O que mais desejamos no fim de nossas vidas? Para muitos, é simplesmente conforto, respeito, amor. BJ Miller é um médico de doentes terminai...
O que mais desejamos no fim de nossas vidas? Para muitos, é simplesmente conforto, respeito, amor. BJ Miller é um médico de doentes terminais que pensa seriamente sobre como criar um final de vida criativo, digno e aprazível para seus pacientes. Saboreie devagar essa tocante palestra, que levanta importantes questões sobre como pensamos na morte e reverenciamos a vida.
Bem, todos precisamos de uma razão para acordar. Para mim, bastaram 11 mil volts. Como são educados demais para perguntar, então eu mesmo conto.
Uma noite, no segundo ano da faculdade, após o feriado de Ação de Graças, eu e alguns amigos estávamos farreando e decidimos subir no topo de um trem elétrico parado. A ideia era só sentar lá com os fios passando sobre nossa cabeça. Não sei por que, mas aquilo pareceu uma ótima ideia à época. Já tínhamos feito coisas mais estúpidas antes. Subi correndo a escada de trás e, quando fiquei de pé, a corrente elétrica entrou pelo meu braço, arrancou meus pés, e foi isto. Vocês acreditam que aquele relógio ainda funciona? Duro na queda!
(Risos)
Agora, meu pai o usa em solidariedade.
Naquela noite começou meu relacionamento formal com a morte, com minha morte, e também começou minha via-crúcis como paciente. É uma boa palavra. Significa alguém que padece. Então somos todos pacientes.
Bem, o sistema de saúde americano tem lá sua parcela de problemas, mas de excelência também, certamente.
E, acreditem, quase todos que entram no sistema de saúde são bem-intencionados, de verdade. Mas nós que trabalhamos com isso também somos agentes involuntários de um sistema que, normalmente, não sabe servir.
Por quê? Bem, existe uma resposta bem simples para essa pergunta, e ela explica muito porque o cerne do sistema de saúde são as doenças, e não as pessoas. O que significa dizer, é claro, que foi mal projetado. E não há situação em que os efeitos desse design ruim sejam mais devastadores, ou que seja mais imperiosa a necessidade de um bom design, do que no fim da vida, no qual as coisas estão bem destiladas e concentradas. Não há segundas chances.
Temos uma oportunidade monumental à nossa frente, em face de uma das poucas questões universais tanto aos indivíduos quanto à sociedade civil: repensar e redesenhar o morrer.
Então, vamos começar pelo fim.
É uma distinção chave. Para nos aprofundarmos, é importante distinguir o sofrimento que é necessário, do jeito que é, do sofrimento que podemos mudar. O primeiro é uma coisa natural, essencial da vida, faz parte, e, para este, somos chamados a abrir espaço, nos ajustar, crescer. É muito bom perceber forças maiores que nós mesmos. Elas nos dão um senso de proporção, como um ajustamento cósmico. Depois que perdi meus membros, essa perda, por exemplo, se tornou um fato consumado, parte inerente da minha vida, e aprendi que não podia rejeitar esse fato sem rejeitar a mim mesmo. Levou um tempo, mas acabei aprendendo. Um outro aspecto do sofrimento necessário é que ele é exatamente aquilo que une o cuidador e quem recebe os cuidados, seres humanos. É aí, finalmente estamos percebendo, que a cura acontece. Sim, compaixão, literalmente, como aprendemos ontem, sofrer juntos.
Por outro lado, do ponto de vista do sistema, muito do sofrimento é desnecessário, inventado. Não tem qualquer propósito. Mas, o lado bom é que, já que esse tipo de sofrimento é inventado, então temos como mudá-lo.
Fazer o sistema mais sensível a essa distinção fundamental, entre o sofrimento necessário e o desnecessário, nos dá nossas três diretrizes do design. Afinal, nosso papel como cuidadores, como pessoas que se importam, é aliviar o sofrimento, e não aumentá-lo mais ainda.
Fiel aos princípios dos cuidados paliativos, atuo tanto como um pensador da causa, quanto um médico que prescreve receitas.
Não se limita ao asilo. É simplesmente sobre conforto e bem-estar em qualquer estágio. Fiquem sabendo que não precisam estar à beira da morte para se beneficiar desses cuidados.
