofre sem que ninguém precise mandar. Porque a gente está grávido e tem que ter dores de parto.

Tatiana Belinky: Nesse sentido, como o senhor vê a arte?

Paulo Markun: Só queria passar a palavra para a Leila que até agora não fez uma pergunta.

Leila Iannone: É, parece que há uma permanente tensão então entre o que o aluno gostaria de aprender, ou o que ele espera aprender e aquilo que os professores precisam ensinar, não é? Há uma permanente tensão e isso ocorre, penso, não só nas escolas das classes menos favorecidas, mas também em qualquer outra escola. E isso me faz lembrar de um parágrafo seu, no livro A escola com que sempre sonhei, que eu gostaria que você explorasse um pouco: “Nenhum pensamento reclama tanto a comunicação dos olhares para fora e para dentro como o pensamento sobre educação”. Então, me parece que existe essa permanente tensão entre o desejo de aprender e o desejo de ensinar, como também existe esse movimento tensionado do olhar para dentro e do olhar para fora.

Rubem Alves: Olha, deixa eu retomar uma coisa que você falou. [apontando para Paulo Markun] Você descreveu aquela escola como sendo de total liberdade, uma coisa assim. Não é bem assim. Uma das escolas mais disciplinadas que eu conheço é precisamente a Escola da Ponte.

Paulo Markun: Só para fazer um parêntese e esclarecer para o telespectador que é uma escola que tem em Portugal há 220 quilômetros de Lisboa, é isso?

Leila Iannone: Perto do Porto.

Paulo Markun: Que é uma escola pública...

Rubem Alves: Escola pública.

Paulo Markun: ... mas diferente das outras?

Rubem Alves: É uma escola diferente das outras, é uma escola pela qual me apaixonei...

Leila Iannone: Tem alguma coisa a ver com Summerhill?

Rubem Alves: É um tipo, talvez seja um tipo, mas não foi inspirada em Summerhill. A coisa interessante da Escola da Ponte é que as coisas que eles fizeram aconteceram pelas penúrias. Era um escola extremamente pobre. Por exemplo, lá eles não têm livro-texto. Então, vocês pensam: “Ah, eles tomaram uma decisão pedagógica de não ter livro-texto”. Não é não, é que as crianças eram tão pobres que não podiam ter livro-texto. Se não podem ter livro-texto, não vamos fazer livro-texto, vamos fazer outra coisa! Mas, espera aí, deixa eu voltar a sua...

Leila Iannone: Será que nós não temos escolas da Ponte também no nosso universo, aqui em São Paulo, no nosso interior do nosso país?
Rubem Alves: Deixa eu lhe dizer. Depois que eu escrevi esses textos sobre a Escola da Ponte e os textos começaram a circular, comecei a ser bombardeado por pessoas que estão fazendo coisas muito parecidas, reclamando que eu não havia tomado conhecimento disso. E de fato não tomei e lamento não ter tomado conhecimento. Mas agora você veja, isso que você está dizendo. Não é um experimento, são experimentos que estão pipocando, há uma quantidade imensa de coisas assim acontecendo, e mesmo porque a Escola da Ponte não pode ser reduplicada. Eu acho que esses experimentos não podem ser reduplicados porque eles têm a ver com condições muito específicas de liderança e tudo mais. Mas...

Leila Iannone: Mas eu queria voltar a essa questão desse movimento, essa permanente tensão de fora e de dentro e do ensinar e do aprender.

Rubem Alves: Deixa eu lhe dizer uma coisa: a escola não se move ao sabor das crianças, dos desejos das crianças. Por uma razão simplíssima e vou lhe explicar. Imagine que exista um homem que vive lá no interior e que acostumou a comer sempre angu, feijão, quiabo, jiló e picadinho de carne, que uma vez e outra deve ser até gostoso. Aí ele vem para a cidade e vai a um restaurante grã-fino. Ele não sabe nada sobre camarões e tudo mais. Ele faz seu pedido, o que vai pedir? Arroz, feijão, jiló, picadinho de carne, porque ele não sabe. Essa é uma situação parecida com a das crianças. Elas têm muitos interesses, maravilhosos interesses, mas elas não sabem tudo. Para isso é que existe professor, ele sabe muito mais. Então, o professor é como aquele que vai chegar para a criança e dizer: “Experimente isso aqui. Escute esta música, é de um compositor chamado [Johann Sebastian] Bach [(1685-1750) compositor barroco alemão tido como um dos maiores nomes da história da música]. Escute, preste atenção! Preste atenção nesta tela, é de um pintor chamado [Claude Oscar] Monet [(1840-1862), pintor impressionista francês]. Este é um escultor chamado [Auguste] Rodin [(1840-1917) escultor francês que contribuiu para a valorização da escultura numa época em que a pintura se destacava como a principal manifestação plástica]. Vamos escutar esta poesia!". A criança não sabe de nada, mas o professor que já esteve lá traz essas coisas para que o mundo da criança se expanda. Então não é a questão da universidade livre, da escola livre; professor sabe mais, se professor não souber mais, então junte as malas porque ele não tem o direito de ser professor. De um lado, você tem a coisa brotando da criança, as curiosidades dela, a minha curiosidade pela criação de galinha, era curiosidade minha, e eu aprendi. E ao mesmo tempo o professor que vai lá, desculpe, "fazer amor com a criança", para ela pensar coisas diferentes. Então, são as duas coisas: é o professor que ouve a criança e a criança que ouve o professor. Tem que haver isso.

