Como ensinar a um país inteiro como votar quando ninguém nunca votou antes? É um desafio enorme que as democracias novatas enfrentam pelo mu...
Como ensinar a um país inteiro como votar quando ninguém nunca votou antes? É um desafio enorme que as democracias novatas enfrentam pelo mundo - e um dos maiores problemas vem a ser a falta de um linguajar comum. Afinal, se não conseguimos descrever algo, provavelmente não o compreendemos. Numa palestra surpreendente, a especialista em eleições, Philippa Neave, compartilha suas experiências das linhas de frente da democracia, e sua solução para esta lacuna de linguagem singular.
O grande filósofo Aristóteles disse: se algo não existe, não há palavra para nomeá-lo, e se não há uma palavra para algo, este algo não existe. Quando falamos sobre eleições, nós, em democracias estabelecidas, sabemos do que estamos falando. Temos as palavras, o vocabulário.
Sabemos o que é um local de eleição e o que é uma cédula eleitoral. Mas e nos países onde a democracia não existe, onde não há palavras para descrever os conceitos que fundamentam uma sociedade democrática?
Eu trabalho num campo de assistência eleitoral, ou seja, auxiliamos democracias emergentes a organizar o que é geralmente suas primeiras eleições. Quando me perguntam o que eu faço, muitas vezes recebo a seguinte reação: "Ah, então você é daquelas pessoas que vão pelo mundo impondo a democracia ocidental aos países que não conseguem lidar com ela". As Nações Unidas não impõem nada à ninguém. Não mesmo, e também, o que fazemos é ancorado firmemente na Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, Artigo 21, que diz que todos devem ter o direito de escolher quem os governa.
Esta é a base do trabalho. Eu me especializo em divulgação para o público. O que é isso? Outro jargão. Quer dizer criar campanhas de informação para que candidatos e eleitores, que nunca tiveram a oportunidade de participar ou votar, entendam onde, quando e como se inscrever; onde, quando e como votar; e por que é importante participar. Eu elaboro campanhas específicas para alcançar mulheres para garantir que elas tomem parte no processo. Para jovens também. Todas as pessoas. Pessoas com necessidades especiais; tentamos alcançar a todos.
Não é sempre fácil, porque muitas vezes neste trabalho, eu percebi agora, depois de anos nele, nos faltam palavras, então, o que fazer?
Afeganistão. Um país com índice de analfabetismo alto, e o problema ali é que, em 2005, organizamos duas eleições no mesmo dia. A logística era incrivelmente complicada, e parecia que ser mais eficiente fazer assim. Foi, mas por outro lado, explicar duas eleições em vez de uma foi ainda mais complicado. Usamos muitas imagens, e quando chegou a eleição em si, tivemos problemas porque muitos queriam participar, tivemos 300 candidatos para 52 cargos na Câmara dos Deputados, que é a eleição parlamentar. E para o Conselho Municipal, tivemos ainda mais candidatos: 330 para 54 vagas. Começando pela concepção da cédula, assim era a cédula. Do tamanho de um jornal. Esta era a cédula da Câmara dos Deputados. (Risos) Sim, e esta era a cédula do Conselho Municipal. Maior ainda. Vejam que usamos muitos símbolos.
E tivemos outros problemas no Sul do Sudão. O Sul do Sudão tinha uma outra situação. Havia muitas pessoas que, claro, nunca tinham votado, e tínhamos um índice extremo de alfabetismo, infraestrutura muito pobre. Por exemplo: é um país do tamanho do Texas ou menor. Havia sete quilômetros de estradas pavimentadas, sete no país todo, incluindo a pista de asfalto de pouso dos aviões, no Aeroporto Juba. Transportar material eleitoral e etc. é extremamente difícil. As pessoas não faziam ideia de como era uma urna. Foi muito complicado, então usar comunicação verbal era obviamente a melhor maneira, mas havia 132 línguas. Foi extremamente desafiante.
Eu cheguei na Tunísia em 2011. Era a Primavera Árabe. Muita esperança tinha sido criada pelo enorme movimento que acontecia na região. Na Líbia, no Egito, no Yêmen.