Agora, queria lhes falar do Frank. Ele ilustra isso. Atendo o Frank há anos. Ele tem câncer de próstata avançado, além de um HIV de longa data. Cuidamos da sua dor nos ossos e da fadiga, mas, a maior parte do tempo, pensamos em voz alta sobre a sua vida na verdade, sobre nossas vidas. E, dessa forma, Frank desabafa. Dessa forma, ele lida com suas perdas à medida que elas acontecem, de modo a estar pronto para aceitar o próximo momento. Perda é uma coisa, mas arrependimento, outra bem diferente. Frank sempre foi aventureiro, ele se parece com algo saído de uma pintura de Norman Rockwell, e não é fã do arrependimento. Assim, não foi surpresa quando, um dia, chegou à clínica dizendo que queria descer o Rio Colorado.
Será que era uma boa ideia? Com todos os riscos à sua segurança e sua saúde, alguns diriam não. Muitos disseram, mas ele foi assim mesmo, enquanto podia. E foi uma viagem gloriosa, maravilhosa: água congelante, calor seco intenso, escorpiões, cobras, vida selvagem uivando dos muros flamejantes do Grand Canyon; todo o lado glorioso do mundo fora do nosso controle. A decisão de Frank, um pouco dramática, é exatamente aquela que muitos de nós faríamos se tivéssemos apoio ao longo da vida para descobrir o melhor para nós.
Muito do que estamos falando aqui hoje é uma mudança de perspectiva. Após o acidente, quando voltei para a faculdade, mudei meu curso para História da Arte.
Perspectiva, esse tipo de alquimia com que nós humanos brincamos, transformando a angústia numa flor.
Avançando no tempo, agora trabalho num lugar incrível em São Francisco chamado Zen Hospice Project, onde temos um pequeno ritual que ajuda nessa mudança de perspectiva. Quando um dos nossos internos morre, os agentes funerários vêm e, enquanto passamos com o corpo pelo jardim, em direção ao portão, paramos. Quem quiser, colegas, familiares, enfermeiros, voluntários, o motorista da funerária também agora, compartilha uma história ou uma música ou o silêncio, enquanto jogamos pétalas no corpo. Leva poucos minutos; é uma imagem doce e simples da partida para entrar na dor com aconchego, em vez de repugnância.
Comparem isso com a experiência típica em um hospital, parecido com isto aqui: quarto iluminado, cheio de tubos e máquinas com bipes e luzes que piscam sem parar, mesmo quando a vida do paciente já parou. O pessoal da limpeza entra, o corpo é levado às pressas, e é como se aquela pessoa nunca tivesse existido. Tudo bem-intencionado, é claro, em nome da esterilidade, mas os hospitais tendem a agredir nossos sentidos, e o máximo que podemos esperar dentro dessas paredes é entorpecimento, anestésico, literalmente o contrário de estético. Respeito os hospitais pelo que conseguem fazer; estou vivo por causa deles.
Mas atenção, não estou desistindo da noção de que nossas instituições podem ser mais humanas. A beleza pode ser encontrada em todos os lugares.
Uma noite, começou a nevar. Lembro-me das enfermeiras reclamando de dirigir na neve. E não havia janelas no meu quarto, mas foi ótimo apenas imaginar a neve descendo toda pegajosa. No dia seguinte, uma das enfermeiras camuflou para mim uma bola de neve. Ela a trouxe para dentro do prédio. Nem consigo contar o arrebatamento que senti segurando aquilo nas mãos e o frio pingando em minha pele queimada; o milagre disso tudo, o fascínio enquanto via a bola derreter, virando água.
Aquela bolinha de neve traduzia toda a inspiração que precisava tanto para tentar viver quanto para ficar bem, caso não conseguisse. Num hospital, esse é um momento furtivo.
Ao longo dos meus anos de trabalho, conheci muitas pessoas prontas para ir, prontas para morrer. Não por terem encontrado alguma paz final ou transcendência, mas porque tinham tanta repulsa pelo que suas vidas tinham se tornado... numa palavra, liquidada, ou feia. Já existe um número recorde de nós vivendo com doenças crônicas e terminais, com idades cada vez mais avançadas. E estamos longe de estarmos prontos ou preparados para este tsunami prateado. Precisamos de uma infraestrutura dinâmica o suficiente para lidar com essas mudanças sísmicas em nossa população.
E os ingredientes chave são conhecidos: política, educação e treinamento, sistemas, tijolos e argamassa. Temos toneladas de dados para todos os tipos de designers trabalharem.
Sabemos, por exemplo, pelas pesquisas, o que é mais importante para quem está perto da morte: conforto. Sentir-se aliviado e não ser um peso para os entes queridos; paz existencial; e um senso de maravilhamento e espiritualidade.