Leonardo Trevisan: Professor, mais uma pergunta.

Rubem Alves: Pois não.

Leonardo Trevisan: O senhor deve ter visto já, por uma série de razões, crianças reais, meu filho, por exemplo. Se eu tentar levar meu filho para frente do quadro do Monet - acho que o Gilberto pode me apoiar aqui - acho que ele não vai gostar. Por mais que eu faça esforço para isso, não consigo que ele escute Bach, eu sempre perco a concorrência. Olha, quando eu perco para a internet, [Rubem Alves cobre o rosto com as mãos] eu dou graças a Deus! É melhor porque eu posso perder para coisas piores. O professor não tem nem a minha autoridade de pai e ele tem a obrigação de nivelar, de aproximar esse garoto que nada sabe do tal saber culto, porque seu exemplo do jiló é perfeito, senão ele vai chegar no restaurante e vai pedir sempre jiló. Perfeito, [Ludwig van] Beethoven [(1770-1827) grande expoente da música erudita] neles! Concordo inteiramente com o senhor. Como fazer isso? No mundo real, do meu filho, por favor, me dá a receita?

Rubem Alves: Antes, para dar uma pitadinha de pimenta no que você disse...

Gilberto Dimenstein: Você quer a receita do quê?

Leonardo Trevisan: Eu quero a receita real com criança real, que chega na frente do Monet e diz - desculpem os ouvintes : “isso é um saco, pai!”

Nélio Bizzo: Mas o Trevisan está dizendo então, a pergunta é...

Tatiana Belinky: O dia em que eu fiz nove anos, fui levada para o Ermitage, que fica num museu que existe na França.

Rubem Alves: Isso, muito obrigado.

Tatiana Belinky: Passei quilômetros de pinturas com meu pai e minha mãe. E eles me davam pequenas explicações, e eu fiquei bestificada.

Rubem Alves: Isso.

Tatiana Belinky: Eu fiquei maravilhada! Eu nunca mais me esqueci daquelas primeiras impressões, e eram muitos pintores, eram impressionistas [movimento artístico surgido na França do século XIX caracterizado por uma arte alegre e vibrante com nova visão conceitual da natureza, enfatizando as nuances da luz e da natureza] os expressionistas [movimento artístico caracterizado por uma pintura dramática, subjetiva, na qual predominam os valores emocionais sobre os intelectuais e que deforma a figura para expressar um sentimento], e clássicos acadêmicos, e franceses e russos também, claro. E eu ficava maravilhada, ficava maravilhada! Foi o meu primeiro grande contato com a pintura e com a escultura, foi o meu presente de nove anos!

Leonardo Trevisan: Seus livros são maravilhosos, professora! Seu bisneto fica maravilhado? Se a senhora levar seu bisneto que já viu a internet...

Tatiana Belinky: Ah, vai gostar, e gosta, mas eles têm ambiente, né?

Rubem Alves: Vou lhe contar uma experiência. Você me pediu uma experiência com criança real. A experiência com criança real é a seguinte...

Tatiana Belinky: O ambiente em casa é importante, os meus bisnetos gostam de livros, gostam de internet.

Gilberto Dimenstein: Rubem, o que ele está colocando é o drama de um adolescente que vive numa sociedade super de massa, super utilitária, que tudo tem que ter uma função. E você falar sobre a questão da arte, que não tem função aparente, arte não tem função, como você sabe. Como é que você faz para que a criança ache que o Monet, que Bach são coisas interessantes?

Tatiana Belinky: E música clássica, e tudo isso, é só expor a criança a isso.

Gilberto Dimenstein: Até que ponto os meios de comunicação, nessa mediocridade que tem em muitas TV’s abertas, não estimulam essa visão utilitária, consumista e até promíscua da cultura? Então, eu acho que para o pai fica complicado.

