Quando o professor já morreu e continua dando aula

Imagine-se tendo uma aula online, em um curso eficiente, com um bom professor ministrando uma matéria do programa quando, subitamente, você ...

Imagine-se tendo uma aula online, em um curso eficiente, com um bom professor ministrando uma matéria do programa quando, subitamente, você descobre que ele já faleceu.

Essa experiência desagradável, para se dizer o mínimo, pode ocorrer com qualquer um que assista aulas online gravadas. E o aumento da pressão sobre as instituições de ensino, além da ausência de regras que protejam os professores, igualmente atingidos pela crise no setor, torna esse tipo de evento cada vez mais provável.

O jovem Kal-El (Superman) conversa interativamente com a consciência de seu pai e cientista Jor-El, morto junto com praticamente toda a civilização do planeta Krypton, em sua Fortaleza da Solidão – uma espécie de Wikipedia multimídia com tutoria peripatética. Ter aulas desse nível para o desenvolvimento de competências só no campo da ficção, por ora. Mas as implicações éticas já começam a surgir.

Sim, você pode assistir Sir Stephen Hawkings palestrando em um documentário que prova que a Terra é redonda na Disney+ . Mas quando isso se dá em um curso com aulas a distância ainda que se saiba que a aula é gravada, há uma propensão dos alunos e docentes simplesmente acharem que é a mesma coisa da aula presencial, só que mediada por uma interface digital. Especialmente se a aula se dá em uma sala de aula (ainda que seja um cenário forjado) até com alguns alunos na platéia.

E é um equívoco. E esse equívoco é reforçado quando o nome do professor consta na descrição do curso, com a data de início sendo atual e você tendo questões subjetivas sendo corrigidas, e-mails respondidos e outras formas de fazer perguntas sendo respondidas e notas sendo dadas no curso. Ainda que se saiba haver professores assistentes, monitores e outros atendentes envolvidos (até mesmo virtuais) sempre se espera ao menos a supervisão da atividade pelo mestre cujo nome está associado àquela atividade de instrução.

HI EXCUSE ME, I just found out the the prof for this online course I’m taking *died in 2019* and he’s technically still giving classes since he’s *literally my prof for this course* and I’m learning from lectures recorded before his passing

..........it’s a great class but WHAT

— Aaron Ansuini 🪴🌱✨ (@AaronLinguini) January 20, 2021

TRADUÇÃO
Oi, desculpe-me, acabei de descobrir que o professor deste curso online que estou fazendo * morreu em 2019 * e tecnicamente ele ainda está dando aulas, já que ele é * literalmente meu professor para este curso * e estou aprendendo com as aulas gravadas antes de seu passamento

.......... é uma ótima aula, mas O QUE

Talvez por isso, foi uma descoberta incômoda para Aaron Ansuini quando ele percebeu que quem “literalmente” era o professor da aula que estava assistindo em um curso online havia falecido em 2019. E a instituição não se importava em continuar oferecendo suas aulas normalmente.

E isso tem outros desdobramentos que afetam inclusive os professores vivos. Por exemplo, ainda que a boa parte do conhecimento técnico fique defasado rapidamente, muitas aulas teóricas podem ser ministradas praticamente da mesma forma indefinidamente. E os professores hoje recebem para atuar em uma aula gravada praticamente pelo mesmo valor de uma aula presencial tradicional. Ocorre que a instituição pode simplesmente dispensar esse profissionais depois de ter um conjunto de gravações considerável e contratar assistentes com baixa remuneração e sem benefícios apenas para sanar as dúvidas (o que não é pouco, mas que geralmente não os qualifica para ministrar as aulas).

IDK SOMETHING ABOUT IT IS WEIRD

— Aaron Ansuini 🪴🌱✨ (@AaronLinguini) January 20, 2021

TRADUÇÃO
NÃO SEI. ALGUMA COISA AQUI ESTÁ ESQUISITA

This is why we need to talk about IP for online courses. It is very dangerous that we can teach a course one time and they can run it indefinitely. In my experience in online ed, this guy made MAYBE a couple 1000 and they’re still profiting off that labor 2 years after his death.

— 🏳️‍🌈 Dr. Baird Campbell (@BairdCampbell) January 21, 2021

TRADUÇÃO
É por isso que precisamos falar sobre IP (propriedade intelectual) para cursos online. É muito perigoso que possamos ministrar um curso uma vez e eles possam executá-lo indefinidamente. Na minha experiência com educação online, esse cara fez talvez uns 1000 e eles ainda estão lucrando com esse trabalho 2 anos após sua morte. 

Assim, nesse formato, os alunos não têm acesso ao professor após as aulas para dirimir dúvidas ou saber a opinião diretamente do professor sobre algum assunto levantado durante as explições. Pior ainda é se o estudante desejar alguma recomendação profissional ou para o ingresso em um programa de pós-graduação (é comum a exigência de cartas de recomendação para o ingresso em um programa de pós-graduação strictu senso para o mestrado ou doutorado, por exemplo).

Uma melhor regulação nessa área a fim de se evitar a precarização do setor com prejuízo dos maiores afetados em um ensino de qualidade, o aluno e o conjunto da sociedade, urge uma vez que a pandemia de Covid-19 acelerou a migração de grande parte da aulas para o ciberespaço. Essa é uma discussão que não deve ser postergada e as videoaulas dos grandes mestres que já partiram talvez devam ser publicadas como um memorial da contribuição para o conhecimento da humanidade que nos foi legado.

Fonte: BoingBoing
Visto no Brasil Acadêmico