Era um momento histórico enorme. Eu me reunia com a comissão eleitoral, e falávamos sobre vários aspectos da eleição, e eu os ouvia usar palavras que eu nunca tinha escutado, eu tinha trabalhado com iraquianos, jordanianos, egípcios, mas de repente utilizavam essas palavras. Eu achei aquilo estranho. O que originou essa discussão foi a palavra "observador". Estávamos discutindo os observadores da eleição, e o encarregado da eleição falava sobre "mulahiz" em árabe. Significa "notar" de uma forma pacífica, como em: "Eu notei que ele vestia uma camisa azul clara". Eu verifiquei se a camisa era azul? Este era o papel do observador da eleição. Muito ativo, chefiado por um mundo de acordos, e tem uma função de controle. Então me dei conta do fato que no Egito estavam usando o termo "mutabi" que quer dizer "seguir". Estávamos então tendo seguidores da eleição. Isto não está certo, também, porque há um termo já aceito e em uso, a palavra "muraqib", que quer dizer "um controlador". Tem a noção de controle. Pensei que três palavras para um conceito não era nada bom. Com os nossos colegas, pensamos que era o nosso papel ajudar a garantir que as palavras eram compreendidas e criar um trabalho de referência que poderia ser usado em toda a região Árabe.
É foi isso que fizemos. Juntos com estes colegas, lançamos o "Léxico Árabe de Terminologias Eleitorais", e trabalhamos em oito países. Definimos 481 termos que formaram a base de tudo que é preciso saber para organizar uma eleição democrática. Definimos estes termos, trabalhamos com colegas árabes e chegamos a um acordo sobre quais seriam as palavras adequadas para usar em árabe. A língua árabe é muito rica, e esta é parte do problema. Há 22 países que falam árabe, e usam o padrão árabe moderno, que é o árabe usado em toda a região pelos jornais e emissoras, mas lógico que de um país para outro a língua e seu uso diário variam: dialetos, expressões, etc. Esta foi outra camada de complicação. De um lado tínhamos o problema de que a língua não era totalmente madura. Neologismos e novas expressões surgiam.
Definimos todos estes termos, e tínhamos oito correspondentes na região. Apresentamos a proposta para eles, eles nos responderam: "Sim, entendemos a definição. Concordamos com ela, mas é assim que dizemos no nosso país". Nós não harmonizaríamos ou forçaríamos a harmonização. Tentávamos simplificar a compreensão entre as pessoas. Em amarelo, vemos várias expressões em uso em diversos países.
Fico feliz em dizer que levou três anos para produzir este léxico porque também terminamos a proposta e o levamos para o campo, nos reunimos com as comissões eleições em todos estes países debatemos, definimos e refinamos a proposta, e finalmente publicamos em novembro de 2014 no Cairo. Já fomos bem longe. Publicamos 10 mil cópias. Até agora, há cerca de 3 mil downloads da internet em formato PDF. Ouví recentemente de um colega que o levaram à Somália. Vão produzir uma versão dele na Somália, pois não há nada por lá. É muito bom saber. A Organização Árabe para Gerenciamento de Corpos Eleitorais formada recentemente está tentando personalizar como as eleições são gerenciadas na região, e estão usando o léxico também. A Liga Árabe agora tem consolidada uma unidade de observação pan-árabe, e estão usando-o. Isto é muito bom.
Porém, este trabalho de referência é bastante denso, é complexo e muitos termos são bastante técnicos, e o público provavelmente não precisa saber nem um terço dele. Mas o povo do Oriente Médio tem sido privado de todas formas do que chamamos educação cívica. É parte do currículo das nossas escolas. Não existe naquela parte do mundo, e eu acho que é direito de todos saber como essas coisas funcionam. Seria bom pensar em criar um trabalho de referência para as pessoas comuns, levando em conta que agora temos uma base com a qual trabalhar, mas também temos tecnologia, e podemos nos alcançar as pessoas usando aplicativos de celular, vídeo e animação. Há tantos tipos de ferramentas para serem usadas hoje para comunicar essas ideias às pessoas pela primeira vez em suas línguas.
Escutamos muitas notícias ruins do Oriente Médio: sobre o caos da guerra, do terrorismo; Ouvimos sobre sectarismo e as notícias negativas horríveis que vêm a nós o tempo todo. Mas o que não ouvimos é sobre o que as pessoas comuns pensam. Pelo que aspiram? Vamos dar-lhes os meios, as palavras. A maioria silenciosa está silenciosa porque não tem as palavras. A maioria silenciosa precisa saber. É hora de dar ferramentas de conhecimento às pessoas com as quais possam se informar.