Trabalhando no Zen Hospice quase 30 anos, aprendemos muito mais de nossos residentes com detalhes sutis. Pequenas coisas não são tão pequenas. Observemos a Janette. Ela acha difícil respirar no dia a dia por causa da ELA. Mas adivinhem! Ela quer começar a fumar de novo, e cigarros franceses, faz favor. Não como autodestruição, mas para sentir os pulmões cheios enquanto ainda os tem. As prioridades mudam.
Ou Kate – ela só quer saber de seu cachorro Austin deitado aos pés de sua cama, seu focinho frio contra sua pele seca, em vez de mais quimioterapia correndo em suas veias; ela já fez isso. Gratificação sensual, estética, em que, num momento, num instante, somos recompensados por apenas existirmos. Muito disso vem de amar nosso tempo por meio dos sentidos, por meio do corpo, precisamente aquilo que faz o viver e o morrer.
Provavelmente o cômodo mais tocante no Zen Hospice é nossa cozinha, o que é um pouco estranho quando se percebe que muitos dos nossos residentes conseguem comer bem pouco, quando conseguem. Mas percebemos que estamos oferecendo sustento em diversos níveis: cheiro, um plano simbólico. Sério, com tanta coisa pesada acontecendo debaixo do nosso teto, uma das intervenções mais eficazes e verdadeiras que conhecemos é assar biscoitos. Enquanto tivermos nossos sentidos, mesmo apenas um, temos pelo menos a possibilidade de acessar o que nos faz sentir humanos, conectados. Imaginem a repercussão dessa noção para milhões de pessoas vivendo e morrendo com demência. Os prazeres dos sentidos primários, para os quais não temos mais palavras, impulsos que nos fazem estar presentes, sem necessidade de um passado ou de um futuro.
Assim, se a primeira diretriz do design é tirar o sofrimento necessário do sistema, então zelar pela dignidade por meio dos sentidos, por meio do corpo, o reino estético, é a diretriz número dois do design. Isso nos leva rápido para a terceira e última diretriz hoje; a saber, precisamos mudar nosso foco para o bem-estar, de modo que a vida, a saúde e o sistema de saúde se transformem em fazer a vida mais maravilhosa, em vez de apenas menos horrível. Beneficência.
Isso está diretamente ligado à distinção entre um modelo de cuidado centrado no paciente ou no ser humano, e é aqui que o cuidado se torna um ato criativo, gerador e até brincalhão. “Brincar” pode soar um pouco estranho aqui. Mas é também uma das nossas melhores formas de adaptação. Pensem em todos os esforços necessários para sermos humanos.
Assim, já que morrer é uma parte necessária da vida, o que podemos criar com esse fato? Por “brincar” não estou sugerindo uma abordagem leve do morrer, ou que exijamos qualquer modo particular de morrer. Existem montanhas de tristeza que não podem ser movidas e, de um jeito ou de outro, todos vamos fraquejar ali. Em vez disso, estou pedindo que abramos espaço físico, espaço psíquico, para permitir à vida ser ela mesma na saída, de modo que, em vez de simplesmente sair do caminho, envelhecer e morrer possa vir num crescendo até o fim.
(Risos)
Enquanto isso, podemos...
(Risos)
podemos ser criativos nessa direção. Partes de mim morreram cedo, e é algo que todos podemos dizer de um jeito ou de outro. Tive de redesenhar minha vida ao redor desse fato, e digo a vocês que é libertador saber que é possível se surpreender com a beleza ou o significado na vida que lhe resta, como aquela bola de neve durando um instante perfeito enquanto ia derretendo. Se amarmos tais momentos intensamente, então talvez possamos aprender a viver bem, não apesar da morte, mas por causa dela.
Obrigado.
(Aplausos)
Fonte: TED
[Visto no Brasil Acadêmico]
Bem, todos precisamos de uma razão para acordar. Para mim, bastaram 11 mil volts. Como são educados demais para perguntar, então eu mesmo conto.
Uma noite, no segundo ano da faculdade, após o feriado de Ação de Graças, eu e alguns amigos estávamos farreando e decidimos subir no topo de um trem elétrico parado. A ideia era só sentar lá com os fios passando sobre nossa cabeça. Não sei por que, mas aquilo pareceu uma ótima ideia à época. Já tínhamos feito coisas mais estúpidas antes. Subi correndo a escada de trás e, quando fiquei de pé, a corrente elétrica entrou pelo meu braço, arrancou meus pés, e foi isto. Vocês acreditam que aquele relógio ainda funciona? Duro na queda!
