Se a cura da malária é conhecida desde o século XVII, por que essa doença ainda mata centenas de milhares de pessoas todo ano? A jornalista ...
Se a cura da malária é conhecida desde o século XVII, por que essa doença ainda mata centenas de milhares de pessoas todo ano? A jornalista Sonia Shah afirma que não se trata apenas de um problema da medicina. Uma viagem através da história da malária revela os três grandes desafios de sua erradicação.
Bem... Ao longo da história, a doença contagiosa que tem matado mais seres humanos é a malária. Ela é transmitida pela picada de mosquitos infectados e é provavelmente a mais antiga praga da humanidade. Acredita-se que pegamos malária desde quando evoluímos de primatas ancestrais. E até hoje, a malária é responsável por uma quantidade gigantesca de mortes. Temos 300 milhões de casos por ano e mais de meio milhão de mortes.
E, olha, isso não faz o menor sentido. Conhecemos a cura da malária desde o começo do século XVII, quando os missionários jesuítas do Peru descobriram a casca de uma planta chamada cinchona, e dentro dessa casca existe a quinina, que ainda hoje é um modo eficiente de curar malária. Então conhecemos a cura da malária há séculos Sabemos como prevenir malária desde 1897. Foi quando o cirurgião do exército britânico, Ronald Ross descobriu que na verdade são mosquitos que transmitem malária e não ar ruim ou miasmas, como se achava antigamente. Então a malária deveria ser um problema relativamente simples, mas mesmo assim, até hoje, centenas de milhares de pessoas morrem por causa de uma picada de mosquito. Por quê?
Essa é uma pergunta que me deixou intrigada por muito tempo. Sou filha de imigrantes indianos. Quando era criança, visitava meus primos na Índia todo verão e, como eu não tinha imunidade às malárias locais, me faziam dormir debaixo de uma rede anti-mosquito quente e suada, toda noite, enquanto meus primos, eles sim podiam dormir lá fora, no terraço e sentir aquele vento fresquinho, os acariciando gentilmente. E isso me fazia odiar os mosquitos. Mas, ao mesmo tempo, minha família é jainista. E o jainismo é uma religião que prega a não-violência a todo e qualquer custo. Jainistas não podem comer carne. Não podem pisar na grama, porque você corre o risco, entende, de matar algum inseto sem querer, enquanto você anda. Obviamente, não podemos matar mosquitos. Então o poder aterrorizante desse inseto tão pequeno ficou claro para mim desde muito cedo, e esse é um dos motivos que me levaram a ser jornalista durante cinco anos procurando entender, como é que a malária pode ser uma praga tão terrível pra todo mundo, e por tanto tempo? E eu acho que existem três motivos principais. E esses três motivos levam ao quarto motivo, que é provavelmente o maior de todos.
O primeiro motivo é certamente científico. O parasita minúsculo que causa a malária é provavelmente um dos mais complexos e complicados já vistos pela humanidade. Ele passa metade de sua vida no mosquito, um ser de sangue frio, e a outra metade no ser humano, de sangue quente. Esses dois ambientes são completamente diferentes, e não é só isso, os dois são extremamente hostis. Então, o inseto tenta combater o parasita constantemente, assim como o corpo humano, que luta para eliminá-lo. Essa criaturazinha consegue sobreviver a toda essa pressão, mas além de sobreviver, ele também cresce. E se espalha. Tem maneiras de fugir dos ataques do que conhecemos. É realmente um mutante. Do mesmo jeito que uma lagarta vira borboleta, o parasita da malária se transforma, sete vezes durante seu ciclo de vida, E cada um desses estágios, além de não se parecer em nada com os outros, têm uma fisiologia completamente diferente. Você pode descobrir um remédio maravilhoso que funciona contra um dos estágios do ciclo de vida do parasita. E esse remédio pode não fazer nada contra os outros estágios. Ele se esconde nos nossos corpos, sem ser detectados, sem a gente saber, às vezes por dias, semanas, meses, anos, em alguns casos até décadas.
