O enterro da dona de casa Fabiane Maria de Jesus, linchada no sábado (3/5) num bairro de Guarujá, litoral paulista, mantém no noticiário o f...
O enterro da dona de casa Fabiane Maria de Jesus, linchada no sábado (3/5) num bairro de Guarujá, litoral paulista, mantém no noticiário o festival de horrores composto pelo crime bárbaro em si e por interpretações apressadas e tendenciosas dos jornais.
Compreende-se o espanto produzido neste lado da sociedade, que se acredita detentor de razão e sensibilidade, pelo conhecimento dos detalhes que seguem as narrativas sobre o crime. Mas é preciso registrar que a imprensa passa ao largo de questões centrais na análise do acontecimento, e não resiste à tentação de politizar a tragédia. O papel e a tela aceitam quase tudo, então, dá-se um jeitinho de incluir o embate eleitoral nas entrelinhas do material jornalístico sobre o crime hediondo.
Na Folha de S.Paulo, o editorial de quarta-feira (7/5) afirma que “não se trata apenas de obscurantismo atávico, já em si lamentável, mas de sintoma do imenso atraso que caracteriza o Estado brasileiro”. No Globo, a arenga sobre uma suposta “percepção popular” da falência de instituições dá um jeito de vincular o linchamento ao “péssimo exemplo dado por partidos políticos, do PT ao PSDB, pelo envolvimento de correligionários em casos de corrupção”. Ora, diria o comediante, só o PT e o PSDB? Cadê os outros?
Trata-se, na verdade, de um preâmbulo para o discurso que tem marcado a imprensa brasileira na última década: “O mau exemplo do PT chega a ser mais daninho, por ter conquistado o poder com a aura de extrema seriedade e honestidade. Ao trair as promessas de defesa intransigente da ética, dá grande contribuição, infelizmente, ao descrédito da população diante dos poderes constituídos”, conclui o editorial.
Pronto: dá-se um jeito de jogar no colo do Partido dos Trabalhadores – e, por lógica extensão, da presidente da República que vai tentar a reeleição –, a culpa pelo linchamento de dona Fabiane Maria de Jesus.
Seria o caso de se perguntar ao editorialista da Folha qual seria a relação entre o crime do Guarujá e o suposto “atraso” do Estado brasileiro, mas não convém analisar o texto do Globo, porque já não se trata de jornalismo, mas de panfletagem pura e simples.
Mergulho no obscurantismo
Seria desrespeitoso considerar que os profissionais responsáveis pelos textos citados padecem de ignorância sobre fenômenos como o do linchamento. A mesma imprensa que comete essa atrocidade contra a razão, ao inserir suas preferências políticas no cenário da barbárie, cita pesquisadores que relatam a banalidade de fatos como esse no Brasil moderno: em entrevista ao Estado de S.Paulo, o sociólogo José de Souza Martins diz ter catalogado 2 mil casos de linchamento nos últimos 30 anos.
Os jornais não encontraram nenhuma condenação da Justiça para os acusados desses crimes, porque ele não é tipificado no Código Penal e, no meio do distúrbio, torna-se impossível definir quem deu a paulada ou quem atirou a pedra que causou a morte da vítima.
Mais plausível é observar como a imprensa atua contra o sistema democrático ao conectar qualquer evento negativo, seja o linchamento, seja o torcedor morto por um criminoso que atirou um vaso sanitário do alto do estádio, a uma suposta “falência do Estado” – e, imediatamente, apontando para o partido que ocupa o governo federal.
Ao repetir o bordão segundo o qual vivemos em regime de anarquia, afirmando que há uma “percepção popular da falência de instituições”, os jornais estão estimulando o vandalismo e as soluções fora da lei, justificando as mentes insanas que se julgam no direito de impor à sociedade o fruto de seus delírios de “justiçamento”.
Recentemente, um assassino entrevistado num desses programas policiais da televisão, disse que havia atirado no desafeto porque ele era “folgado”. Ora, isso nada tem a ver com o Estado de hoje, mas com o Estado histórico. Tem a ver com a permanência de bolsões de miséria, onde o lumpesinato vive sua rotina desumana. Se houve alguma mudança nesse cenário nas últimas décadas, ela se deve justamente às políticas sociais que vêm reduzindo a miséria.
