Este texto se destina a quem tem dificuldade de entender o motivo pelo qual Rachel Sheherazade recebeu tantas críticas a respeito de seu com...
Este texto se destina a quem tem dificuldade de entender o motivo pelo qual Rachel Sheherazade recebeu tantas críticas a respeito de seu comentário no Jornal do SBT, em 5/2/2014, quando comentou e justificou a ação de justiceiros que espancaram, mutilaram, desnudaram e acorrentaram a um poste um jovem que supostamente assaltava pessoas no bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro:
1. – O pensamento dela parte de uma visão distorcida do filósofo Thomas Hobbes (1588-1679). Resumidamente, Hobbes afirmava que o ser humano em “estado de natureza” (sem uma estrutura política que o limite) iria sempre perseguir a satisfação de seus desejos, o que resultaria em incessantes conflitos entre as pessoas quando o desejo de um entrasse em conflito com o do outro. Isso resultaria em uma “guerra de todos contra todos”, e daí deriva a necessidade de um Estado forte – e absolutista – que através de sua enorme força repressiva conseguisse limitar os conflitos e assim preservar a integridade física das pessoas – ao custo de sua liberdade. O erro de Rachel Sheherazade nesse aspecto: Hobbes nunca defendeu que os cidadãos seriam capazes de executar “justiça” por conta própria – pelo contrário, considerava que a população em geral é intelectualmente incapaz para discernir sobre questões de justiça, e que todos (sem exceção) possuem o mesmo potencial para serem violentos e despóticos em relação aos seus pares.
Quando o delinquente é um jovem negro e pobre: Marginalzinho.
Quando o delinquente astro Justin Bieber: O médicos dizem que é normal. É a Síndrome da Adolescência.
2. Quando ela fala sobre o governo ter desarmado os cidadãos e sobre o grupo de justiceiros estar usando de “legítima defesa”, está usando uma interpretação igualmente distorcida de outro filósofo do período moderno, John Locke (1632-1704). Locke afirmava que todo cidadão deveria possuir meios de defender suas propriedades. Mas para Locke a principal propriedade de um ser humano é seu próprio corpo, e este é inviolável – com esse argumento Locke se opôs fortemente à tortura, à pena de morte, a castigos físicos em prisioneiros e à escravidão como fora praticada nas Américas (ele admitia a possibilidade de trabalhos forçados como reparação para crimes contra indivíduos). Na verdade, para Locke o direito à propriedade material nada mais é do que uma “extensão” dos direitos de se autopossuir (ou seja, propriedade sobre o próprio corpo), então os bens materiais são secundários em relação à integridade física, que seria inviolável. O pensamento de Locke é a base sobre a qual começou a ser construída a noção de direitos humanos, que pessoas como Rachel Sheherazade – e aqueles que a aplaudem – rejeitam (mesmo sem saberem do que se trata).
“Legítima defesa coletiva”
3. Quando ela defende que alguém seja capaz de determinar quem é culpado ou inocente, julgar qual seria a pena aplicável e executá-la, está violando um dos fundamentos mais básicos de toda a organização política ocidental: a divisão de poderes. Essa noção se iniciou com Locke (já citado), mas foi aprimorada pelo pensador Montesquieu (1689-1755). Para Locke, quanto mais “fraco” for o Estado, menor a possibilidade dele se tornar tirânico e abusar do cidadão (o que é uma crítica ao que Hobbes, também já citado, defendia). Montesquieu formulou que o estado deveria, portanto, ser dividido em três seções distintas, cada uma com função diferente: aquela que faz leis, aquela que julga as relações entre cidadãos de acordo com as leis já existentes, e aquela que executa as leis e os julgamentos. Aquilo que hoje chamamos de Legislativo, Judiciário e Executivo, respectivamente. Ao defender a atitude dos justiceiros (ou de policiais que realizam execuções sumárias – coisa que ela também já defendeu), ela está eliminando essa divisão de poderes: o mesmo que determina regras, julga; o mesmo que julga, executa. A consequência, clara, é a de que alguém que faça essas três coisas ao mesmo tempo passa a ter poder de vida ou morte sobre outro cidadão, sem necessariamente ter preparo ou legitimidade para isso – ou seja, nada mais é do que um déspota. E não faltam exemplos históricos disso: todas as ditaduras da história se basearam na falta de limites entre essas três funções.