Rubem Alves: Vou lhe contar, vou falar sobre criança e depois sobre adolescente. Há uns anos atrás eu recebi na minha casa a visita de duas mães com três filhos, uma tinha dois, outra tinha um, filhas. Elas eram terríveis, e tinha uma delas que dava um grito que parecia uma verruga no meu ouvido, e eu já não sabia para onde fugir, eu estava a ponto de apelar para uma pedagogia mais antiga. E aí eu tive uma idéia, sabe o que é? Eu me lembrei de que quando eu era menino, adorava ver livro de figura, eu fazia livro de figura. E eu tinha um livro chamado Meu primeiro livro de arte, as artes clássicas, um livro maravilhoso. Cheguei para as menininhas: “ei, vocês aí, venham aqui comigo!”. Fomos para a sala, deitamos no chão, “eu quero mostrar umas coisas para vocês”, e abri o livro e comecei a mostrar. Eu não falei em Monet, nem em Gauguin [(1848-1903), pintor francês do período pós-impressionismo, exerceu grande influência na arte moderna voltada para o exótico e o primitivo] nem nada, só mostrei a figura. “Olha isso aqui, o rabo do cachorrinho, olha isso aqui”, e elas quietas. Virava a página: “olha isso, olha aquilo!". Na terceiro página, eu parei de mostrar e elas começaram a me mostrar. Então, eu acho o seguinte, especialmente os adolescentes...

Tatiana Belinky: [interrompendo] Criança lê ilustrações, figuras, minuciosamente.

Rubem Alves: Pois é. Eu acho que especialmente os adolescentes... a coisa que o adolescente menos quer é diálogo com os velhos. Tem uns psicólogos baratos que dizem que adolescente precisa de diálogo, quer amor. Não quer nem diálogo e nem amor, porque sabe que conversa de pai é conversa para enrolar [risos]. Então não adianta chegar e falar para o filho "meu filho, eu quero te mostrar Monet ", que ele não vai querer o Monet. Há certas coisas, com um adolescente, que o único jeito de você fazer é fazer indiretamente, por exemplo, largar o livro lá. Não precisa ser Monet, pode ser outra coisa que interesse mais a ele, pode ser através do cinema.

Gilberto Dimenstein: Rubem, você não acha que o pai está em crise hoje? Você é psicanalista educador, por que em crise? Às vezes o pai tem vergonha de ser pai, então o pai não quer dizer “não” porque vai lembrar o que foi o seu próprio pai. O pai quer ser totalmente acolhedor...

Paulo Markun: O pai virou gelol!

Gilberto Dimenstein: O pai virou uma espécie de “adultecente”, não quer brigar com seu filho, tem que compreender... Será que isso não faz mal para a criança, esse excesso de compreensão? Você vai ao terapeuta para poder entender seu filho, o filho vai no terapeuta para poder te entender. Então, não tem um processo de um excesso de busca?

Rubem Alves: É preciso isso, ó [faz um gesto com as mãos cerradas, batendo uma na outra, indicando um embate]

Gilberto Dimenstein: É como se a paternidade, é como se o conflito não fosse pedagógico?

[Falam simultaneamente]

Leonardo Trevisan: Só que o Gilberto dizia, como é que era essa pedagogia antiga que o senhor disse que estava quase a ponto de praticar?

Rubem Alves: Pedagogia antiga você sabe que eu não ia fazer isso, não é? Porque eram filhas de duas famílais. Foi só uma brincadeira que eu fiz, seria dar umas palmadas.

Paulo Markun: Sai Piaget e entra Pinochet? [Jean Piaget (1896-1986) francês que propôs o processo de construção do conehcimento pela criança. Augusto Pinochet (1915-2006) ditador chileno entre 1973 a 1990].

Rubem Alves: Umas palmadas vai bem de vez em quando. Eu acho, Gilberto, que há os dois lados. Um lado é que freqüentemente os pais não têm o gosto de ficar com os filhos. Uma cena que me deixou muito triste há muitos anos, eu estava caminhando num parque que tem lá em Campinas, tem um parquinho de crianças, não sei se era sábado de manhã ou domingo, e o pai estava lá com a filhinha, estava balançando a filha. E a cena era assim: ele balançava a filha com a mão esquerda e lia o jornal [faz o gesto, como se imitasse o pai] com a mão direita. Eu falei: “meu Deus do céu”! Na verdade, ele estava dizendo: “como você é chata! Eu sou obrigado a ficar te empurrando aqui nesta manhã de sábado”.

Gilberto Dimenstein: Mas às vezes a criança não é chata mesmo em relação ao pai? Será que o pai não tem que ter coragem e dizer: tem horas que eu quero ler o jornal? Será que isso é tão vergonhoso?

Rubem Alves: Isso seria muito mais honesto. Acho que tem um lado em que a gente precisa ter confrontação, e dizer: “Eu não quero isso”.

Gilberto Dimenstein: Estou falando isso porque na nossa cultura contemporânea - vou me fazer um pouco de advogado do diabo - tem uma demonização do pai que não aceita tudo. Então, o pai tem que ser totalmente compreensivo e não pode perder a calma, nunca pode dar um peteleco. Eu não sei se isso já não passa para um campo inumano da paternidade e que depois o filho não vai saber lidar com o mundo adulto dele.