Então o parasita é um grande desafio para a ciência, mas o mosquito que o carrega também é. A maior parte da malária, no mundo inteiro, é transmitida por somente mais ou menos 12 espécies de mosquito. E sabemos bastante sobre os tipos de habitats aquáticos em que eles são especializados. Então vocês poderiam pensar assim, bom, por que a gente não evita os lugares em que esse mosquito assassino vive? Não é? A gente evita os lugares onde vive o urso assassino, e evita os lugares onde vivem os crocodilos assassinos. Mas digamos que você viva nos trópicos e saia da sua cabana um dia e deixe pegadas no chão de barro molhado perto da sua casa. Ou digamos que a sua vaca faça isso, ou o seu porco. E daí, digamos, começa a chover, e aquela pegada enche de água. E pronto. Você criou um habitat perfeito para o mosquito da malária bem na porta da sua casa. Então, livrar-se desses mosquitos não é fácil. De certa forma, na nossa rotina diária, criamos lugares que esses mosquitos adoram.
Então o desafio científico é enorme, mas há um enorme desafio econômico, também. A malária surge em alguns dos lugares mais pobres e mais distantes do planeta, e existe um motivo pra isso. Se você é pobre, as chances de pegar malária são maiores. Se você é pobre, são maiores as chances de viver em uma casa rudimentar em terras improdutivas com má drenagem. Esses são os lugares em que os mosquitos se reproduzem. É menos provável que você tenha redes protetoras nas portas e janelas. É menos provável que tenha acesso a eletricidade, e a todas as atividades que você poderia fazer em casa, se tivesse eletricidade, então você passa mais tempo fora de casa. E você leva muito mais picadas de mosquito.
Então, pobreza causa malária, mas o que sabemos agora é que a malária em si também causa pobreza. Por um motivo: ela ataca com mais força na época de colheita, exatamente quando os fazendeiros precisam sair para o campo, pra colher a safra, eles pegam febre e são obrigados ficar em casa. Mas ela também predispõe as pessoas a várias outras causas de morte. Então, o que acontece historicamente é: eliminamos a malária de uma determinada sociedade, mas todo o resto fica igual. A comida, a água e o saneamento continuam sendo ruins, e tudo isso causa doenças. Mas se você elimina a malária, as mortes por outras causas também diminuem. Um economista chamado Jeff Sachs calculou o que isso significa pra uma sociedade. O que significa é: se existe malária na sua sociedade, seu crescimento econômico é reduzido em 1,3% ao ano, ano após ano após ano... Só por causa dessa única doença. Tudo isso impõe um grande desafio econômico porque, digamos que você invente um remédio maravilhoso ou uma vacina maravilhosa, como é que você vai levá-las até um lugar que não tem estradas, que não tem infraestrutura, que não tem eletricidade para ligar os refrigeradores, para conservar as coisas, que não tem consultórios, que não tem clínicos, como é que vamos entregar os remédios nos lugares que precisam deles? Então, acabar com a malária é um grande desafio econômico.
Mas além do desafio científico e econômico, existe o desafio cultural, e essa provavelmente é a questão relacionada à malária, de que ninguém gosta de falar. É um paradoxo que as pessoas que mais têm malária no mundo, são as que se importam menos com a doença. Isso é o que a antropologia da saúde tem visto várias e várias vezes. Os médicos-antropólogos perguntam às pessoas que vivem nas áreas infectadas: "O que você acha da malária?" E eles não respondem "ah, é uma doença terrível, estamos morrendo de medo." Eles dizem: "a malária é um problema normal, rotineiro." E essa com certeza foi minha experiência pessoal. Quando contei pros meus parentes indianos que estava escrevendo um livro sobre a malária, eles meio que olharam pra mim como se eu tivesse contado que o livro era sobre verrugas ou algo assim. Como se dissessem: por que você está escrevendo sobre uma coisa tão chata, tão comum? Entende? E é uma simples questão de percepção de risco, na verdade. Uma criança no Malawi, por exemplo, pode ter até doze episódios de malária antes de completar dois anos, mas se sobreviver, ela vai continuar pegando malária a vida inteira, mas tem uma probabilidade maior de não morrer por causa dela. Então em sua experiência de vida, a malária é algo que vai e vem. E, na maioria dos casos de malária, isso é mesmo verdade. Na maioria dos casos de malária, a doença some sozinha. É que existem tantos casos que essa pequena fração de casos que levam à morte se tornam relevantes quando somados ao número de mortes em geral. Então eu acho que as pessoas em áreas infectadas devem ver a malária do mesmo jeito que nós, que vivemos nas zonas temperadas, vemos a gripe e o resfriado. Certo? Gripes e resfriados são um grande problema nas nossas sociedades e em nossas próprias vidas, mas nós nem mesmo nos preocupamos em tomar a mais básica das precauções, porque nós achamos que pegar gripe e resfriado é normal, nas épocas de gripe e resfriado.
