Deve ter ido para o inferno mais por uma questão de demanda exacerbada devido a uma pandemia e aos seus capitais pecados de orgulho, vaidade...
Reza a lenda
que quem vai para o inferno fica condenado ao sempre do eterno sofrimento e ao
nunca da eterna desesperança.
Com ele não
foi bem assim. Deve ter ido para o inferno mais por uma questão de demanda
exacerbada devido a uma pandemia e aos seus capitais pecados de orgulho,
vaidade e soberba. Era médico aqui na terra e médicos estão sujeitos e esses
pecados acrescidos de egocentrismo, e de um endeusamento que vem desde os
tempos de vestibular quando ao serem aprovados, inflam-se de superioridade,
pensam-se como deuses da intelectualidade e do saber.
Era cheio de
boas intenções, mas sempre futuras.
Exercia a
profissão com dedicação e acurácia, mas sempre muito vaidoso e cheio de si. Por
mais que lhe pagassem por suas atuações, sempre e sempre achava que merecia
mais. Que além do pagamento deveria, certamente, haver um reconhecimento de seu
brilho e uma gratidão por seu tempo, atenção, saber acumulado e habilidade de
suas mãos dedicados ao ato.
Porém, não
se merece o inferno só por ser bom e saber disso.
Dessa
vaidade, desse egocentrismo, desse anseio de admiração; advinham qualidades
tais como uma grande necessidade de estar sempre estudando, revendo condutas
através de publicações em revistas conceituadas e em livros de grandes autores.
Trocando ideias com grande luminares os quais julgava estarem próximo de seu
nível. Havia alguns que até mereciam seu respeito já que mergulhados em grandes
hospitais onde pesquisas se desenvolviam.
Andava
imponente e rápido nos corredores do hospital. Não costumava trocar ideias,
dava pareceres e orientava condutas, sempre indiscutíveis, prontas e acabadas.
Conversava rápida
e apressadamente, com os seres humanos normais, ainda que fossem colegas.
Ainda assim,
fazia muitas e muitas coisas boas.
Suas
desvirtudes não eram totalmente culpa sua. Tinha a mente brilhante a ponto de
ser notado desde criança.
Teve infância dura, desigual, sofrida,
espezinhada.
No futebol
era ruinzinho e sempre deixado em segundo plano, tinha que pedir para jogar e
perceber os melhores torcerem a cara desaprovando. Indo pescar era sempre o que
pegava menos e os menores peixes. Não sabia dançar, não tinha ritmo, ficava nas
festinhas mais olhando que participando.
Nos estudos,
foi aos poucos se descobrindo. Acabou descobrindo, nos livros; amigos, sonhos,
caminhos, companheiros, borbotões de ideias prontinhas para serem colhidas.
Ideias que se multiplicavam em sua cabeça, que respondiam perguntas, que
traziam conhecimentos, que abriam cortinas para muitos mundos e sobretudo lhe
abriam uma estrada ampla e infinita que descortinava para os seus olhos o
universo da ciência, do saber, do conhecimento.
Os livros
viraram amor. Esse amor virou paixão a medida em que foi descobrindo que livros
de matérias específicas como ciência, física, matemática, química e outros;
podiam dar prazer e serem lidos como os textos cheios de ideias. Depois
descobriu mais pois foi percebendo que conhecimentos específicos facilitavam o
entendimento de muitas e muitas ideias mais complexas e que até as tornavam
mais e mais interessantes.
Tendo
descoberto a pontinha da meada do conhecimento nos livros, agarrou-se a ela,
mergulhou e se embebeu na fecunda fonte do conhecimento.
Quanto mais
se embebia mais sede tinha.
Essa sede
que nunca se aplacava totalmente, provocou tantas mudanças nele e em sua vida
que findou por se tornar agradável, bonito, útil, necessário, vencedor e
brilhante.
Finalmente
chegou a ser um grande médico com domínio pleno de uma especialidade e amplo
conhecimento dentro da medicina em geral e de outras áreas do conhecimento.
Não havia situação,
tema ou assunto em que sua participação não acrescentasse luzes, soluções ou
preciosas orientações.
No que dizia
respeito à sua especialidade; era soberano. Segundo seu conceito e o de seus
pares.
Era assim
que se sentia.
Mas, como
sabemos, morreu e como no inferno carecessem desesperadamente de médicos;
competentes, capazes de morrer de trabalhar, vaidosos, pluriaptos e
egocêntricos.
Foi
apressadamente admitido.
Mais tarde,
revendo a folha corrida de sua vida, trocaram o termo Folha Corrida por:
Curriculum Vitae e, enquanto dormia em seu quartinho mofado e infestado de
muriçocas, foi transposto para um lugar maravilhoso; provavelmente o CEU.