Leonardo Trevisan: Desculpe eu fazer a defesa dos professores. Será que o professor também não passa por tudo isso que o Gilberto acabou de dizer?

Rubem Alves: Mas é claro.

Leonardo Trevisan: Será que não tem um momento em que o pai, em que o professor precisava dizer: “vamos calar a boca porque eu sei o que estou dizendo e vocês vão me ouvir?”

Rubem Alves: Deixa eu contar um negocinho sobre a Escola da Ponte.

Leonardo Trevisan: Então, vamos lá.

Rubem Alves: Quando eu estava visitando a Escola da Ponte, e que me assombrou, [era] uma menininha de nove anos que estava me mostrando a escola, lá não tem classes separadas, é todo mundo junto. E eu não ouvi nenhuma voz alta, ninguém falava alto, ninguém pedia silêncio. Aí eu perguntei para ela: “vocês não têm problemas com aqueles alunos rebeldes que criam confusões?” Ela disse: "temos, mas para isso nós temos o tribunal". Falei: "que história de tribunal?". Ela me explicou que lá as crianças , quando alguém desrespeitasse as regras que elas haviam estabelecido, essa criança tinha de comparecer a um tribunal da própria escola. Então, naquela escola, o professor não tem que fazer esse grito porque ele não é responsável pela disciplina...

Paola Gentile: Mas eles acabaram com o tribunal da escola, não acabaram?

Rubem Alves: Acabaram com o tribunal, foi bom você me lembrar isso, eu vou lhe explicar por quê.

Paola Gentile: Porque detectaram injustiças nesse processo, não é?

Rubem Alves: Isso. Foi bom você falar isso, deixe-me explicar por que acabaram com o tribunal. A Escola da Ponte recebe muitos alunos violentos, todo mundo manda para lá porque sabem que a Escola da Ponte tem um jeito de lidar com esses alunos. Aí, houve um aluno que fez uma coisa muito violenta lá e foi ao tribunal. O Zé Pacheco, diretor de escola, me contou... [lembra-se de outra coisa e interrompe o que estava dizendo] A assembléia nomeia um advogado de ataque, um promotor e o aluno acusado nomeia o advogado de defesa. E ele me disse que o advogado de acusação trucidou, não sobrou absolutamente nada. E o Zé Pacheco pensou: “está perdido o menino!” E aí passou para o advogado da defesa, que era ruim de falar, ele gaguejava. E então está perdido!

Paola Gentile: Mas era um advogado nato, não é?

Rubem Alves: É. Ele se virou e disse assim: "Vocês vão no catecismo, não vão? Vão, todo mundo é católico. Vocês sabem lá do evangelho, aquele negócio de estar pronto para jogar as pedras no pecador, não é? Todos nós aqui estamos prontos para jogar pedra no pecador, mas eu gostaria que vocês me dissessem o que vocês fizeram antes para ajudar este pecador?" Aí acabou o tribunal. E eles substituíram o tribunal por uma coisa muito comovente que se chama comissão de ajuda. Quando um aluno começa a apresentar problemas, uma equipe de colegas é nomeada para ficar sempre por perto, uma espécie de vigiando. E quando o menino vai pegar uma pedra: “ô, fulano, vais a jogar uma pedra, por quê?” Está tendo um efeito absolutamente maravilhoso. De modo que abandonaram o tribunal porque ele era muito militar.

Paulo Markun: Carlos Teixeira, que é professor no bairro do Capão Redondo, na Zona Sul de São Paulo, pede para o senhor completar a idéia que foi interrompida sobre o que leva as crianças à escola, uma vez que o senhor estava dizendo que não era para aprender história, matemática, etc.

Rubem Alves: Ah, sim. Olha, obrigado por lembrar esse fato, essa resposta não completada. Os adolescentes de periferia não vão para aprender porque as coisas que são ensinadas no programa, exigidas pelo programa não são de interesse deles, não estão relacionadas com a sua vida. Eles vão à escola para ter um diploma, porque eles sabem que diploma é importante; quando se vai pedir emprego, você tem que dizer que tem o segundo grau [ensino médio].

Paulo Markun: Quer dizer, a sociedade brasileira elegeu a educação como algo importante, e todo mundo acha que é importante. Só que acha que a educação é um canudo?

Rubem Alves: É um canudo. Não, você veja: é que ele acha que aquilo não é educação, que aquilo não tem nada a ver com a vida dele. O que ele faz com essas informações? O que ele faz com o nome das enzimas?

