A morte é um dia que vale a pena viver

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Por um lado, aliviar a dor e o sofrimento de doentes e familiares. Por outro, resgatar a biografia de pacientes. Esse é o exercício diário d...

Por um lado, aliviar a dor e o sofrimento de doentes e familiares. Por outro, resgatar a biografia de pacientes. Esse é o exercício diário da Drª Ana Claudia Quintana Arantes.

Médica formada pela FMUSP e especialista em Cuidados Paliativos pelo Instituto Pallium e Universidade de Oxford, pós graduada em Intervenções em Luto. Ana Claudia foi a responsável pela implantação das políticas assistenciais de Avaliação da Dor e de Cuidados Paliativos do Hospital Israelita Albert Einstein e é sócia fundadora da Associação Casa do Cuidar. Atualmente trabalha em consultório e como médica assistente do Hospice do Hospital da Clinicas da FMUSP, na Unidade Jaçanã.



Bom, primeiro tenho que explicar porque estou aqui. Nem eu acredito que estou aqui.

Sou médica formada pela “Casa de Arnaldo”. E desde muito cedo na faculdade eu me interessava por alguma coisa que as pessoas não se interessam.

Foi muito difícil nesse começo, nesses primeiros anos da prática da medicina porque eu vi uma coisa muito diferente, do que todo mundo dizia.

Tem uma poesia do Manoel de Barros, que eu acho que é meio muito a minha cara.

Ele tinha uma namorada que dizia que ela não via uma garça na beira do rio, ela via a beira do rio, na beira da garça.

O jeito de você ver as coisas, do jeito que eu estava vendo, era 'despraticar' as normas.

Como bem foi falado pelo Manoel de Barros.

Então, eu 'despratiquei' as normas, porque eu comecei a cuidar de pessoas no fim da vida.

Eu era uma residente meio odiada pelos internos, porque eu enchia meus leitos com pacientes que estavam morrendo.

E isso fazia com que cada vez mais, eu entendesse o quanto a medicina tinha para oferecer para essas pessoas.

Ao contrário do que todo mundo dizia.

Que aquele paciente de cuidado paliativo é uma pessoa que não tem nada para fazer.

Quando você não tem nada para fazer na medicina, então você entrega o paciente para o cuidado paliativo.

A segunda parte mais difícil do que eu estava fazendo era fazer cuidado paliativo.

Porque na nossa cultura paliativo tem algo assim, tipo gambiarra.

“Você vai fazer um paliativo.” Já ouvi isso em aula, é de doer.

E o paliativo, na verdade, não tem nada a ver com colocar uma fita isolante num fio solto.

'Paliativo' vem do latim pallium que quer dizer manto, cobertor.

Que era uma capa colocada nas costas dos cavaleiros das cruzadas para protegê-los das intempéries.

Isso tem tudo a ver com o que eu faço. Eu faço cuidado paliativo a cuidado de proteção.

Cuidado de proteção contra o sofrimento, que é a natureza de uma doença grave, incurável.

Fora de possibilidade de tratamento, de controle.

Que ameaça a continuidade da vida e está em progressão, naquela pessoa.

Inexoravelmente vai levá-la à morte.

Quando a gente fala dessa definição longa, estou falando da terminalidade.

Que todo mundo pensa ter a ver com o tempo.

“Ah, tem menos de 6 meses de vida, é paciente terminal.” “Tem uma semana é paciente terminal.” A terminalidade tem a ver com este conceito.

É uma doença grave, que está progredindo, seguindo seu curso natural.

E o que ela vai produzir são as intempéries, que a gente chama de sofrimento.

A doença é uma abstração da realidade, ela está nos livros.

Ela está no microscópio. Ou está nas definições, nas publicações.

Mas, quando a doença encontra um ser humano, ela produz uma melodia única, que se chama sofrimento.

As doenças se repetem nas pessoas. Mas o sofrimento, não.

O sofrimento é único, cada um tem o seu.

E o sofrimento tem cinco tons diferentes. Cinco frequências diferentes.

Você vai ter o sofrimento físico, que esse dá um baita barulho.

Atrapalha você a ouvir todos os outros sons desse ser humano.