A maioria silenciosa não precisa ser silenciosa. Vamos ajudá-la a ter voz.
Muito obrigada.
(Aplausos)
Fonte: Philippa Neave:
The unexpected challenges of a country's first election
[Visto no Brasil Acadêmico]
O grande filósofo Aristóteles disse: se algo não existe, não há palavra para nomeá-lo, e se não há uma palavra para algo, este algo não existe. Quando falamos sobre eleições, nós, em democracias estabelecidas, sabemos do que estamos falando. Temos as palavras, o vocabulário.
Sabemos o que é um local de eleição e o que é uma cédula eleitoral. Mas e nos países onde a democracia não existe, onde não há palavras para descrever os conceitos que fundamentam uma sociedade democrática?
Eu trabalho num campo de assistência eleitoral, ou seja, auxiliamos democracias emergentes a organizar o que é geralmente suas primeiras eleições. Quando me perguntam o que eu faço, muitas vezes recebo a seguinte reação: "Ah, então você é daquelas pessoas que vão pelo mundo impondo a democracia ocidental aos países que não conseguem lidar com ela". As Nações Unidas não impõem nada à ninguém. Não mesmo, e também, o que fazemos é ancorado firmemente na Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, Artigo 21, que diz que todos devem ter o direito de escolher quem os governa.
Esta é a base do trabalho. Eu me especializo em divulgação para o público. O que é isso? Outro jargão. Quer dizer criar campanhas de informação para que candidatos e eleitores, que nunca tiveram a oportunidade de participar ou votar, entendam onde, quando e como se inscrever; onde, quando e como votar; e por que é importante participar. Eu elaboro campanhas específicas para alcançar mulheres para garantir que elas tomem parte no processo. Para jovens também. Todas as pessoas. Pessoas com necessidades especiais; tentamos alcançar a todos.
Não é sempre fácil, porque muitas vezes neste trabalho, eu percebi agora, depois de anos nele, nos faltam palavras, então, o que fazer?
Afeganistão. Um país com índice de analfabetismo alto, e o problema ali é que, em 2005, organizamos duas eleições no mesmo dia. A logística era incrivelmente complicada, e parecia que ser mais eficiente fazer assim. Foi, mas por outro lado, explicar duas eleições em vez de uma foi ainda mais complicado. Usamos muitas imagens, e quando chegou a eleição em si, tivemos problemas porque muitos queriam participar, tivemos 300 candidatos para 52 cargos na Câmara dos Deputados, que é a eleição parlamentar. E para o Conselho Municipal, tivemos ainda mais candidatos: 330 para 54 vagas. Começando pela concepção da cédula, assim era a cédula. Do tamanho de um jornal. Esta era a cédula da Câmara dos Deputados. (Risos) Sim, e esta era a cédula do Conselho Municipal. Maior ainda. Vejam que usamos muitos símbolos.
E tivemos outros problemas no Sul do Sudão. O Sul do Sudão tinha uma outra situação. Havia muitas pessoas que, claro, nunca tinham votado, e tínhamos um índice extremo de alfabetismo, infraestrutura muito pobre. Por exemplo: é um país do tamanho do Texas ou menor. Havia sete quilômetros de estradas pavimentadas, sete no país todo, incluindo a pista de asfalto de pouso dos aviões, no Aeroporto Juba. Transportar material eleitoral e etc. é extremamente difícil. As pessoas não faziam ideia de como era uma urna. Foi muito complicado, então usar comunicação verbal era obviamente a melhor maneira, mas havia 132 línguas. Foi extremamente desafiante.
Eu cheguei na Tunísia em 2011. Era a Primavera Árabe. Muita esperança tinha sido criada pelo enorme movimento que acontecia na região. Na Líbia, no Egito, no Yêmen.