Paulo Markun: "Javari, Juruá, Purus, Madeira, Tapajós...". [Jogral muito conhecido nas escolas, ensinado para que os alunos decorassem os afluentes da margem direita do Rio Amazonas]

Rubem Alves: Isso. Oxálico, malônico, edipnélico... [termos específicos usados em química] Juruá, Tefé, Purus, Madeira, Tapajós, Xingu, cada nome! Cada coisa que tem que decorar! O que ele faz com isso? Dígrafo! Oração subordinada! O que eu faço com oração subordinada? Eu sei escrever - modéstia às favas - mas eu não sei análise sintática, e conheço muita gente que sabe análise sintática e não sabe escrever. Então, eu acho que esta geração vai à escola não é porque seja fascinado por aprendizagem, mas eles tem que ir à escola para ter um diploma, para arranjar um emprego melhorzinho.

Leonardo Trevisan: Mas, professor, não é um pouquinho de exagero caracterizar a escola como um lugar onde isso acontece? Quer dizer, nas escolas, eu acho que é difícil você encontrar um professor hoje que diga que trabalha desse jeito, não é? Lendo seus livros, lendo seus textos, muitas pessoas têm a impressão de que o senhor seja contra a escola. Mas eu estou entendendo então que a sua crítica é em relação à organização do ensino e à metodologia que se usa na escola, não exatamente contra a instituição.

Rubem Alves: Eu não sou contra a escola, tanto eu não sou contra a escola, que me apaixonei por uma escola, e já disse que se eu não estivesse a ponto de completar os meus setenta anos, eu gostaria de abrir uma escola porque eu acho que é uma coisa fantástica. A questão para mim é como é que você faz com o espaço da escola. Eu acho que na escola há duas coisas absolutamente essenciais. Primeiro, eu acho que todo conhecimento, todo o esforço por conhecer começa do sonho, é preciso sonhar. Eu vou lhe dar um exemplo. Quando eu era um menino de uns seis, sete anos, em Minas, no meu vizinho tinha uma árvore com as frutinhas vermelhas que eu não sabia o que era, eram pitangas, fiquei doido para comer as pitangas. Mas a danada da pitangueira estava longe, no vizinho. Aí, você veja, o meu desejo já provocou a ereção na inteligência. Então, apareceu logo uma inteligência, o desejo chama inteligência, a primeira inteligência que apareceu foi a inteligência criminosa, que me disse: "salte o muro, suba na árvore e roube as pitangas”. Aí apareceu rapidamente a inteligência prudente e disse: “não faça isso, Rubem, que o dono da casa vai lá te dar umas vassouradas”, e então, recuou, mandei embora a outra. E aí então veio a outra inteligência, a inteligência engenharial: "Rubem, construa uma maquineta de roubar pitangas". Ah! Que idéia genial! E naquele tempo que eu ainda não havia lido [Marshall] McLuhan [(1911-1980) teórico da comunicação e educador canadense foi o criador da idéia de "aldeia global" ], ele ainda não havia escrito, o McLuhan disse que "todo meio é extensão do corpo". Era exatamente isso, eu precisava de uma extensão do meu braço, um braço comprido, um cabo de vassoura. Mas não bastava um cabo de vassoura, precisava de uma mãozinha, senão caíam as pitangas, amarrava uma latinha na ponta... Mas também não bastava porque senão a pitanga caía pela borda. Então eu fiz um dentinho. Aí, fui lá, roubei as pitangas. Você veja, isso vale para tudo. Você quer construir uma casa, primeiro sonhe, depois [faça] os cálculos racionais, tudo. A educação se divide em duas partes: um, é preciso sonhar. O espaço da escola tem que ser um espaço para as crianças sonharem. E uma das funções dos professores é ajudar a criança a sonhar sonhos diferentes.

Paola Gentile: Professor...

Rubem Alves: Deixe só eu terminar isso aqui. E a segunda parte da educação é criar as competências, porque não adianta você só sonhar, sonho sozinho não faz nada.

Tatiana Belinky: Mas precisa ser poeta como o senhor! O senhor é um poeta.

Rubem Alves: Eu acho que mais ou menos.

Tatiana Belinky: Eu tenho certeza.

[risos]

Paola Gentile: Será que os adolescentes não estão fugindo da escola porque a escola não tem usado a linguagem deles? Por exemplo, o senhor falou da escola em Tocantins que está usando Machado de Assis, mas não para ler Machado de Assis, mas para fazer vídeos...

Rubem Alves: Espera aí, isso não foi em Tocantins não, foi em ... foi lá em...

Paola Gentile: Palmas?

Rubem Alves: Novo Hamburgo.

Paola Gentile: Novo Hamburgo. Enfim, hoje a gente tem uma linguagem universal das artes: a música, a literatura, a poesia, as instalações, as artes plásticas. Essas linguagens são mais universais do que o texto escrito.

Rubem Alves: Exatamente.

