Uma Acolhedora Tribo

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Neste conto, nosso cronista antevê nos anos 1990, de forma divertida, como a evolução farmacológica poderia revolucionar os costumes.

Neste conto, nosso cronista antevê nos anos 1990, de forma divertida, como a evolução farmacológica poderia revolucionar os costumes.

Tornei-me hemofílico por capricho dos deuses!


Não herdei hemofilia de nenhum antecedente meu não. Aliás, devo esclarecer que nunca herdei nada de ninguém. O pouco que tenho foi batalhado, esperado, planejado, adquirido com muito suor e sacrifícios. São sobras do que produzi sofridamente, não consumi nem me tomaram de alguma forma.


Sendo a hemofilia uma doença hereditária, e eu, como bem já afirmei, não a tendo herdado, como foi então que de repente, num friccionar da gengiva com um palito português de boa marca eu me descobri hemofílico?


Bem só pode ser capricho dos deuses ou efeito de alguma poeirazinha rica em Urânio enriquecido que abriu as asas sobre mim.


Ah!.... A liberdade de contaminarem o mundo.


Tornei-me hemofílico num instante bom da vida... Palitava calmamente os meus então vigorosos dentes, numa atitude cheia de pachorra e deselegância. Lembro-me bem que no palitar havia uma sensação de prazer, ao aliviar a pressão que corpos estranhos exerciam metidos que estavam nos espaços entre os dentes e forçando o aumento desses exíguos espaços, liberando incômodas substâncias inflamatórias e desagradáveis odores na fermentação. Também causava prazer a fricção da gengiva nas junções desta com as polpas dentárias, vez que isto despertava uma coceirinha adormecida e uma pitadinha leve de dolorimento.


Em dado instante percebi que sangrava. Sim e continuamente.


Uma vez às voltas com uma hemorragia gengival que não parava, enchia-me a boca de sangue, descia goela abaixo, sufocava; fazia-me cuspir, babar, empapar o lenço, a gola da camisa e a camisa toda, até sobrar para o primeiro pano que eu encontrasse pela frente. Uma vez às voltas com tal drama e adivinhando a proximidade de um quadro de extrema gravidade e até mesmo da morte. Saí correndo à procura de um Pronto Socorro. No Pronto Socorro prontamente me disseram que eu seria levado a um Banco de Sangue que ficava nos fundos do hospital e que tinha pessoal especializado e meios para me acudir.


Embarcado em uma ruidosa maca fui sendo levado às pressas pela calçadinha que contornava o hospital.


Ainda bem que eu não estava só.


Comigo seguiam uma parente distante, um enfermeiro me dizendo para ter calma, um eficiente maqueiro que dirigia, servia de motor nas subidas e de freio nas decidas mais íngremes do trajeto.


De um modo ou de outro, aos trancos e barrancos, acabei chegando no tal Banco de Sangue onde limparam minha boca, comprimiram minha gengiva com gaze embebida em soro com adrenalina, deram uma geral na minha fachada com solução de água oxigenada, providenciaram exames e transfusões de plasma, concentrado de fator VIII e, coroando o séquito de reposições, depois de balançar negativamente uma cara de desaprovação por meu sangue ser uma espécie de raridade chamada B Negativo, um técnico baixotezinho veio com um frasco de sangue total geladinho e, tuff, acoplou na agulha que já estava no meu braço desde o primeiro plasma.


Devidamente recuperado, na manhã seguinte, fui para casa tomar banho e remover uma lambança de sangue ressequido que eu tinha por tudo quanto é canto imaginável da superfície corpórea, principalmente, e para meu azar, nas partes mais peludas onde a remoção muitas vezes tinha que ser feita, ora na marra, ora às custas de perdas de enormes mechas que era quando me via obrigado a apelar para tesouras, giletes ou aparelhos de barbear na eliminação de uns tufos formados por cabelos, soro seco, fibrinogênio e hemácias transformados em verdadeira argamassa.


Haviam me dito que era hemofilia. Era a chamada A.


Depois do banho vesti roupas limpas e frescas, fui até a janela arejar um pouco a cabeça e então me deitei e libertei de todo o pensamento deixando-o analisar por todos os ângulos a nova situação em que, da noite para o dia, me encontrava.


O resultado foi introjetar a nova situação e partir para um planejamento de vida.


Não se casar, não procriar, não me ferir, não dar topada, não beijar ardentemente, não isso, não aquilo... não... não e nãos.


Saquei rapidinho que seria difícil viver entre os humanos normais, fazendo as coisas que fazem, e impossível viver isolado, vez que os mesmos são ricos em fator VIII e eu doravante seria física, psíquica e religiosamente dependente dessa santa gosminha posteriormente liofilizada e transformada num caríssimo pozinho. A dependência já estava estabelecida antes de eu nascer.


Foi aí que, através de um outro hemofílico conhecido meu, eu me aproximei, passo a passo e acabei por ser admitido na festiva e feliz tribo de uns hemofílicos.


Fui recebido com naturalidade: sem euforia, sem iniciação, sem resistências.