Não se salta da aldeia medieval para a aldeia global por decreto, mas é fácil entender que, numa sociedade em transição, a modernidade tem que conviver com a barbárie.
Ao se desviar dessas questões e politizar o que é marginal à política, a imprensa mergulha no obscurantismo e promove o linchamento do jornalismo.
O linchamento de uma mulher de 33 anos na cidade de Guarujá, no litoral paulista, choca e demonstra como estava certo o filósofo Michel Foucault ao afirmar, já em 1961, que parte da vida social transcorre no campo da loucura.
A imprensa busca explicações, mas não há compêndios capazes de dar conta de uma violência como essa. A campeã dos lugares-comuns é a afirmação de que o crime coletivo só se consumou porque a comunidade onde ocorreu é um desses lugares onde supostamente falta a presença do Estado. A tese considera que, para funcionar bem, a sociedade precisa ser policiada permanentemente.
A dona de casa Fabiane Maria de Jesus, mãe de duas filhas, sofria de transtorno bipolar desde o primeiro parto, tomava medicamentos e vivia sob controle da família. No sábado (3/5), após tingir os cabelos de louro para ir a uma festa, saiu de casa sem ser notada. Na rua, foi apontada como a loura que seria suspeita de raptar crianças para rituais de magia negra. Daí para o linchamento e a morte, bastou que fosse vista por um bando de delinquentes e desocupados.
O mito urbano sobre a mulher que estaria usando crianças em rituais satânicos, que se espalhava pelas redes sociais, vinha sendo alimentado por uma página do Facebook intitulada “Guarujá alerta”. Uma visita ao “Guarujá alerta” (ver aqui) revela que se trata de uma página de avisos de interesse geral, denúncias e boatos, com pretensão a jornalismo.
No mesmo dia em que Fabiane de Jesus foi espancada e morta por moradores do bairro de Morrinhos, outra mulher que vinha sendo confundida com o retrato falado da suposta raptora de crianças havia publicado um comentário na rede social pedindo aos responsáveis pela página que retirassem a imagem, porque ela vinha sendo ameaçada por desconhecidos.
Há claros sinais de irresponsabilidade no conteúdo publicado pelos supostos jornalistas, que claramente atuam como cabos eleitorais de oposição à atual prefeita do Guarujá, Maria Antonieta de Brito, do PMDB. Os textos evidenciam que seus autores são pouco versados no idioma e desconhecem as regras básicas do jornalismo.
Noticiário estimula violência
Há muita superficialidade nas análises publicadas pelos principais jornais do País sobre o crime coletivo insuflado pelo boato. A melhor contribuição para o debate sobre o acontecimento é certamente a ponderação da socióloga Ariadne Lima Natal, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, citada pelo Globo.
A pesquisadora, que estudou casos de linchamento ocorridos entre 1980 e 2009 na região metropolitana de São Paulo, considera que não se trata de uma ação bárbara, irracional, mas de um crime cometido conscientemente pelos agressores. Ela passa ao largo da maioria das opiniões reproduzidas pela imprensa, quase todas se referindo à “falência do sistema de segurança pública e à falta de credibilidade das instituições democráticas por parte da população”. Para Ariadne Lima Natal, há causas mais concretas do que a suposta omissão do Estado democrático. Afinal, nem é necessária muita lucubração para se concluir que linchamentos resultam da má educação social e que não é possível nem recomendável que a sociedade seja vigiada pelo Estado.
O que a socióloga constatou, em suas pesquisas de três décadas, foi uma coincidência marcante: os linchamentos se repetem logo após um caso de grande repercussão na mídia. Portanto, comprova-se novamente, em relação aos crimes cometidos por uma coletividade, o que já foi demonstrado quanto aos suicídios – ou seja, que o noticiário intenso sobre um caso acaba deflagrando uma espécie de epidemia de eventos semelhantes.
“Cheguei à conclusão de que picos observados ao longo desses 30 anos na Grande São Paulo foram desencadeados por um caso de grande repercussão noticiado pela imprensa” – disse explicitamente a socióloga.
Portanto, cabe também uma reflexão interna nas redações. Ao assumir o discurso radical de alguns de seus colaboradores, os jornais não estariam estimulando o linchamento moral de certos personagens da vida pública e o descrédito nas instituições republicanas?