E por causa disso, acabar com a malária é um grande desafio cultural porque se as pessoas pensam que é normal ter malária, como é que você as convence a ir correndo ao médico para receber diagnóstico, pegar a receita comprar os remédios, tomá-los, usar os repelentes e as redes anti-mosquito? Esse é o grande desafio cultural de acabar com essa doença.
Então, vamos juntar tudo isso. Existe uma doença. Ela é cientificamente complicada, é desafiadora economicamente, e os que mais precisam de cura são justamente os que menos se importam. E esse se torna o maior problema de todos, que, claro, é o problema político. Como fazer com que um político faça algo pra resolver um problema como esse? E, historicamente, a resposta é: não tem como. A maioria das sociedades afligidas pela malária ao longo da história simplesmente conviveram com a doença. Então os principais ataques à malária vieram de fora das sociedades infectadas, de pessoas que não foram impedidas por essa política estagnante. Mas tudo isso, na minha opinião, traz mais uma série de outros tipos de dificuldade.
O primeiro ataque concentrado contra a malária começou na década de cinquenta. Essa ideia foi o orgulho do Departamento de Estado americano. E a operação conseguiu levar em conta o desafio econômico. Sabiam que precisavam investir em ferramentas baratas e fáceis de usar, então investiram no DDT. Eles entenderam o desafio cultural. De fato, tinham uma visão bem tolerante: achavam que não deveriam exigir nada dessas pessoas Deveriam fazer tudo para eles e por eles. Mas eles subestimaram o desafio científico. Tinham tanta confiança nas ferramentas, que pararam de pesquisar a malária. E quando essas ferramentas começaram a falhar, e a opinião pública se voltou contra essas ferramentas, eles não tinham conhecimentos científicos pra descobrir como sair dessa. A campanha foi por água abaixo, e a malária voltou, só que ainda pior do que antes, porque ela tinha sido encurralada nos lugares mais difíceis de alcançar, e em suas formas mais difíceis de controlar. Na época, um oficial da OMS chegou a dizer que a campanha foi "um dos maiores erros já cometidos em saúde pública."
A última tentativa de domar a malária começou no final dos anos noventa. Assim como a anterior, ela é dirigida e financiada de fora das áreas infectadas. Essa tentativa sim, entende o desafio científico. Eles fazem um montão de pesquisas. E eles entendem o desafio econômico, também. Investem em ferramentas muito baratas e muito fáceis de usar. Mas, na minha opinião, o maior dilema é o desafio cultural. A rede anti-mosquito para cama é o fator principal dessa campanha. Elas contêm inseticida. Esse negócio foi distribuído nas regiões infectadas, aos milhões. E se você pensar na rede anti-mosquito para camas, ela é mais ou menos como uma intervenção cirúrgica. Sabe, ela não tem valor nenhum para uma família com malária, apesar de prevenir malária. E mesmo assim pedimos às pessoas pra usar essas redes todas as noites, tem que ser toda noite. Elas só funcionam se for desse jeito. E eles tem que fazer isso mesmo se a rede tapar o vento, mesmo se tiverem que se levantar no meio da noite pra fazer suas necessidades, mesmo se tiverem que mudar a decoração de lugar só pra usar esse negócio, mesmo se, sabe, eles viverem em uma cabana redonda, onde é muito difícil armar uma rede quadrada. Nada disso é problema se você estiver lidando com uma doença mortal. Quer dizer, são males menores. Mas não é isso o que as pessoas que têm malária pensam. Para elas, o raciocínio deve ser bem diferente.