Absolutamente
afeito aos livros e ao seu trabalho, não era capaz de conceber felicidade sem o
exercício da profissão, sem o endeusamento que sentia e que lhe davam devido a
suas habilidades aos resultados de suas ações dentro do mundo hospitalar.
Lembrou-se
da mãe que já havida morrido, de um amigo, de um tio, e dos avós que não haviam
convivido muito com ele.
Aí,
portentoso, iluminado, irresistível viu um prédio iluminado por um grande
painel brilhante, com o nome: Instituto de Tecnologia e Pesquisa e Complexo
Hospitalar - Média e Alta complexidades – 24 Horas.
Meu Deus!... O Céu, com certeza começa ali!... Exclamou já
se dirigindo para lá.
Muito ao
contrário do que tinha experimentado no inferno; ali tudo era perfeito. Sabemos
que o perfeito tem um conceito geral, mas para cada um de nós pode ter nuances
que o diferencia.
A entrada para
os médicos era separada da portaria principal por questões de logística. Já
imaginava que fosse assim pelo tratamento que tinha quando vivo.
Quando
entrava, um embutido alto falante já citava seu nome: Atenção Dr. Linneu
(talvez fosse esse o nome dele), pacientes nas salas cinco, seis, oito aguardam
suas últimas orientações para que as equipes comecem a atuar; na sala dez
encontra-se a paciente sua com cirurgia agendada para hoje. Exames e pareceres
pré-operatórios encontram-se na ante-sala que precede a de paramentação.
Anestesista, médico auxiliar da cirurgia e todos demais componentes da equipe
estão à disposição. Aguardamos ainda sua última palavra.
Experimentou
a mente repassando a cirurgia detalhe por detalhe, tentou lembrar os nomes dos
componentes da equipe, lembrou um por um. Repassou nomes de remédios, de sais,
diluições, rotinas para algum imprevisto, anatomia; tudo vinha com uma clareza e
rapidez como nunca, mesmo com sua Mente Brilhante, tivera antes.
Experimentou
as pernas, testou a coluna, fez movimentos com o pescoço, com os braços, com as
mãos e com os dedos. Tudo em ordem sem nem um pequeno porém. Não sentia fome,
nem sede, os órgãos internos não davam qualquer sinal de disfunção ou urgência
inoportuna.
Leve, livre,
solto e feliz. Eis como se sentia.
Repassando
os exames cuidadosamente e os pareceres, lembrou-se perfeitamente da paciente e
sentiu que tudo iria dar certo.
Ao trocar de
roupa, despiu-se quase que obedecendo um ritual. Desabotou a blusa, retirou-a
com cuidado para não amarrotar demais, colocou-a em um cabide e pendurou no
amplo armário que estava à sua disposição. Sentou-se e tirou os sapatos e os
guardou, por fim despiu-se retirando a calça, carteira e chaveiro não estavam
com ele, mas não estranhou. Dobrou cuidadosamente a calça guiado pelos vincos
já existentes e pendurou-a no cabide. Começou uma paramentação inicial
colocando roupas esterilizadas, máscara, gorro e pró pé. Atravessou um corredor
e foi continuar o rigoroso preparo antes de poder entrar em alguma sala.
Deu
pareceres, orientações, trocou algumas informações e finalmente dirigiu-se para
a sala onde estava sua paciente, acabou de se preparar e receber aventais,
luvas etc. E mergulhou no trabalho.
Trabalhou incontáveis
horas sem se dar conta de que o tempo passava. Não havia cansaço. O convívio
com as equipes era ótimo. O pós operatório era seguro, eficiente, maravilhoso.
Depois de cada
cirurgia havia um pequeno congraçamento na sala do cafezinho onde se comentava
detalhes, ressaltavam os êxitos, trocavam elogios, esticavam-se as pernas por
breves minutos, comentava-se alguma coisa leve do cotidiano e ficava-se por ali
até ser chamado para a próxima ação.
O tempo
passava de forma completamente diferente do que acontece em nosso mundo.
Em um
determinado momento sentia-se que era necessário mudar tudo para o refazimento
do ânimo, da vontade e da percepção de tudo. Então todo mundo voltava para o
cotidiano do Céu.
A
alimentação já fora feita no hospital, mas podiam se sentar num local de
refeição e ter uma mesa só para si ou usufruir da companhia de sua preferência.
Amigo, esposa, filhos, conhecidos ou o que lhe fosse aprazível.
Depois havia
uma sala de estar onde também se podia escolher a companhia. Até grandes sábios
como Pasteur, Einstein, Gabo e outros podiam estar com ele. Por alguma
tecnologia que ainda não temos por aqui.
O fato é que
ele, embora não notasse cansaço, estava louco por um bom banho, roupas limpas,
cama macia e fresquinha e uma noite silenciosa e tranquila.
Tudo lhe foi
concedido.
(A seguir UTI e plantões)
Visto no Brasil Acadêmico
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