Um Brasil sem catracas

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O passe livre, ou tarifa zero, é possível. Trata-se de transferir o custo dos serviços públicos de transporte para a conta da sociedade como...

O passe livre, ou tarifa zero, é possível. Trata-se de transferir o custo dos serviços públicos de transporte para a conta da sociedade como um todo, não do usuário; desmercantilizar esse serviço público, transformá-lo em bem público à disposição de todos.
Em protesto contra o aumento da tarifa em SP, manifestantes ocupam a Marginal Pinheiros

O passe livre proposto pelo Movimento Passe Livre (MPL) é possível, mas implica grandes mudanças no modelo de financiamento e gestão dos transportes coletivos. Já houve um momento, no início dos anos 1990, no governo da prefeita Luiza Erundina, em que o passe livre foi colocado como uma alternativa na cidade de São Paulo, projeto denominado na época de Tarifa Zero. A proposta era que os recursos para tanto viriam da introdução de um IPTU progressivo. Os imóveis com até 50 metros quadrados continuariam isentos de impostos e os imóveis maiores e em zonas mais nobres da cidade pagariam mais. O projeto esbarrou na objeção da maioria dos vereadores da Câmara Municipal, ecoando a resistência de nossas elites a políticas redistributivas. Outras iniciativas deram certo. Agudos, no interior do estado de São Paulo, pratica a catraca livre há dez anos. Outras duas cidades do Paraná – Ivaiporã e Pitanga – também adotaram a mesma política. Em todos esses casos o financiamento do transporte público é feito com os recursos dos impostos de todos os contribuintes.

Outra iniciativa do início dos anos 1990 foi a criação da Taxa Transporte, à semelhança de um tributo introduzido na região metropolitana de Paris, que incide sobre as grandes empresas que demandam do serviço público a mobilização de recursos adicionais para atender à chegada e saída de seus funcionários em grande número e em um horário determinado. Essa taxa foi aprovada como lei em Campinas, em um acordo com os empresários de ônibus de que ela seria destinada unicamente a melhorar a infraestrutura dos transportes públicos, como a construção de corredores e sinalização. Mas a Fiesp se mobilizou e entrou com uma ação alegando a inconstitucionalidade da taxa, conseguiu uma liminar suspensiva, e o assunto morreu. Seu argumento é de que os empresários não aceitam mais taxas para pagar.

Com a predominância das políticas neoliberais, a partir dos anos 1990, as empresas públicas de transporte, como a CMTC em São Paulo, foram desativadas e abriram espaço para a exploração comercial desses serviços por empresas privadas. Os governos municipais perderam a capacidade de intervir nas empresas que não estivessem cumprindo seus contratos de concessão e abriram mão também de controlar os custos operacionais. Quanto à capacidade de exercerem a fiscalização desse serviço, o próprio peso e importância dos empresários do setor inibem uma atuação pública republicana. A concentração do capital também impactou esse setor e hoje, dos 14 mil ônibus em circulação na cidade, praticamente a metade é de apenas dois empresários.

Aqui no Brasil quem paga a conta dos transportes coletivos é o usuário, por meio da tarifa. O governo de São Paulo subsidia 20% desse custo, 70% quem paga é quem toma o ônibus, os 10% restantes pagam os empresários por meio da concessão do vale-transporte para seus funcionários.

Essa equação de “quem usa é só quem paga” é perversa porque exclui um terço dos cidadãos das regiões metropolitanas, que não têm recursos para arcar com o preço da tarifa. Estes andam a pé, alguns poucos de bicicleta. Esse modelo consagra a ideia de que o transporte público é uma mercadoria, não um direito. Só tem acesso a ele quem paga. E as empresas que o operam têm de ser lucrativas.

Mesmo no caso das gratuidades (idosos, pessoas com necessidades especiais, meia tarifa para estudantes), que são uma conquista social a ser mantida, seus custos, em vez de serem pagos por todos os contribuintes, são repassados para a tarifa. Quem paga as gratuidades é o mais pobre, é o usuário do transporte coletivo, não todos os cidadãos.

Se tomarmos como referência tanto os Estados Unidos quanto os países europeus, a equação é outra: mais de 70% do custo dos transportes coletivos é pago pelo contribuinte, e a tarifa cobre, no máximo, 30%.

Existem outros modelos de financiamento do transporte público, e eles precisam ser considerados na formulação de uma nova política para a melhoria da mobilidade. Há uma compreensão crescente de que precisamos evitar que nossas cidades parem, poluídas e congestionadas por automóveis. A equação é melhorar o transporte público e inibir a circulação dos automóveis. Dessa lógica surge a proposta de uma inversão maciça de recursos na melhoria dos transportes coletivos, combinada com a taxação sobre a circulação dos automóveis.

Há iniciativas possíveis com impactos a curto prazo. Em São Paulo, por exemplo, a criação de 180 quilômetros de novos corredores de ônibus com duas faixas por sentido substituiria 3,7 milhões de viagens diárias por automóvel. Esses corredores contribuem significativamente para o alívio do tráfego, a elevação da velocidade de deslocamento e a redução da poluição.

A discussão sobre as possibilidades de financiamento de uma radical mudança nas políticas de mobilidade urbana, passando a priorizar o transporte coletivo visando transformá-lo em um bem comum, explora várias alternativas. Começa por questionar a distribuição dos recursos públicos no pacto federativo. Hoje, 60% dos impostos ficam nas mãos do governo federal, 18% vão para os municípios e 22% para os governos estaduais. Na Suécia, por exemplo, a relação é inversa: 70% para os municípios, 30% para o governo central. Os governos locais demandam uma parcela maior dos recursos.

Outra proposta para viabilizar essa política é a criação de uma Cide-Combustíveis municipal, contribuição incidente sobre a comercialização de gasolina, diesel e álcool etílico combustível. Pode ser uma fonte de recursos complementar para operar essas mudanças nas políticas de mobilidade. Outras isenções de impostos podem também colaborar para isso, como sobre os combustíveis consumidos pelos ônibus, que correspondem hoje a 20% do custo da tarifa.

Mas o mais intrigante é como certas fontes de recursos assegurados, que poderiam orientar-se para financiar novas políticas de mobilidade, são desprezadas. Estima-se que um terço dos automóveis que circulam em São Paulo esteja com o IPVA atrasado, o que leva também ao acúmulo de multas sem pagamento. O IPVA é um tributo dividido meio a meio entre o governo do estado e o município. Quem o recolhe é o estado, que repassa ao município sua quota-parte. Esses tributos atrasados, somados a uma estimativa de multas a pagar, podem chegar a mais de R$ 7 bilhões. Por que estado e município não entram em acordo para intensificar a cobrança desses impostos e os vinculam a um projeto comum de investimentos nos transportes públicos?

O passe livre, ou tarifa zero, é possível. Trata-se de transferir o custo dos serviços públicos de transporte para a conta da sociedade como um todo, não do usuário; desmercantilizar esse serviço público, transformá-lo em bem público à disposição de todos.

Daí a dizer que ele vai ser introduzido, eu não diria. Há muitas forças que se opõem. No entanto, as últimas semanas me fizeram mudar de opinião, ficar em dúvida. Já não acho mais impossível que os movimentos de massa imponham a catraca livre. De toda forma, a construção do welfare statesó foi possível pela pressão das massas, e é o que estamos vendo nas ruas das principais cidades.

Silvio Caccia Bava

Diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil

Ilustração: Francele Cocco


Fonte: Le Mode Diplomatique
[Via BBA]

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