4. Quando ela afirma que o fato do rapaz ter fugido imediatamente ao invés de ter prestado queixa é um indício de que ele era culpado de algo, está simplesmente sendo burra: após ser espancado, ter sua orelha arrancada e ser acorrentado nu a um poste – pelo pescoço – alguém em sã consciência iria permanecer no local? Ainda mais sabendo que os mesmos a quem ele deveria reclamar poderiam fazer a mesma coisa novamente, ou podem ter sido coniventes com o que já havia ocorrido? E o fato de que os agressores provavelmente estavam nas redondezas? Qualquer um fugiria correndo em pânico assim que a corrente fosse serrada.
5. A frase “o contra-ataque aos bandidos é o que chamo de legítima defesa coletiva de uma sociedade sem Estado contra um estado de violência sem limite” é absurdamente parecida com as frases usadas por alguns dos movimentos mais violentos da história. Cito como exemplos a Ku Klux Klan (que existe até hoje) e os nazistas à época da Segunda Guerra Mundial – podem procurar vídeos a respeito no YouTube. Todos os movimentos de “limpeza social” se justificam afirmando que estão apenas se defendendo contra uma ameaça externa. Inúmeros grupos terroristas islâmicos emitem exatamente o mesmo tipo de discurso, e se justificam da mesma forma. A ditadura no Brasil também foi instaurada para supostamente livrar o país da “ameaça” do “comunismo” – e, até onde sabemos, deixou 20 anos de repressão, 457 mortos (confirmados) e pelo menos mil outros “desaparecidos” políticos, além de um grande número de exilados.
“Comportamento de massa”
6. Em seu discurso ela propôs que fossem jogados fora todos os fundamentos da Constituição brasileira, além de nossos códigos penal, processual e civil.
7. Ela não atentou para o fato de que os “justiceiros” também cometeram vários crimes graves, e que por isso são potencialmente tão perigosos para a sociedade quanto o homem que “puniram”.
8. Quando falou sobre defensores dos direitos humanos, demonstrou não conhecer sequer o conceito de “direitos humanos”. Ela e seus admiradores acreditam que “direitos humanos” é o nome de alguma coisa genérica que só aparece em casos que envolvem criminalidade, e sempre para defender a parte “errada” da história. Desconhece, por exemplo, que é por causa do conceito de direitos humanos que as pessoas não podem mais ser escravizadas, que é proibido chicotear alguém para que trabalhe mais, que jornadas de trabalho são limitadas a um determinado número de horas, que ninguém pode ser preso sem justificativa, que todos devem ter direito a um julgamento justo e a ampla defesa, que tortura não é aprovada como método de interrogatório, que o governante não pode ordenar a execução sumária de alguém que não goste, que o estado deve providenciar o mínimo necessário para a sobrevivência e a educação das crianças, que jovens menores de idade não podem ser vendidas para casar, que o governante não pode exigir de um casal recém-casado que a mulher passe a noite de núpcias com ele... coisas que afetam o cidadão comum, que poderia ainda estar sendo vítima disso tudo – como já aconteceu em outros momentos históricos.
Ou seja, a mentalidade de Rachel Sheherazade precisa alcançar, no mínimo, o século 17. E eu nem entrei em outros pormenores, como os fundamentos da ética kantiana (que também é base da concepção de direitos humanos), da ética cristã (ela alega ser cristã), dos crimes que ela cometeu ao falar aquelas barbaridades em rede nacional (incitação ao ódio e apologia ao crime), do fato de que a criminalidade é fruto de condições sociais e por isso o indivíduo que se torna criminoso não tem total controle sobre sua escolha (coisa que se sabe desde o século 19), que o sentimento de revanchismo pode levar a população a um “comportamento de massa” que resulte em um movimento totalitário (fenômeno que ocorreu na Segunda Guerra Mundial, mas só foi explicado academicamente na década de 1950), e assim sucessivamente.