Esse sofrimento físico, no cuidado paliativo, a gente trata como se fosse uma urgência.

Porque há risco de vida sim, se você não trata o sofrimento humano.

Tem muito para se fazer, em relação ao controle de sintomas.

Aí você passa para a dimensão emocional, que é um outro tom, bem mais complexo.

Qualidade tipo Bach. Bem complexo, bem rico.

Medicina é simples, gente boa. O difícil é a psicologia.

Cada ser humano é único, e vai expressar nesse momento que tem consciência da sua 'finitude'.

Porque todo mundo aqui sacou já que a gente vai morrer, Alguém está chocado em saber disso? Não é uma surpresa, não é?

É que vocês não pensam que pode ser em 2 semanas.

De bala perdida, por exemplo.

E quando a gente fala da dimensão emocional, vem todo esse peso de entender... de buscar.

Por que está acontecendo isso? Na dimensão social, e em todos os níveis de cuidado paliativo, a gente percebe que eles separam em quatro pedaços: Sofrimento físico, emocional, social e espiritual.

Eu sou meio metida, eu separo o social em dois: A dimensão familiar e a dimensão social.

Porque a gente nunca fica doente sozinho. A gente fica doente com a nossa família.

E a gente faz parte da nossa família, depois a gente se torna um doente da nossa família, e depois que a gente morre, é um buraco que fica nessa situação.

E isso precisa ser cuidado. E a dimensão espiritual é fundamental.

Porque ela vai dar para nós a essência de sermos humanos.

A espiritualidade, não tem muito a ver com religiosidade. A religiosidade é só um caminho para você alcançar a espiritualidade.

Você encontra a espiritualidade na forma como você se relaciona consigo mesmo, na forma como você se relaciona com o outro, na forma como você se relaciona com a natureza, com o Universo. E com Deus.

Há quem se relacione com o Universo, e não tem nenhuma relação com Deus. E nem por isso essa espiritualidade é menor ou menos importante.

A gente busca sentido em nossa existência. Tem que existir um porquê. E aí a gente aguenta qualquer como...

O cuidado paliativo, então, vai tratar do sofrimento humano, em todas essas dimensões.

Então ao contrário do que diziam do cuidado paliativo, tem muito o que fazer. A gente trabalha bastante.

Porque na hora que eu olho para um paciente não posso ficar frustrada porque a doença dele não tem cura.

Porque se eu me formei médica para cuidar de gente eu não vou ficar frustrada porque a doença não tem cura.

Mas tem muita gente que faz medicina para tratar doenças.

Não há nada de errado, mas você tem que ter clara essa opção.

E o paciente saca, na sua cara, quando você diz para ele: “Vai dar tudo certo” e está escrito nos seus olhos, “deu tudo errado”.

Essa frustração é entendida pelo paciente como: “Não tem mais jeito para mim.” E aí, a gente faz uma reflexão sobre o que significa tempo, quando falamos sobre cuidado paliativo.

Para entender a importância desse trabalho, a gente tem que sacar que numa situação como essa, em que você está num ambulatório às 9 da manhã, e você vai atender uma pessoa assim.

Ela se preparou muito para estar nessa consulta.

Ela está há uns 3 ou 4 meses esperando esse horário.

Ela vai ter 15 minutos, talvez um pouco menos do que eu tenho aqui para contar o que significa a importância disso.

Ela vai ter 15 minutos da atenção do médico.

Ela está se preparando há 3 meses pensando no que ela tem de mais importante para falar nesses 15 minutos.

Porque nesses 15 minutos também tem que caber o que o médico vai dizer para ela.

Ela está preparada, ela se arrumou, pôs um brinco, vestido novo, chapéu.

Quem vai sentar do outro lado, está preparado para isso? Dá a mesma importância que ela está dando? Porque o tempo que os dois vão trocar é exatamente o mesmo, 15 minutos o médico dará da vida dele, 15 minutos ela receberá dele.

Só que a diferença entre esses dois personagens dessa cena é que ela não tem tempo a perder.

Quem for sentar do outro lado tem que entender a importância de que ela não tem tempo para desperdiçar, com quem não dá importância para um ser humano, até o último minuto que ele vive.

Não tem mais jeito. Não é possível que a gente possa oferecer isso para uma pessoa.