Paola Gentile: A escola não deveria mudar o foco e usar melhor a arte no seu currículo, no seu programa, ou enfim, no seu eixo de educação?

Rubem Alves: Um dos problemas - e tem a ver com a pergunta que você me fez - é que, desgraçadamente, a tendência de todas as instituições, sem nenhuma exceção, é uma tendência à rotina. Então, a rotina do professor é todo ano dar a mesma matéria, do mesmo jeito, mesmo programa. Essa é a tendência da rotina. Para a gente mudar de rotina, alguma coisa, alguma areia tem que entrar dentro da...

[?]: Da concha?

Rubem Alves: Da ostra. Por exemplo, por que as professoras tiveram essa idéia de fazer o filme? Porque não estava dando certo, e elas puseram a sua inteligência para funcionar e tiveram essa idéia brilhante. Eu acho que o grande problema de educação, no Brasil e em toda parte do mundo, não é recursos para educação, não é dinheiro. Dinheiro na mão de quem não tem imaginação é uma catástrofe. Eu acho que a grande questão é imaginação. É preciso provocar os professores para que eles também sonhem, para que eles tenham imaginação.

Paola Gentile: E o que a gente muda primeiro: a mentalidade dos professores ou a educação?

[Falam simultaneamente]

Rubem Alves: Olha, olha...

[Falam simultaneamente]

Rubem Alves: [faz gesto como se pedisse calma, devido a vários estarem falando ao mesmo tempo] Ela está lá esperando, estou doido para ouvir a pergunta dela!

Tatiana Belinky: Eu estava ainda nos tribunais naquela hora, e me lembrei que quem tinha tribunais assim era aquele herói, mártir e justo, Janusz Korczak [pseudônimo tirado de um romance de Kra Szewski; seu nome verdadeiro era Henryk Goldszmit e viveu no período de 1878 a 1942].

Rubem Alves: Janusz Korczak! [bate palmas]

Tatiana Belinky: E ele tinha isso. Naquelas escolas dele [era uma escola diferenciada onde se praticava a democracia exercida através do voto das crianças em assembléias - o “tribunal” ou “parlamento” - e seu programa pedagógico fundamentava-se na tese de que as crianças devem ser plenamente compreendidas em seu próprio mundo mental], era médico, era educador nato, era educador porque era de coração.

Rubem Alves: Quem sabe a senhora explica um pouquinho sobre Janusz Korczak, porque é possível que muitos de nossos telespectadores não saibam quem foi.

Tatiana Belinky: Bom, ele foi um médico polonês, judeu, que resolveu formar dois orfanatos para criancinhas pobres, abandonadas, órfãs mesmo. E naquela época havia muito anti-semitismo e ele então fez dois orfanatos, duas escolas: uma para as crianças judias órfãs e outra para as polonesas. E ele instituiu todo um programa, e toda uma filosofia, e ele era o bom doutor, ele era médico também.

Rubem Alves: E ele foi levado ao tribunal várias vezes pelas crianças!

Tatiana Belinky: Foi, e ele instituiu essa coisa de tribunal, em que havia o acusado, o acusador, o defensor. E ele, de vez em quando, quando era preciso, quando era chamado, porque ele também era julgado, intervinha. Eu disse herói e mártir, porque ele foi parar num campo de concentração com muitas crianças, e ele podia ter saído de lá porque ele era famoso já, porque tinha livros escritos, era um grande educador. E conseguiram um salvo-conduto para ele sair daquele inferno, e ele se recusou a sair sem as crianças, e morreu no forno crematório, com uma criança em cada braço, duas agarradas, e todas as outras junto. E deixou livros escritos, esse foi o herói da educação.

Rubem Alves: Como amar uma criança, Quando eu voltar a ser criança são livros dele traduzidos para o português.

Tatiana Belinky: Exatamente. Existe uma sociedade já do Korczak, aqui em São Paulo [AJKB – Associação Janusz Korczak do Brasil].

Rubem Alves: Sim.

Tatiana Belinky: E foi inaugurada - isso é uma curiosidade - uma brinquedoteca por uma ONG, no Hospital das Clínicas, para crianças internadas, com o nome de Janusz Korczak. Brinquedoteca porque tinha também uma estante de livros, brinquedos e livros.

Paulo Markun: A gente não tem uma certa...

Tatiana Belinky: E também tem outros educadores. Janusz Korczak até se correspondia, conhecia o russo [Anton Semionovich] Makarenko, que era outro, completamente diferente. Também tinha tribunais, também tinha julgamentos. Esses heróis da educação, inovadores, existiram.