(Risos)
Agora, meu pai o usa em solidariedade.
Naquela noite começou meu relacionamento formal com a morte, com minha morte, e também começou minha via-crúcis como paciente. É uma boa palavra. Significa alguém que padece. Então somos todos pacientes.
Bem, o sistema de saúde americano tem lá sua parcela de problemas, mas de excelência também, certamente.
Sou um médico agora que atua num asilo e medicina paliativa, então, pude ver o atendimento pelos dois lados.
E, acreditem, quase todos que entram no sistema de saúde são bem-intencionados, de verdade. Mas nós que trabalhamos com isso também somos agentes involuntários de um sistema que, normalmente, não sabe servir.
Por quê? Bem, existe uma resposta bem simples para essa pergunta, e ela explica muito porque o cerne do sistema de saúde são as doenças, e não as pessoas. O que significa dizer, é claro, que foi mal projetado. E não há situação em que os efeitos desse design ruim sejam mais devastadores, ou que seja mais imperiosa a necessidade de um bom design, do que no fim da vida, no qual as coisas estão bem destiladas e concentradas. Não há segundas chances.
Meu objetivo hoje em dia é interagir com outras disciplinas e convidar o “design thinking” a dar sua contribuição. Isto é, trazer intenção e criatividade para a experiência do morrer.
Temos uma oportunidade monumental à nossa frente, em face de uma das poucas questões universais tanto aos indivíduos quanto à sociedade civil: repensar e redesenhar o morrer.
Então, vamos começar pelo fim.
Para a maioria das pessoas, a coisa mais assustadora da morte não é estar morto. É o morrer, sofrer.
É uma distinção chave. Para nos aprofundarmos, é importante distinguir o sofrimento que é necessário, do jeito que é, do sofrimento que podemos mudar. O primeiro é uma coisa natural, essencial da vida, faz parte, e, para este, somos chamados a abrir espaço, nos ajustar, crescer. É muito bom perceber forças maiores que nós mesmos. Elas nos dão um senso de proporção, como um ajustamento cósmico. Depois que perdi meus membros, essa perda, por exemplo, se tornou um fato consumado, parte inerente da minha vida, e aprendi que não podia rejeitar esse fato sem rejeitar a mim mesmo. Levou um tempo, mas acabei aprendendo. Um outro aspecto do sofrimento necessário é que ele é exatamente aquilo que une o cuidador e quem recebe os cuidados, seres humanos. É aí, finalmente estamos percebendo, que a cura acontece. Sim, compaixão, literalmente, como aprendemos ontem, sofrer juntos.
Por outro lado, do ponto de vista do sistema, muito do sofrimento é desnecessário, inventado. Não tem qualquer propósito. Mas, o lado bom é que, já que esse tipo de sofrimento é inventado, então temos como mudá-lo.
Como morremos é, de fato, algo que podemos mudar.
Fazer o sistema mais sensível a essa distinção fundamental, entre o sofrimento necessário e o desnecessário, nos dá nossas três diretrizes do design. Afinal, nosso papel como cuidadores, como pessoas que se importam, é aliviar o sofrimento, e não aumentá-lo mais ainda.
Fiel aos princípios dos cuidados paliativos, atuo tanto como um pensador da causa, quanto um médico que prescreve receitas.
Parênteses: cuidados paliativos, um campo muito importante, mas pouco entendido, inclui os cuidados no fim da vida, mas não se limita a eles.
Não se limita ao asilo. É simplesmente sobre conforto e bem-estar em qualquer estágio. Fiquem sabendo que não precisam estar à beira da morte para se beneficiar desses cuidados.
Agora, queria lhes falar do Frank. Ele ilustra isso. Atendo o Frank há anos. Ele tem câncer de próstata avançado, além de um HIV de longa data. Cuidamos da sua dor nos ossos e da fadiga, mas, a maior parte do tempo, pensamos em voz alta sobre a sua vida na verdade, sobre nossas vidas. E, dessa forma, Frank desabafa. Dessa forma, ele lida com suas perdas à medida que elas acontecem, de modo a estar pronto para aceitar o próximo momento. Perda é uma coisa, mas arrependimento, outra bem diferente. Frank sempre foi aventureiro, ele se parece com algo saído de uma pintura de Norman Rockwell, e não é fã do arrependimento. Assim, não foi surpresa quando, um dia, chegou à clínica dizendo que queria descer o Rio Colorado.