A opção preferencial por versões catastrofistas da realidade não estaria contribuindo para o abandono do bom senso e da racionalidade?
Texto de Luciano Martins Costa retirados do Observatório da Imprensa.
[Via BBA]
Compreende-se o espanto produzido neste lado da sociedade, que se acredita detentor de razão e sensibilidade, pelo conhecimento dos detalhes que seguem as narrativas sobre o crime. Mas é preciso registrar que a imprensa passa ao largo de questões centrais na análise do acontecimento, e não resiste à tentação de politizar a tragédia. O papel e a tela aceitam quase tudo, então, dá-se um jeitinho de incluir o embate eleitoral nas entrelinhas do material jornalístico sobre o crime hediondo.
Na Folha de S.Paulo, o editorial de quarta-feira (7/5) afirma que “não se trata apenas de obscurantismo atávico, já em si lamentável, mas de sintoma do imenso atraso que caracteriza o Estado brasileiro”. No Globo, a arenga sobre uma suposta “percepção popular” da falência de instituições dá um jeito de vincular o linchamento ao “péssimo exemplo dado por partidos políticos, do PT ao PSDB, pelo envolvimento de correligionários em casos de corrupção”. Ora, diria o comediante, só o PT e o PSDB? Cadê os outros?
Trata-se, na verdade, de um preâmbulo para o discurso que tem marcado a imprensa brasileira na última década: “O mau exemplo do PT chega a ser mais daninho, por ter conquistado o poder com a aura de extrema seriedade e honestidade. Ao trair as promessas de defesa intransigente da ética, dá grande contribuição, infelizmente, ao descrédito da população diante dos poderes constituídos”, conclui o editorial.
Pronto: dá-se um jeito de jogar no colo do Partido dos Trabalhadores – e, por lógica extensão, da presidente da República que vai tentar a reeleição –, a culpa pelo linchamento de dona Fabiane Maria de Jesus.
Seria o caso de se perguntar ao editorialista da Folha qual seria a relação entre o crime do Guarujá e o suposto “atraso” do Estado brasileiro, mas não convém analisar o texto do Globo, porque já não se trata de jornalismo, mas de panfletagem pura e simples.
Mergulho no obscurantismo
Seria desrespeitoso considerar que os profissionais responsáveis pelos textos citados padecem de ignorância sobre fenômenos como o do linchamento. A mesma imprensa que comete essa atrocidade contra a razão, ao inserir suas preferências políticas no cenário da barbárie, cita pesquisadores que relatam a banalidade de fatos como esse no Brasil moderno: em entrevista ao Estado de S.Paulo, o sociólogo José de Souza Martins diz ter catalogado 2 mil casos de linchamento nos últimos 30 anos.
Os jornais não encontraram nenhuma condenação da Justiça para os acusados desses crimes, porque ele não é tipificado no Código Penal e, no meio do distúrbio, torna-se impossível definir quem deu a paulada ou quem atirou a pedra que causou a morte da vítima.
Mais plausível é observar como a imprensa atua contra o sistema democrático ao conectar qualquer evento negativo, seja o linchamento, seja o torcedor morto por um criminoso que atirou um vaso sanitário do alto do estádio, a uma suposta “falência do Estado” – e, imediatamente, apontando para o partido que ocupa o governo federal.
Ao repetir o bordão segundo o qual vivemos em regime de anarquia, afirmando que há uma “percepção popular da falência de instituições”, os jornais estão estimulando o vandalismo e as soluções fora da lei, justificando as mentes insanas que se julgam no direito de impor à sociedade o fruto de seus delírios de “justiçamento”.
Recentemente, um assassino entrevistado num desses programas policiais da televisão, disse que havia atirado no desafeto porque ele era “folgado”. Ora, isso nada tem a ver com o Estado de hoje, mas com o Estado histórico. Tem a ver com a permanência de bolsões de miséria, onde o lumpesinato vive sua rotina desumana. Se houve alguma mudança nesse cenário nas últimas décadas, ela se deve justamente às políticas sociais que vêm reduzindo a miséria.
Não se salta da aldeia medieval para a aldeia global por decreto, mas é fácil entender que, numa sociedade em transição, a modernidade tem que conviver com a barbárie.
Ao se desviar dessas questões e politizar o que é marginal à política, a imprensa mergulha no obscurantismo e promove o linchamento do jornalismo.