Era um momento histórico enorme. Eu me reunia com a comissão eleitoral, e falávamos sobre vários aspectos da eleição, e eu os ouvia usar palavras que eu nunca tinha escutado, eu tinha trabalhado com iraquianos, jordanianos, egípcios, mas de repente utilizavam essas palavras. Eu achei aquilo estranho. O que originou essa discussão foi a palavra "observador". Estávamos discutindo os observadores da eleição, e o encarregado da eleição falava sobre "mulahiz" em árabe. Significa "notar" de uma forma pacífica, como em: "Eu notei que ele vestia uma camisa azul clara". Eu verifiquei se a camisa era azul? Este era o papel do observador da eleição. Muito ativo, chefiado por um mundo de acordos, e tem uma função de controle. Então me dei conta do fato que no Egito estavam usando o termo "mutabi" que quer dizer "seguir". Estávamos então tendo seguidores da eleição. Isto não está certo, também, porque há um termo já aceito e em uso, a palavra "muraqib", que quer dizer "um controlador". Tem a noção de controle. Pensei que três palavras para um conceito não era nada bom. Com os nossos colegas, pensamos que era o nosso papel ajudar a garantir que as palavras eram compreendidas e criar um trabalho de referência que poderia ser usado em toda a região Árabe.
É foi isso que fizemos. Juntos com estes colegas, lançamos o "Léxico Árabe de Terminologias Eleitorais", e trabalhamos em oito países. Definimos 481 termos que formaram a base de tudo que é preciso saber para organizar uma eleição democrática. Definimos estes termos, trabalhamos com colegas árabes e chegamos a um acordo sobre quais seriam as palavras adequadas para usar em árabe. A língua árabe é muito rica, e esta é parte do problema. Há 22 países que falam árabe, e usam o padrão árabe moderno, que é o árabe usado em toda a região pelos jornais e emissoras, mas lógico que de um país para outro a língua e seu uso diário variam: dialetos, expressões, etc. Esta foi outra camada de complicação. De um lado tínhamos o problema de que a língua não era totalmente madura. Neologismos e novas expressões surgiam.
Definimos todos estes termos, e tínhamos oito correspondentes na região. Apresentamos a proposta para eles, eles nos responderam: "Sim, entendemos a definição. Concordamos com ela, mas é assim que dizemos no nosso país". Nós não harmonizaríamos ou forçaríamos a harmonização. Tentávamos simplificar a compreensão entre as pessoas. Em amarelo, vemos várias expressões em uso em diversos países.
Fico feliz em dizer que levou três anos para produzir este léxico porque também terminamos a proposta e o levamos para o campo, nos reunimos com as comissões eleições em todos estes países debatemos, definimos e refinamos a proposta, e finalmente publicamos em novembro de 2014 no Cairo. Já fomos bem longe. Publicamos 10 mil cópias. Até agora, há cerca de 3 mil downloads da internet em formato PDF. Ouví recentemente de um colega que o levaram à Somália. Vão produzir uma versão dele na Somália, pois não há nada por lá. É muito bom saber. A Organização Árabe para Gerenciamento de Corpos Eleitorais formada recentemente está tentando personalizar como as eleições são gerenciadas na região, e estão usando o léxico também. A Liga Árabe agora tem consolidada uma unidade de observação pan-árabe, e estão usando-o. Isto é muito bom.
Porém, este trabalho de referência é bastante denso, é complexo e muitos termos são bastante técnicos, e o público provavelmente não precisa saber nem um terço dele. Mas o povo do Oriente Médio tem sido privado de todas formas do que chamamos educação cívica. É parte do currículo das nossas escolas. Não existe naquela parte do mundo, e eu acho que é direito de todos saber como essas coisas funcionam. Seria bom pensar em criar um trabalho de referência para as pessoas comuns, levando em conta que agora temos uma base com a qual trabalhar, mas também temos tecnologia, e podemos nos alcançar as pessoas usando aplicativos de celular, vídeo e animação. Há tantos tipos de ferramentas para serem usadas hoje para comunicar essas ideias às pessoas pela primeira vez em suas línguas.
Escutamos muitas notícias ruins do Oriente Médio: sobre o caos da guerra, do terrorismo; Ouvimos sobre sectarismo e as notícias negativas horríveis que vêm a nós o tempo todo. Mas o que não ouvimos é sobre o que as pessoas comuns pensam. Pelo que aspiram? Vamos dar-lhes os meios, as palavras. A maioria silenciosa está silenciosa porque não tem as palavras. A maioria silenciosa precisa saber. É hora de dar ferramentas de conhecimento às pessoas com as quais possam se informar.
A maioria silenciosa não precisa ser silenciosa. Vamos ajudá-la a ter voz.
Muito obrigada.
(Aplausos)
Fonte: Philippa Neave:
The unexpected challenges of a country's first election
[Visto no Brasil Acadêmico]
Comentários