Ela é muito mais do que um corpo, muito mais do que a dimensão biológica.

Quando a gente vai falar de estatísticas, a gente sabe que no Brasil morrem mais ou menos 1 milhão e 100 mil pessoas todo ano.

Faremos parte dessa estatística em algum momento da nossa vida.

Em algum momento da nossa vida, alguém que a gente ama muito fará parte dessa estatística.

Cerca de 800 mil pessoas, no Brasil, morrem com morte anunciada. Elas morrem de doenças crônicas, degenerativas ou de câncer.

Esta morte anunciada proporciona a chance dessa pessoa conseguir redimensionar a própria existência.

E compreender em que passo ela quer andar. E se tiver alguém do lado dela que compreenda uma tabela, uma estatística, que se informe, cientificamente.

Porque a ciência é brilhante, gente, é maravilhoso ser cientista.

Você descobre tanta coisa boa. Você pode oferecer tanta coisa boa para esses pacientes.

E na ciência há uma característica interessante. Tudo que você replica tem qualidade.

Se você tratar um milhão de pessoas e encontrar o mesmo resultado, isto é científico.

Isto é medicina baseada em evidências. Mas na arte, gente boa, é o contrário.

A arte se você replicar, vira pirataria. E o ser humano é único, ele não é replicante. Não é replicável.

Então, você precisa encontrar o que tem de melhor na ciência, da medicina baseada em evidências, que existe muita coisa dentro de cuidado paliativo, consistente, embasado, tecnicamente bem feito.

Que você precisa se informar e entender a importância disso.

Para oferecer o melhor para esse paciente, para ele poder fazer bom uso da vida dele.

Se tem alguma coisa muito ética para se fazer em cuidado paliativo, não é fazer para o outro aquilo que você gostaria para você.

Porque você vai fazer bobagem. Você vai fazer como se fosse para você.

A coisa mais ética que a gente pode fazer em cuidado paliativo, diante de um paciente no fim da vida, é ouvir como a gente gostaria de ser ouvido.

Aí vamos entender o que significa o que está em uma tabela, quando você segura na mão de uma pessoa, que faz parte desses números.

E aí muita gente pergunta, se isso é mórbido. Se é difícil trabalhar com morte.

“Nossa! Que lindo seu trabalho! Mas deve ser muito difícil, não é?”

Então eu digo para vocês o seguinte: É um dos trabalhos mais incríveis que há na medicina. Porque você não se esgota.

Ao contrário de muita gente que estuda burnout, dizem que pessoas que trabalham com cuidado paliativo, ou pessoas que trabalham com pacientes terminais, têm índices altíssimos de exaustão profissional.

É tudo mentira.

Pessoas que trabalham com pacientes que morrem, sim, essas são estressadas.

Porque elas não entendem o que estão fazendo ali.

Agora, quem trabalha com cuidado paliativo, tem exatamente o contrário, o menor índice de estresse profissional possível, porque a gente aprende a dar valor à vida.

Nós não somos apologia da morte. A morte não é bonita.

Ela tem uma beleza ímpar de uma tristeza. Mas ela não é bonita.

A vida sim é bonita.

E quando você entra num consultório como aquele, e senta naquela cadeira, e olha para o paciente.

Olha para aquela pessoa de um jeito diferente.

Como diz o Chico Buarque: "De um jeito diferente, que você nunca tinha feito antes.

Você olha de um jeito mais quente, como nunca tinha costumado olhar." Aí o cara saca que tem alguém que acredita nele.

Que ele vai dar conta. Que ele tem pouco tempo, sim, mas você está ali do lado.

Você vai tratar os sintomas dele, com o mesmo respeito, afinco, dedicação e determinação com que você trataria o câncer.

Que você trataria a doença cardíaca dele.

Uma vez que você consegue aliviar o sintoma físico, ele tem a chance de dar conta de tudo que a gente precisa dar conta na vida, e a gente está deixando para a última hora.

Alguém aqui está pronto para morrer hoje? Nem levante a mão porque vem falar comigo depois que eu encaminho ao psicólogo.

Ninguém está pronto, gente.

Todo mundo tem algo para fazer e deixa para fazer na hora da saída.