Será que era uma boa ideia? Com todos os riscos à sua segurança e sua saúde, alguns diriam não. Muitos disseram, mas ele foi assim mesmo, enquanto podia. E foi uma viagem gloriosa, maravilhosa: água congelante, calor seco intenso, escorpiões, cobras, vida selvagem uivando dos muros flamejantes do Grand Canyon; todo o lado glorioso do mundo fora do nosso controle. A decisão de Frank, um pouco dramática, é exatamente aquela que muitos de nós faríamos se tivéssemos apoio ao longo da vida para descobrir o melhor para nós.
Muito do que estamos falando aqui hoje é uma mudança de perspectiva. Após o acidente, quando voltei para a faculdade, mudei meu curso para História da Arte.
Estudando artes visuais, achei que iria aprender a ver: uma lição realmente poderosa para um rapaz que não conseguia mudar muito daquilo que estava vendo.
Perspectiva, esse tipo de alquimia com que nós humanos brincamos, transformando a angústia numa flor.
Avançando no tempo, agora trabalho num lugar incrível em São Francisco chamado Zen Hospice Project, onde temos um pequeno ritual que ajuda nessa mudança de perspectiva. Quando um dos nossos internos morre, os agentes funerários vêm e, enquanto passamos com o corpo pelo jardim, em direção ao portão, paramos. Quem quiser, colegas, familiares, enfermeiros, voluntários, o motorista da funerária também agora, compartilha uma história ou uma música ou o silêncio, enquanto jogamos pétalas no corpo. Leva poucos minutos; é uma imagem doce e simples da partida para entrar na dor com aconchego, em vez de repugnância.
Comparem isso com a experiência típica em um hospital, parecido com isto aqui: quarto iluminado, cheio de tubos e máquinas com bipes e luzes que piscam sem parar, mesmo quando a vida do paciente já parou. O pessoal da limpeza entra, o corpo é levado às pressas, e é como se aquela pessoa nunca tivesse existido. Tudo bem-intencionado, é claro, em nome da esterilidade, mas os hospitais tendem a agredir nossos sentidos, e o máximo que podemos esperar dentro dessas paredes é entorpecimento, anestésico, literalmente o contrário de estético. Respeito os hospitais pelo que conseguem fazer; estou vivo por causa deles.
Mas exigimos demais de nossos hospitais. Eles são lugares para traumas agudos e doenças tratáveis. Não são lugares para morrer e viver; não foram projetados para isso.
Mas atenção, não estou desistindo da noção de que nossas instituições podem ser mais humanas. A beleza pode ser encontrada em todos os lugares.
Passei alguns meses numa unidade de queimados no Hospital St. Barnabas, em Livingston, Nova Jérsei, onde tive cuidados realmente excelentes o tempo todo, incluindo bons cuidados paliativos para minha dor.
Uma noite, começou a nevar. Lembro-me das enfermeiras reclamando de dirigir na neve. E não havia janelas no meu quarto, mas foi ótimo apenas imaginar a neve descendo toda pegajosa. No dia seguinte, uma das enfermeiras camuflou para mim uma bola de neve. Ela a trouxe para dentro do prédio. Nem consigo contar o arrebatamento que senti segurando aquilo nas mãos e o frio pingando em minha pele queimada; o milagre disso tudo, o fascínio enquanto via a bola derreter, virando água.
Naquele momento, simplesmente fazer parte deste planeta, deste universo, importava mais para mim do que viver ou morrer.
Aquela bolinha de neve traduzia toda a inspiração que precisava tanto para tentar viver quanto para ficar bem, caso não conseguisse. Num hospital, esse é um momento furtivo.
Ao longo dos meus anos de trabalho, conheci muitas pessoas prontas para ir, prontas para morrer. Não por terem encontrado alguma paz final ou transcendência, mas porque tinham tanta repulsa pelo que suas vidas tinham se tornado... numa palavra, liquidada, ou feia. Já existe um número recorde de nós vivendo com doenças crônicas e terminais, com idades cada vez mais avançadas. E estamos longe de estarmos prontos ou preparados para este tsunami prateado. Precisamos de uma infraestrutura dinâmica o suficiente para lidar com essas mudanças sísmicas em nossa população.
Agora é a hora de criarmos algo novo, algo vital. Sei que podemos, porque precisamos. A alternativa é simplesmente inaceitável.