No final das contas, quando você concorda com Rachel Sheherazade isso diz muito mais a seu respeito do que a respeito dela.
David G. Borges é professor universitário, Vila Velha, ES
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Textos de outras publicações não expressam, necessariamente, a opinião de Blog Brasil Acadêmico e seus colaboradores.
Fonte: Observatório da Imprensa
[Via BBA]
1. – O pensamento dela parte de uma visão distorcida do filósofo Thomas Hobbes (1588-1679). Resumidamente, Hobbes afirmava que o ser humano em “estado de natureza” (sem uma estrutura política que o limite) iria sempre perseguir a satisfação de seus desejos, o que resultaria em incessantes conflitos entre as pessoas quando o desejo de um entrasse em conflito com o do outro. Isso resultaria em uma “guerra de todos contra todos”, e daí deriva a necessidade de um Estado forte – e absolutista – que através de sua enorme força repressiva conseguisse limitar os conflitos e assim preservar a integridade física das pessoas – ao custo de sua liberdade. O erro de Rachel Sheherazade nesse aspecto: Hobbes nunca defendeu que os cidadãos seriam capazes de executar “justiça” por conta própria – pelo contrário, considerava que a população em geral é intelectualmente incapaz para discernir sobre questões de justiça, e que todos (sem exceção) possuem o mesmo potencial para serem violentos e despóticos em relação aos seus pares.
2. Quando ela fala sobre o governo ter desarmado os cidadãos e sobre o grupo de justiceiros estar usando de “legítima defesa”, está usando uma interpretação igualmente distorcida de outro filósofo do período moderno, John Locke (1632-1704). Locke afirmava que todo cidadão deveria possuir meios de defender suas propriedades. Mas para Locke a principal propriedade de um ser humano é seu próprio corpo, e este é inviolável – com esse argumento Locke se opôs fortemente à tortura, à pena de morte, a castigos físicos em prisioneiros e à escravidão como fora praticada nas Américas (ele admitia a possibilidade de trabalhos forçados como reparação para crimes contra indivíduos). Na verdade, para Locke o direito à propriedade material nada mais é do que uma “extensão” dos direitos de se autopossuir (ou seja, propriedade sobre o próprio corpo), então os bens materiais são secundários em relação à integridade física, que seria inviolável. O pensamento de Locke é a base sobre a qual começou a ser construída a noção de direitos humanos, que pessoas como Rachel Sheherazade – e aqueles que a aplaudem – rejeitam (mesmo sem saberem do que se trata).
“Legítima defesa coletiva”
3. Quando ela defende que alguém seja capaz de determinar quem é culpado ou inocente, julgar qual seria a pena aplicável e executá-la, está violando um dos fundamentos mais básicos de toda a organização política ocidental: a divisão de poderes. Essa noção se iniciou com Locke (já citado), mas foi aprimorada pelo pensador Montesquieu (1689-1755). Para Locke, quanto mais “fraco” for o Estado, menor a possibilidade dele se tornar tirânico e abusar do cidadão (o que é uma crítica ao que Hobbes, também já citado, defendia). Montesquieu formulou que o estado deveria, portanto, ser dividido em três seções distintas, cada uma com função diferente: aquela que faz leis, aquela que julga as relações entre cidadãos de acordo com as leis já existentes, e aquela que executa as leis e os julgamentos. Aquilo que hoje chamamos de Legislativo, Judiciário e Executivo, respectivamente. Ao defender a atitude dos justiceiros (ou de policiais que realizam execuções sumárias – coisa que ela também já defendeu), ela está eliminando essa divisão de poderes: o mesmo que determina regras, julga; o mesmo que julga, executa. A consequência, clara, é a de que alguém que faça essas três coisas ao mesmo tempo passa a ter poder de vida ou morte sobre outro cidadão, sem necessariamente ter preparo ou legitimidade para isso – ou seja, nada mais é do que um déspota. E não faltam exemplos históricos disso: todas as ditaduras da história se basearam na falta de limites entre essas três funções.