Rubem Alves: Agora, a senhora veja o seguinte. Isso aí depende do fato de acreditarmos que as crianças são inteligentes, que elas não são irresponsáveis. E na medida em que a gente dá responsabilidade, elas assumem essa responsabilidade. Há uns tempos atrás numa cidade cujo nome não vou mencionar, houve uma reunião lá de três dias, de professores e funcionários das escolas e não sei mais quem, para decidir o futuro da educação, o futuro das escolas. Depois me mandaram esta informação: “o que eu achava?”. Eu disse: “As crianças não foram consultadas”. Quer dizer, nós tomamos as decisões, não consultamos as crianças e pensamos que as crianças são idiotas. Elas não são idiotas, elas são inteligentes.

Tatiana Belinky: Inteligentíssimas!

Rubem Alves: Eu vejo isso pela maneira como elas compreendem as histórias que eu escrevo, que não são histórias fáceis, mas elas têm uma percepção absolutamente comovente e surpreendente.

Leila Iannone: E tem um senso de justiça, não é?

Tatiana Belinky: Senso de justiça e ética. Aquelas regras que eles estabelecem entre eles...

Rubem Alves: Têm que ser respeitadas.

Tatiana Belinky: Aliás, existe um livro também, acho que do Piaget [provavelmente trata-se do livro O juízo moral na criança, de 1932], sobre o desenvolvimento moral da criança, não é?

Rubem Alves: Sim, sim.

[falas simultâneas]

Tatiana Belinky: E existe outro russo... Esse acho que nem o senhor ouviu falar. [a pronúnica parece ter sido algo como] Cornetiu Cofisky.

Rubem Alves: Não, este não conheço.

Tatiana Belinky: Educador, professor, poeta e humorista. Ele achava que [é] lindo, [que a] criança tem que ser alegre, ela quer ser alegre, ela precisa ser alegre. Aí, a inteligência dela tem que ser estimulada, o tal “Viagra” das criancinhas. [risos]

Rubem Alves: Isso, isso mesmo.

Nélio Bizzo: Professor, o ministro da Educação, Cristovam Buarque, acaba de anunciar hoje que pretende acabar com a progressão continuada nas escolas. O que o senhor acha disso?

Rubem Alves: Eu posso começar isso de um ângulo que você não tinha pensado e vou dizer para você...

Tatiana Belinky: Eu já pensei, eu sei.

Rubem Alves: Uma das coisas interessantes na Escola da Ponte, quando eu cheguei lá - eram todas as crianças em uma sala, em mesinhas - notei que havia várias crianças com síndrome de Down totalmente integradas e as outras crianças ajudando. Imagine que nós tivéssemos esse sistema: primeiro, segundo, terceiro, quarto... O que aconteceria com aquelas crianças com síndrome de Down? Elas não poderiam ser integradas porque elas não conseguem caminhar na mesma velocidade que as outras. Mas isso que se aplica às crianças com síndrome de Down eu diria para vocês que se aplica a todas as crianças. As crianças não têm a mesma velocidade de aprendizagem. E uma coisa então que seria desejável, no meu ponto de vista, seria um sistema em que houvesse uma flexibilidade para que as crianças seguissem o seu ritmo. Agora você veja, isso é impossível num sistema onde você tem duas mil crianças numa mesma escola porque esse sistema requer uma relação face a face. Nós, então, perguntamos ao José Pacheco que era o diretor lá, qual era o número ideal de crianças numa unidade escolar. Ele disse que, pelos cálculos dele, era 150. Então ele disse: “Essas grandes escolas teriam que se dividir em unidades menores, em que pudesse haver esse tipo de relação face a face, pessoal, com os alunos”. Eu insisto sempre numa coisa com os professores: a sua fidelidade não é ao programa, a sua fidelidade é à criança. Isso é importante para mim. Você se lembra o que aconteceu? Acho que há uns seis meses, um moço, numa cidade do interior, atirou nos colegas e depois se matou? Vocês se lembram disso? Eu não me lembro exatamente dos detalhes, mas eu me lembro que ele era muito gordo, era objeto de chacota dos colegas que o chamavam de elefante cor-de-rosa. Era bullying [tortura psicológica a que grupos de estudantes submetem certos colegas]. E o chamavam de elefante cor-de-rosa. E ele se matou. Aí eu fico pensando: será que os professores nunca perceberam que ele era objeto de chacota? O que fizeram? O professor pode dizer que a obrigação dele não é ser psicólogo, que a obrigação dele é ensinar matemática, ensinar história. Tudo bem. Mas eu acho que a primeira obrigação de qualquer educador é estar atento para os olhos daquela criança ou daquele adolescente. O que nos importa não é que ele passe de ano nem que o programa seja dado, o que importa é a alegria e o bem-estar daquela criança.

Nélio Bizzo: E muitas vezes essas interações acontecem nos momentos em que os professores normalmente não estão atentos, como por exemplo, na hora do recreio, não é? Na hora do recreio as crianças interagem, e muitas vezes... Meu filho, por exemplo, que estudava numa escola pública, e o pessoal mais pobre roubava lanche na hora do recreio. Quer dizer, então estava se criando um estigma na escola contra os meninos pobres diante de algo que acontecia no recreio, e ninguém, nenhum professor via, a direção da escola não via.