E os ingredientes chave são conhecidos: política, educação e treinamento, sistemas, tijolos e argamassa. Temos toneladas de dados para todos os tipos de designers trabalharem.
Sabemos, por exemplo, pelas pesquisas, o que é mais importante para quem está perto da morte: conforto. Sentir-se aliviado e não ser um peso para os entes queridos; paz existencial; e um senso de maravilhamento e espiritualidade.
Trabalhando no Zen Hospice quase 30 anos, aprendemos muito mais de nossos residentes com detalhes sutis. Pequenas coisas não são tão pequenas. Observemos a Janette. Ela acha difícil respirar no dia a dia por causa da ELA. Mas adivinhem! Ela quer começar a fumar de novo, e cigarros franceses, faz favor. Não como autodestruição, mas para sentir os pulmões cheios enquanto ainda os tem. As prioridades mudam.
Ou Kate – ela só quer saber de seu cachorro Austin deitado aos pés de sua cama, seu focinho frio contra sua pele seca, em vez de mais quimioterapia correndo em suas veias; ela já fez isso. Gratificação sensual, estética, em que, num momento, num instante, somos recompensados por apenas existirmos. Muito disso vem de amar nosso tempo por meio dos sentidos, por meio do corpo, precisamente aquilo que faz o viver e o morrer.
Provavelmente o cômodo mais tocante no Zen Hospice é nossa cozinha, o que é um pouco estranho quando se percebe que muitos dos nossos residentes conseguem comer bem pouco, quando conseguem. Mas percebemos que estamos oferecendo sustento em diversos níveis: cheiro, um plano simbólico. Sério, com tanta coisa pesada acontecendo debaixo do nosso teto, uma das intervenções mais eficazes e verdadeiras que conhecemos é assar biscoitos. Enquanto tivermos nossos sentidos, mesmo apenas um, temos pelo menos a possibilidade de acessar o que nos faz sentir humanos, conectados. Imaginem a repercussão dessa noção para milhões de pessoas vivendo e morrendo com demência. Os prazeres dos sentidos primários, para os quais não temos mais palavras, impulsos que nos fazem estar presentes, sem necessidade de um passado ou de um futuro.
Assim, se a primeira diretriz do design é tirar o sofrimento necessário do sistema, então zelar pela dignidade por meio dos sentidos, por meio do corpo, o reino estético, é a diretriz número dois do design. Isso nos leva rápido para a terceira e última diretriz hoje; a saber, precisamos mudar nosso foco para o bem-estar, de modo que a vida, a saúde e o sistema de saúde se transformem em fazer a vida mais maravilhosa, em vez de apenas menos horrível. Beneficência.
Isso está diretamente ligado à distinção entre um modelo de cuidado centrado no paciente ou no ser humano, e é aqui que o cuidado se torna um ato criativo, gerador e até brincalhão. “Brincar” pode soar um pouco estranho aqui. Mas é também uma das nossas melhores formas de adaptação. Pensem em todos os esforços necessários para sermos humanos.
A necessidade de comida originou a culinária. A necessidade de abrigo deu origem à arquitetura. A necessidade de se cobrir, a moda. E, por estarmos sujeitos ao relógio, bem, inventamos a música.
Assim, já que morrer é uma parte necessária da vida, o que podemos criar com esse fato? Por “brincar” não estou sugerindo uma abordagem leve do morrer, ou que exijamos qualquer modo particular de morrer. Existem montanhas de tristeza que não podem ser movidas e, de um jeito ou de outro, todos vamos fraquejar ali. Em vez disso, estou pedindo que abramos espaço físico, espaço psíquico, para permitir à vida ser ela mesma na saída, de modo que, em vez de simplesmente sair do caminho, envelhecer e morrer possa vir num crescendo até o fim.
Não temos solução para a morte. Sei que alguns aqui estão trabalhando nisso.
(Risos)
Enquanto isso, podemos...
(Risos)
podemos ser criativos nessa direção. Partes de mim morreram cedo, e é algo que todos podemos dizer de um jeito ou de outro. Tive de redesenhar minha vida ao redor desse fato, e digo a vocês que é libertador saber que é possível se surpreender com a beleza ou o significado na vida que lhe resta, como aquela bola de neve durando um instante perfeito enquanto ia derretendo. Se amarmos tais momentos intensamente, então talvez possamos aprender a viver bem, não apesar da morte, mas por causa dela.
Deixe a morte ser o que nos leva, não a falta de imaginação.
Obrigado.
(Aplausos)
Fonte: TED
[Visto no Brasil Acadêmico]
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