4. Quando ela afirma que o fato do rapaz ter fugido imediatamente ao invés de ter prestado queixa é um indício de que ele era culpado de algo, está simplesmente sendo burra: após ser espancado, ter sua orelha arrancada e ser acorrentado nu a um poste – pelo pescoço – alguém em sã consciência iria permanecer no local? Ainda mais sabendo que os mesmos a quem ele deveria reclamar poderiam fazer a mesma coisa novamente, ou podem ter sido coniventes com o que já havia ocorrido? E o fato de que os agressores provavelmente estavam nas redondezas? Qualquer um fugiria correndo em pânico assim que a corrente fosse serrada.
5. A frase “o contra-ataque aos bandidos é o que chamo de legítima defesa coletiva de uma sociedade sem Estado contra um estado de violência sem limite” é absurdamente parecida com as frases usadas por alguns dos movimentos mais violentos da história. Cito como exemplos a Ku Klux Klan (que existe até hoje) e os nazistas à época da Segunda Guerra Mundial – podem procurar vídeos a respeito no YouTube. Todos os movimentos de “limpeza social” se justificam afirmando que estão apenas se defendendo contra uma ameaça externa. Inúmeros grupos terroristas islâmicos emitem exatamente o mesmo tipo de discurso, e se justificam da mesma forma. A ditadura no Brasil também foi instaurada para supostamente livrar o país da “ameaça” do “comunismo” – e, até onde sabemos, deixou 20 anos de repressão, 457 mortos (confirmados) e pelo menos mil outros “desaparecidos” políticos, além de um grande número de exilados.
“Comportamento de massa”
6. Em seu discurso ela propôs que fossem jogados fora todos os fundamentos da Constituição brasileira, além de nossos códigos penal, processual e civil.
7. Ela não atentou para o fato de que os “justiceiros” também cometeram vários crimes graves, e que por isso são potencialmente tão perigosos para a sociedade quanto o homem que “puniram”.
8. Quando falou sobre defensores dos direitos humanos, demonstrou não conhecer sequer o conceito de “direitos humanos”. Ela e seus admiradores acreditam que “direitos humanos” é o nome de alguma coisa genérica que só aparece em casos que envolvem criminalidade, e sempre para defender a parte “errada” da história. Desconhece, por exemplo, que é por causa do conceito de direitos humanos que as pessoas não podem mais ser escravizadas, que é proibido chicotear alguém para que trabalhe mais, que jornadas de trabalho são limitadas a um determinado número de horas, que ninguém pode ser preso sem justificativa, que todos devem ter direito a um julgamento justo e a ampla defesa, que tortura não é aprovada como método de interrogatório, que o governante não pode ordenar a execução sumária de alguém que não goste, que o estado deve providenciar o mínimo necessário para a sobrevivência e a educação das crianças, que jovens menores de idade não podem ser vendidas para casar, que o governante não pode exigir de um casal recém-casado que a mulher passe a noite de núpcias com ele... coisas que afetam o cidadão comum, que poderia ainda estar sendo vítima disso tudo – como já aconteceu em outros momentos históricos.
Ou seja, a mentalidade de Rachel Sheherazade precisa alcançar, no mínimo, o século 17. E eu nem entrei em outros pormenores, como os fundamentos da ética kantiana (que também é base da concepção de direitos humanos), da ética cristã (ela alega ser cristã), dos crimes que ela cometeu ao falar aquelas barbaridades em rede nacional (incitação ao ódio e apologia ao crime), do fato de que a criminalidade é fruto de condições sociais e por isso o indivíduo que se torna criminoso não tem total controle sobre sua escolha (coisa que se sabe desde o século 19), que o sentimento de revanchismo pode levar a população a um “comportamento de massa” que resulte em um movimento totalitário (fenômeno que ocorreu na Segunda Guerra Mundial, mas só foi explicado academicamente na década de 1950), e assim sucessivamente.
No final das contas, quando você concorda com Rachel Sheherazade isso diz muito mais a seu respeito do que a respeito dela.
David G. Borges é professor universitário, Vila Velha, ES
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Textos de outras publicações não expressam, necessariamente, a opinião de Blog Brasil Acadêmico e seus colaboradores.
Fonte: Observatório da Imprensa
[Via BBA]
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