Reflexões sobre o boato mortal
O linchamento de uma mulher de 33 anos na cidade de Guarujá, no litoral paulista, choca e demonstra como estava certo o filósofo Michel Foucault ao afirmar, já em 1961, que parte da vida social transcorre no campo da loucura.
A imprensa busca explicações, mas não há compêndios capazes de dar conta de uma violência como essa. A campeã dos lugares-comuns é a afirmação de que o crime coletivo só se consumou porque a comunidade onde ocorreu é um desses lugares onde supostamente falta a presença do Estado. A tese considera que, para funcionar bem, a sociedade precisa ser policiada permanentemente.
A dona de casa Fabiane Maria de Jesus, mãe de duas filhas, sofria de transtorno bipolar desde o primeiro parto, tomava medicamentos e vivia sob controle da família. No sábado (3/5), após tingir os cabelos de louro para ir a uma festa, saiu de casa sem ser notada. Na rua, foi apontada como a loura que seria suspeita de raptar crianças para rituais de magia negra. Daí para o linchamento e a morte, bastou que fosse vista por um bando de delinquentes e desocupados.
O mito urbano sobre a mulher que estaria usando crianças em rituais satânicos, que se espalhava pelas redes sociais, vinha sendo alimentado por uma página do Facebook intitulada “Guarujá alerta”. Uma visita ao “Guarujá alerta” (ver aqui) revela que se trata de uma página de avisos de interesse geral, denúncias e boatos, com pretensão a jornalismo.
No mesmo dia em que Fabiane de Jesus foi espancada e morta por moradores do bairro de Morrinhos, outra mulher que vinha sendo confundida com o retrato falado da suposta raptora de crianças havia publicado um comentário na rede social pedindo aos responsáveis pela página que retirassem a imagem, porque ela vinha sendo ameaçada por desconhecidos.
Há claros sinais de irresponsabilidade no conteúdo publicado pelos supostos jornalistas, que claramente atuam como cabos eleitorais de oposição à atual prefeita do Guarujá, Maria Antonieta de Brito, do PMDB. Os textos evidenciam que seus autores são pouco versados no idioma e desconhecem as regras básicas do jornalismo.
Noticiário estimula violência
Há muita superficialidade nas análises publicadas pelos principais jornais do País sobre o crime coletivo insuflado pelo boato. A melhor contribuição para o debate sobre o acontecimento é certamente a ponderação da socióloga Ariadne Lima Natal, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, citada pelo Globo.
A pesquisadora, que estudou casos de linchamento ocorridos entre 1980 e 2009 na região metropolitana de São Paulo, considera que não se trata de uma ação bárbara, irracional, mas de um crime cometido conscientemente pelos agressores. Ela passa ao largo da maioria das opiniões reproduzidas pela imprensa, quase todas se referindo à “falência do sistema de segurança pública e à falta de credibilidade das instituições democráticas por parte da população”. Para Ariadne Lima Natal, há causas mais concretas do que a suposta omissão do Estado democrático. Afinal, nem é necessária muita lucubração para se concluir que linchamentos resultam da má educação social e que não é possível nem recomendável que a sociedade seja vigiada pelo Estado.
O que a socióloga constatou, em suas pesquisas de três décadas, foi uma coincidência marcante: os linchamentos se repetem logo após um caso de grande repercussão na mídia. Portanto, comprova-se novamente, em relação aos crimes cometidos por uma coletividade, o que já foi demonstrado quanto aos suicídios – ou seja, que o noticiário intenso sobre um caso acaba deflagrando uma espécie de epidemia de eventos semelhantes.
“Cheguei à conclusão de que picos observados ao longo desses 30 anos na Grande São Paulo foram desencadeados por um caso de grande repercussão noticiado pela imprensa” – disse explicitamente a socióloga.
Portanto, cabe também uma reflexão interna nas redações. Ao assumir o discurso radical de alguns de seus colaboradores, os jornais não estariam estimulando o linchamento moral de certos personagens da vida pública e o descrédito nas instituições republicanas?
A opção preferencial por versões catastrofistas da realidade não estaria contribuindo para o abandono do bom senso e da racionalidade?
Texto de Luciano Martins Costa retirados do Observatório da Imprensa.
[Via BBA]
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