Imagine, por exemplo, se um bando de quenianos bem-intencionados aparecessem do nada aqui nas zonas temperadas e dissessem: "Olha, vocês pegam muita gripe e muito resfriado. A gente fez esse instrumento fantástico, fácil de usar e barato que a gente vai entregar dar de graça. O nome dele é máscara cirúrgica. A gente quer que vocês usem isso todos os dias nas épocas de gripe e resfriado, quando você for pra escola e quando for trabalhar." Será que a gente faria isso?
Eu me pergunto se é assim que as pessoas nessas áreas infectadas enxergam as redes quando eles as receberam. E de fato, sabemos por causa de estudos que somente 20% das redes para cama distribuídas foram realmente usadas. E provavelmente até menos do que isso, porque as mesmas pessoas que distribuíram as redes, voltaram lá e perguntaram pra eles: "E aí, você usou aquela rede que eu te dei?" Que é mais ou menos como se sua tia chata perguntasse: "E aí, você usou aquele vaso que eu te dei no natal?" Então essa estimativa é provavelmente exagerada.
Mas esse não é um problema incontornável. Podemos educar essas pessoas, tentar convencê-las a usar a rede. E já estamos fazendo isso. Estamos investindo pesado, com tempo e dinheiro, em workshops, treinamentos, musicais, peças de teatro e palestras em escolas, tudo isso para convencer essas pessoas a usar as redes que estamos dando. E pode ser que funcione. Mas isso leva tempo. E custa dinheiro. E recursos, e infraestrutura. Custa tudo o que aquela rede simples e barata não deveria custar.
Então é difícil combater a malária de dentro das sociedades que a têm, mas também é complicado tentar combater de fora dessas sociedades. Acabamos impondo nossas próprias prioridades sobre as pessoas das áreas infectadas. Foi o que fizemos na década de cinquenta, e aquela tentativa deu errado. Eu diria que, se só distribuirmos os instrumentos que fizemos, e eles não fizerem sentido na vida daquelas pessoas, corremos o risco de cometer o mesmo erro outra vez.
Não estou dizendo que a malária é indomável, porque eu acho que ela é domável, sim. Mas e se a gente combatesse a doença levando em conta as prioridades das pessoas que convivem com ela? Veja por exemplo a Inglaterra e os Estados Unidos. A malária foi um problema nesses países por centenas de anos, mas conseguimos nos livrar dela, não porque combatemos a malária. Nunca fizemos isso. O que combatemos foram as estradas ruins, as casas ruins, o sistema de drenagem ruim, a falta de eletricidade e a pobreza no campo. Atacamos o modo de vida que causa malária, e fazendo isso, fomos aos poucos acabando com a doença. Mas combater esse modo de vida, isso sim é algo com que as pessoas se importam. E combater esse modo de vida, não é rápido, não é barato, não é fácil, mas acho que é o único caminho que nos resta.
Muitíssimo obrigada.
(Aplausos)
[Via BBA]
Bem... Ao longo da história, a doença contagiosa que tem matado mais seres humanos é a malária. Ela é transmitida pela picada de mosquitos infectados e é provavelmente a mais antiga praga da humanidade. Acredita-se que pegamos malária desde quando evoluímos de primatas ancestrais. E até hoje, a malária é responsável por uma quantidade gigantesca de mortes. Temos 300 milhões de casos por ano e mais de meio milhão de mortes.
E, olha, isso não faz o menor sentido. Conhecemos a cura da malária desde o começo do século XVII, quando os missionários jesuítas do Peru descobriram a casca de uma planta chamada cinchona, e dentro dessa casca existe a quinina, que ainda hoje é um modo eficiente de curar malária. Então conhecemos a cura da malária há séculos Sabemos como prevenir malária desde 1897. Foi quando o cirurgião do exército britânico, Ronald Ross descobriu que na verdade são mosquitos que transmitem malária e não ar ruim ou miasmas, como se achava antigamente. Então a malária deveria ser um problema relativamente simples, mas mesmo assim, até hoje, centenas de milhares de pessoas morrem por causa de uma picada de mosquito. Por quê?