Várias características me deram a impressão de que costumes, usos e tradições seculares regiam aquele grupamento que por viver mais ou menos isolado, com seus usos e costumes próprios, pensei como tribo.


O pó anti-hemofílico lá, a bem dizer, corria solto. E, de mamando a caducando todos tinham acesso. Haviam até bolado uma maneira menos incômoda de o ingerir. Ao invés de esperarem as crises hemorrágicas, os derrames articulares, os volumosos hematomas para se medicarem, não; usavam-no cronicamente, aspirando de uma a algumas pitadas diárias e isso os mantinham em excelentes condições de saúde.


Porque havia alguns que não gostavam, ou negligenciavam o uso diário e sistemático do liofilizado; o Conselho da Saúde Preventiva, após acurados estudos, resolveu oferecer as pitadas aromatizadas e, para isso, desenvolveu variados aromas como: cheiro de rapé para os que vinham de zonas de cultivo de tabaco; aroma chiclete japonês para a criançada; aroma viagem profunda para alguns viciados em outros pós; aroma pó de arroz para os almofadinhas; aroma me chama que eu vou; aroma tradição família e propriedade; aroma selva espessa; desmatamento; mato queimado; arroz com feijão; espuma de chopp; e, para os mais resistente, a pitada absolutamente irresistível: aroma fêmea no cio.


De forma que picada de agulha ali, era uma raridade. Hemorragias, pouquíssimas. Abstinências, cuidados excessivos, proibições de mil coisas, tudo era posto de lado ou observado tão sutil e moderadamente que se tornava imperceptível.


A comunidade em outros tempos, viveu agudos apertos mas, na minha época já atingira quase a autossuficiência; plantando suas próprias roças: criando gado para o consumo interno e desenvolvendo a produção liofilizada em sua própria indústria, dos pós anti-hemofílicos com a vantagens da aromatização e exportando outros hemoderivados em troca de doações de sangue de humanos normais.


Ah! Tempos bons aqueles em que ali vivi, longe dessa balbúrdia da normalidade.


O namoro, considerado salutar, necessário, indispensável; era incentivado, mas o casamento não. Misturar hemofilias, gestar, parir, cortar umbigos eram fatores de risco sempre lembrados apesar das pitadas inaladas como costume. De forma que o amor platônico era apregoado como alimento da alma, inspirador, inebriante, edificante. Porém o namoro mais chegado, o muito chegado também podia e, se mesmo com a desaprovação das famílias, dos amigos, dos conselheiros; dois seres resolvessem se casar, o casamento era permitido com a orientação de que os filhos poderiam vir com o problema e até não sobreviverem conforme ocorresse a combinação genética. Vez por outra surgia um namoro de alguém do grupo com alguém de fora, não era visto como problema, era até uma possibilidade de solução para a perpetuação da comunidade. As gestantes eram sempre acolhidas com alegria e com todos os cuidados e os conceptos admitidos com amor e festas.


Era um tremendo de um grupo festeiro, criativo, irmão. Uma tribo, melhor dizendo.


Aprendi a rezar suas rezas;


Cantar seus cantos;


Ouvir e contar histórias;


Comer sem pressa;


Amar e ser amado, amar sem ser amado, ser amado sem amar, mas doando-se assim mesmo. – Usos e costumes lá deles.


Não se rezava sem se ir, com a prece, galgando estados mentais sucessivos em direção ao Incriado, até atingir a ilusão plena de que, abrindo os olhos o veríamos ali na nossa frente.


Não se cantava sem sentir cada vez uma emoção diferente;


As histórias eram sorvidas, minuciosamente sentidas, oniricamente vividas;


Amor era para ser dado, haurido, exercitado.


Aí, num outro momento bom de minha vida, quando eu tinha três belíssimas namoradas:


Uma que me amava e me ensinava a doar;


Uma que eu amava e me ensinava a sofrer;


Uma que me correspondia e era minha paz.


Contei e ouvi uma história;


Cantei baixinho e tristemente uma melodia milenar;


Comi devagarinho uma porção de paçoca;


Olhei o povo nas praças;


Vaguei pelas ruas do lugarejo e revi minhas namoradas;


Ajoelhei-me num edredom espesso, em um templo vazio, reclinei-me e parti em busca de Deus.


Embriagado de tanto enlevo em que me encontrava, percebi uma envolvência nítida e longa que atuava em mim e, então, me senti curado.


Certo de que me tornara normal e, assim sem o elo fundamental com a tribo, ainda me submeti a testes para certificar-me totalmente disso. Inútil, os testes comprovaram minha normalidade. Para despedir participei de uma última reunião onde aspiravam o liofilizado pozinho e recebi como derradeira homenagem um lançamento: a pitadinha com aroma Coca-Cola.


Joguei o casaco no ombro, experimentei as botas para ver se estavam confortáveis nos pés, acenei uma despedida e ganhei a estrada para a longa caminhada de volta ao mundo do cotidiano.

1990 - Rilmar

Fonte:
[Visto no Brasil Acadêmico]

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