Passar um batom, pentear o cabelo, fazer xixi, sabe aquela coisa antes de viajar? É assim com todo ser humano.

A gente tem a ilusão de que é a primeira impressão que é a que fica. E não é. É a última.

Porque, no final da vida, é impressionante como todo mundo desperta, põe para fora, o que é a essência do ser humano, que é o estado de amorosidade.

A generosidade com que estas pessoas, distribuem sabedoria, conhecimento e gratidão para quem trabalha com isso com dedicação.

É um negócio... não dá para descrever para vocês.

E aí a gente vai viver períodos que podem ser recheados com muitas alegrias.

Especialmente porque às vezes os pacientes têm duas alegrias.

Uma de viver aquele momento, sem dor.

Uma de viver o momento em que ele consegue pedir perdão, se reconciliar com uma pessoa que ele ama muito.

Ele consegue agradecer.

Ele vive isso uma vez, e ele fica muito contente de contar para você que deu conta de fazer.

Ele fala: “Você acreditou? Eu fiz.” Aí você consegue retomar laços, refazer situações, entender sua existência de uma forma, que no final da vida faz todo o sentido.

Porque sabemos que no final de um livro, a gente consegue entender.

Muita coisa que durante o livro inteiro a gente não entendeu.

Novela é a mesma coisa, e filme idem. No final tem todo o sentido.

E se estivermos sem dor, sem falta de ar, sem desconforto, sem medo, sem culpa... sem abandono, a gente vai poder entender o sentido de tudo isso.

Essa senhora aqui foi uma das que mais me ensinou. Ficamos três meses juntas.

Eu entro na vida das pessoas... Não é um prazer conhecer a Dr.ª Ana Cláudia.

Definitivamente não é, primeiro porque eu sou geriatra, já entro em uma fase em que ninguém está muito a fim de passar.

E depois quando eu faço cuidado paliativo, não é um prazer, porque entro pela porta que todo mundo quer manter fechada, que é a do sofrimento, da doença, da morte.

Mas uma vez que eu entro, eu começo a fazer uma parte muito intensa na vida dessa pessoa, na vida dessa família.

E não tem como, a gente é humano. E a gente troca.

E o aprendizado que recebemos, é uma coisa que não tem como descrever.

No dia em que ela faleceu, eu tive a chance de me despedir dela.

E, foi muito especial, porque no momento em que eu tava me despedindo dela, saiu uma lágrima. De mim, saíram dezenas. Mas dela saiu uma.

E uma lágrima que cai dos olhos de uma pessoa que teve a chance de se libertar do sofrimento físico, que teve a chance de se libertar do medo, da culpa, da solidão de estar nesse momento.

Por ter que passar por esse momento sozinha. Se libertou do abandono. Se reconciliou com a família.

Esteve presente com todos, a maior parte do tempo.

Foi admirada por todos por sua coragem de enfrentar o seu fim de vida.

E aí caiu essa lágrima. Que era triste, sim. É de uma tristeza legítima.

Concordam? Não tem como não ficarmos tristes. Mas é uma lágrima pura. Da essência de uma vida que encontrou sentido na sua existência. Que se salvou.

Por isso quando eu falo de cuidado paliativo, eu também falo de salvar vidas.

Só que a gente salva vidas históricas, vidas com 'V' maiúsculo.

Não um corpo, não uma doença que se cura.

Mas as pessoas têm a chance de embarcar na primeira classe.

Nessa vida, independente da religião de qualquer pessoa aqui, Nessa vida a gente só morre uma vez. Não pode dar vexame.

Se tivermos a chance, de encontrarmos profissionais que se comprometam com nosso tempo, com a importância que nós damos para o nosso tempo, e colocar como prioridade do trabalho deles, o que a gente determinar para isso, nós vamos ser gente de muita sorte.

E eu preciso dizer que estou muito feliz de saber que tem mais gente que pode um dia, acreditar que, a morte é um dia que vale a pena viver.

Obrigada.

Fonte: TED
[Visto no Brasil Acadêmico]

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Brasil Acadêmico: A morte é um dia que vale a pena viver
A morte é um dia que vale a pena viver
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Brasil Acadêmico
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