Essa é uma pergunta que me deixou intrigada por muito tempo. Sou filha de imigrantes indianos. Quando era criança, visitava meus primos na Índia todo verão e, como eu não tinha imunidade às malárias locais, me faziam dormir debaixo de uma rede anti-mosquito quente e suada, toda noite, enquanto meus primos, eles sim podiam dormir lá fora, no terraço e sentir aquele vento fresquinho, os acariciando gentilmente. E isso me fazia odiar os mosquitos. Mas, ao mesmo tempo, minha família é jainista. E o jainismo é uma religião que prega a não-violência a todo e qualquer custo. Jainistas não podem comer carne. Não podem pisar na grama, porque você corre o risco, entende, de matar algum inseto sem querer, enquanto você anda. Obviamente, não podemos matar mosquitos. Então o poder aterrorizante desse inseto tão pequeno ficou claro para mim desde muito cedo, e esse é um dos motivos que me levaram a ser jornalista durante cinco anos procurando entender, como é que a malária pode ser uma praga tão terrível pra todo mundo, e por tanto tempo? E eu acho que existem três motivos principais. E esses três motivos levam ao quarto motivo, que é provavelmente o maior de todos.
O primeiro motivo é certamente científico. O parasita minúsculo que causa a malária é provavelmente um dos mais complexos e complicados já vistos pela humanidade. Ele passa metade de sua vida no mosquito, um ser de sangue frio, e a outra metade no ser humano, de sangue quente. Esses dois ambientes são completamente diferentes, e não é só isso, os dois são extremamente hostis. Então, o inseto tenta combater o parasita constantemente, assim como o corpo humano, que luta para eliminá-lo. Essa criaturazinha consegue sobreviver a toda essa pressão, mas além de sobreviver, ele também cresce. E se espalha. Tem maneiras de fugir dos ataques do que conhecemos. É realmente um mutante. Do mesmo jeito que uma lagarta vira borboleta, o parasita da malária se transforma, sete vezes durante seu ciclo de vida, E cada um desses estágios, além de não se parecer em nada com os outros, têm uma fisiologia completamente diferente. Você pode descobrir um remédio maravilhoso que funciona contra um dos estágios do ciclo de vida do parasita. E esse remédio pode não fazer nada contra os outros estágios. Ele se esconde nos nossos corpos, sem ser detectados, sem a gente saber, às vezes por dias, semanas, meses, anos, em alguns casos até décadas.
Então o parasita é um grande desafio para a ciência, mas o mosquito que o carrega também é. A maior parte da malária, no mundo inteiro, é transmitida por somente mais ou menos 12 espécies de mosquito. E sabemos bastante sobre os tipos de habitats aquáticos em que eles são especializados. Então vocês poderiam pensar assim, bom, por que a gente não evita os lugares em que esse mosquito assassino vive? Não é? A gente evita os lugares onde vive o urso assassino, e evita os lugares onde vivem os crocodilos assassinos. Mas digamos que você viva nos trópicos e saia da sua cabana um dia e deixe pegadas no chão de barro molhado perto da sua casa. Ou digamos que a sua vaca faça isso, ou o seu porco. E daí, digamos, começa a chover, e aquela pegada enche de água. E pronto. Você criou um habitat perfeito para o mosquito da malária bem na porta da sua casa. Então, livrar-se desses mosquitos não é fácil. De certa forma, na nossa rotina diária, criamos lugares que esses mosquitos adoram.
Então o desafio científico é enorme, mas há um enorme desafio econômico, também. A malária surge em alguns dos lugares mais pobres e mais distantes do planeta, e existe um motivo pra isso. Se você é pobre, as chances de pegar malária são maiores. Se você é pobre, são maiores as chances de viver em uma casa rudimentar em terras improdutivas com má drenagem. Esses são os lugares em que os mosquitos se reproduzem. É menos provável que você tenha redes protetoras nas portas e janelas. É menos provável que tenha acesso a eletricidade, e a todas as atividades que você poderia fazer em casa, se tivesse eletricidade, então você passa mais tempo fora de casa. E você leva muito mais picadas de mosquito.