Rubem Alves: Seria um caso de pensar se está certo esse sistema de ficarem, os professores, na sua salinha, enquanto as crianças estão lá, não é verdade?

Nélio Bizzo: Pois é.

Rubem Alves: Acho que também os professores, quem sabe, talvez pudessem se balançar um pouco...

Paola Gentile: E eles não vêem o recreio como espaço de aprendizagem também, há esse tipo de preconceito...

Rubem Alves: Aprendizagem e desenvolvimento de relações sociais.

Paola Gentile: Exatamente, o espaço de aprendizagem é a escola como um todo e não somente a sala de aula.

Paulo Markun: Só um pouquinho, Leonardo. Leonardo, por favor. Desculpe, mas aqui parece sala de aula, [risos] nosso tempo está acabando, tem uma última pergunta... Só queria colocar uma questão que é a seguinte, estou parecendo professor rabugento.

[risos]

Paulo Markun: A gente não está esquecendo um pouco da capacidade dos próprios jovens, das próprias crianças, dos próprios alunos, de alguma forma, de construir caminhos de resistência? E eu explico. Quando eu era garoto, o grande perigo era a televisão. Televisão era um horror, eu diria até que no meu tempo nem era a televisão, porque eu sou um pouco mais velho. E quando eu comecei aí, a televisão ainda era muito incipiente. Mas era a história em quadrinhos. Depois foi a televisão. Hoje é a internet. E no entanto se a gente entrar na internet, vai verificar que 10% de todos os blogs, que são uma espécie de diários pessoais, que existem no mundo são de brasileiros, de jovens brasileiros. É uma quantidade impressionante de espaços onde esses jovens de 15 a 25 anos se expressam, expõem as suas idéias, seus pensamentos, seus sentimentos, suas besteiras e a sua vida. A gente não está esquecendo um pouco disso?

Rubem Alves: Olha, eu devo dizer a você que não estou esquecendo disso, apenas não tivemos tempo para mencionar porque isso é realmente uma coisa extraordinária. A internet acabou com o conceito de tempo de aula e de espaço de aula porque agora, na internet, não tem mais o espaço da sala de aula, é o mundo, você está em qualquer lugar. Não tem um tempo, você pode ir às duas horas da manhã. Então, o que acontece é o seguinte. Nós temos um sistema aqui que continua: um sistema tradicional, com sala de aula, campainha, 45 minutos, tempo para parar de pensar isso, e passar a pensar português, depois pára de pensar português e passa a pensar matemática... Isso agora acabou na internet. E a gente vê o descompasso entre a inteligência e a preocupação e o interesse desembestado dos jovens em contraposição a uma escola que não anda tão depressa e nem está adaptada a esse novo mundo. Então, existe isso.

Leonardo Trevisan: Então Rousseau ganhou de Locke?

Rubem Alves: O que você falou?

Leonardo Trevisan: Então Rousseau, para quem “o homem nasce bom” [refere-se à tese de Jean Jacques Rousseau, segundo a qual o homem isolado da sociedade vive o estado de felicidade original, ou seja, os humanos existem sob a forma do bom selvagem inocente; a sociedade e a divisão entre “o meu” e o “teu” é que corrompe o homem], ganhou de Locke, para quem “o homem é lobo do próprio homem” [essa afirmativa é atribuída a Hobbes quando afirma que todo homem tem um instinto de autoconservaçăo o que faz dele um ser egoísta que para satisfazer suas necessidades pessoais vive uma permanente disputa em busca de maior poder. Locke admite um estado primitivo da natureza antes do estado civilizado, mas com um sentido moral e um dever racional de respeitar nos outros a mesma personalidade que nele se encontra].

Rubem Alves: Eu não sei se qualquer dos dois está certo. E há homens que nascem lobos, e há homens que nascem cordeiros, eu acho que sou mais inclinado a essa teoria. Isso são certos defeitos da psicanálise, eu infelizmente, contra a minha vontade, tendo a acreditar nisso.

Leonardo Trevisan: O senhor acredita que o Locke perdeu a guerra?

Rubem Alves: Não, eu acho que os dois estão empatados.

Paulo Markun: Bem, de todo modo, a guerra acabou! Leonardo, muito obrigado. Obrigado, professor Rubem Alves.

Rubem Alves: Muito obrigado! Foi um prazer muito grande estar com vocês.

Paulo Markun: Muito obrigado aos nossos entrevistadores e a você que está em casa.

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Brasil Acadêmico: Rubem Alves e a escola ideal
Rubem Alves e a escola ideal
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Brasil Acadêmico
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