Então, pobreza causa malária, mas o que sabemos agora é que a malária em si também causa pobreza. Por um motivo: ela ataca com mais força na época de colheita, exatamente quando os fazendeiros precisam sair para o campo, pra colher a safra, eles pegam febre e são obrigados ficar em casa. Mas ela também predispõe as pessoas a várias outras causas de morte. Então, o que acontece historicamente é: eliminamos a malária de uma determinada sociedade, mas todo o resto fica igual. A comida, a água e o saneamento continuam sendo ruins, e tudo isso causa doenças. Mas se você elimina a malária, as mortes por outras causas também diminuem. Um economista chamado Jeff Sachs calculou o que isso significa pra uma sociedade. O que significa é: se existe malária na sua sociedade, seu crescimento econômico é reduzido em 1,3% ao ano, ano após ano após ano... Só por causa dessa única doença. Tudo isso impõe um grande desafio econômico porque, digamos que você invente um remédio maravilhoso ou uma vacina maravilhosa, como é que você vai levá-las até um lugar que não tem estradas, que não tem infraestrutura, que não tem eletricidade para ligar os refrigeradores, para conservar as coisas, que não tem consultórios, que não tem clínicos, como é que vamos entregar os remédios nos lugares que precisam deles? Então, acabar com a malária é um grande desafio econômico.
Mas além do desafio científico e econômico, existe o desafio cultural, e essa provavelmente é a questão relacionada à malária, de que ninguém gosta de falar. É um paradoxo que as pessoas que mais têm malária no mundo, são as que se importam menos com a doença. Isso é o que a antropologia da saúde tem visto várias e várias vezes. Os médicos-antropólogos perguntam às pessoas que vivem nas áreas infectadas: "O que você acha da malária?" E eles não respondem "ah, é uma doença terrível, estamos morrendo de medo." Eles dizem: "a malária é um problema normal, rotineiro." E essa com certeza foi minha experiência pessoal. Quando contei pros meus parentes indianos que estava escrevendo um livro sobre a malária, eles meio que olharam pra mim como se eu tivesse contado que o livro era sobre verrugas ou algo assim. Como se dissessem: por que você está escrevendo sobre uma coisa tão chata, tão comum? Entende? E é uma simples questão de percepção de risco, na verdade. Uma criança no Malawi, por exemplo, pode ter até doze episódios de malária antes de completar dois anos, mas se sobreviver, ela vai continuar pegando malária a vida inteira, mas tem uma probabilidade maior de não morrer por causa dela. Então em sua experiência de vida, a malária é algo que vai e vem. E, na maioria dos casos de malária, isso é mesmo verdade. Na maioria dos casos de malária, a doença some sozinha. É que existem tantos casos que essa pequena fração de casos que levam à morte se tornam relevantes quando somados ao número de mortes em geral. Então eu acho que as pessoas em áreas infectadas devem ver a malária do mesmo jeito que nós, que vivemos nas zonas temperadas, vemos a gripe e o resfriado. Certo? Gripes e resfriados são um grande problema nas nossas sociedades e em nossas próprias vidas, mas nós nem mesmo nos preocupamos em tomar a mais básica das precauções, porque nós achamos que pegar gripe e resfriado é normal, nas épocas de gripe e resfriado.
E por causa disso, acabar com a malária é um grande desafio cultural porque se as pessoas pensam que é normal ter malária, como é que você as convence a ir correndo ao médico para receber diagnóstico, pegar a receita comprar os remédios, tomá-los, usar os repelentes e as redes anti-mosquito? Esse é o grande desafio cultural de acabar com essa doença.
Então, vamos juntar tudo isso. Existe uma doença. Ela é cientificamente complicada, é desafiadora economicamente, e os que mais precisam de cura são justamente os que menos se importam. E esse se torna o maior problema de todos, que, claro, é o problema político. Como fazer com que um político faça algo pra resolver um problema como esse? E, historicamente, a resposta é: não tem como. A maioria das sociedades afligidas pela malária ao longo da história simplesmente conviveram com a doença. Então os principais ataques à malária vieram de fora das sociedades infectadas, de pessoas que não foram impedidas por essa política estagnante. Mas tudo isso, na minha opinião, traz mais uma série de outros tipos de dificuldade.
O primeiro ataque concentrado contra a malária começou na década de cinquenta. Essa ideia foi o orgulho do Departamento de Estado americano. E a operação conseguiu levar em conta o desafio econômico. Sabiam que precisavam investir em ferramentas baratas e fáceis de usar, então investiram no DDT. Eles entenderam o desafio cultural. De fato, tinham uma visão bem tolerante: achavam que não deveriam exigir nada dessas pessoas Deveriam fazer tudo para eles e por eles. Mas eles subestimaram o desafio científico. Tinham tanta confiança nas ferramentas, que pararam de pesquisar a malária. E quando essas ferramentas começaram a falhar, e a opinião pública se voltou contra essas ferramentas, eles não tinham conhecimentos científicos pra descobrir como sair dessa. A campanha foi por água abaixo, e a malária voltou, só que ainda pior do que antes, porque ela tinha sido encurralada nos lugares mais difíceis de alcançar, e em suas formas mais difíceis de controlar. Na época, um oficial da OMS chegou a dizer que a campanha foi "um dos maiores erros já cometidos em saúde pública."
A última tentativa de domar a malária começou no final dos anos noventa. Assim como a anterior, ela é dirigida e financiada de fora das áreas infectadas. Essa tentativa sim, entende o desafio científico. Eles fazem um montão de pesquisas. E eles entendem o desafio econômico, também. Investem em ferramentas muito baratas e muito fáceis de usar. Mas, na minha opinião, o maior dilema é o desafio cultural. A rede anti-mosquito para cama é o fator principal dessa campanha. Elas contêm inseticida. Esse negócio foi distribuído nas regiões infectadas, aos milhões. E se você pensar na rede anti-mosquito para camas, ela é mais ou menos como uma intervenção cirúrgica. Sabe, ela não tem valor nenhum para uma família com malária, apesar de prevenir malária. E mesmo assim pedimos às pessoas pra usar essas redes todas as noites, tem que ser toda noite. Elas só funcionam se for desse jeito. E eles tem que fazer isso mesmo se a rede tapar o vento, mesmo se tiverem que se levantar no meio da noite pra fazer suas necessidades, mesmo se tiverem que mudar a decoração de lugar só pra usar esse negócio, mesmo se, sabe, eles viverem em uma cabana redonda, onde é muito difícil armar uma rede quadrada. Nada disso é problema se você estiver lidando com uma doença mortal. Quer dizer, são males menores. Mas não é isso o que as pessoas que têm malária pensam. Para elas, o raciocínio deve ser bem diferente.
Imagine, por exemplo, se um bando de quenianos bem-intencionados aparecessem do nada aqui nas zonas temperadas e dissessem: "Olha, vocês pegam muita gripe e muito resfriado. A gente fez esse instrumento fantástico, fácil de usar e barato que a gente vai entregar dar de graça. O nome dele é máscara cirúrgica. A gente quer que vocês usem isso todos os dias nas épocas de gripe e resfriado, quando você for pra escola e quando for trabalhar." Será que a gente faria isso?
Eu me pergunto se é assim que as pessoas nessas áreas infectadas enxergam as redes quando eles as receberam. E de fato, sabemos por causa de estudos que somente 20% das redes para cama distribuídas foram realmente usadas. E provavelmente até menos do que isso, porque as mesmas pessoas que distribuíram as redes, voltaram lá e perguntaram pra eles: "E aí, você usou aquela rede que eu te dei?" Que é mais ou menos como se sua tia chata perguntasse: "E aí, você usou aquele vaso que eu te dei no natal?" Então essa estimativa é provavelmente exagerada.
Mas esse não é um problema incontornável. Podemos educar essas pessoas, tentar convencê-las a usar a rede. E já estamos fazendo isso. Estamos investindo pesado, com tempo e dinheiro, em workshops, treinamentos, musicais, peças de teatro e palestras em escolas, tudo isso para convencer essas pessoas a usar as redes que estamos dando. E pode ser que funcione. Mas isso leva tempo. E custa dinheiro. E recursos, e infraestrutura. Custa tudo o que aquela rede simples e barata não deveria custar.
Então é difícil combater a malária de dentro das sociedades que a têm, mas também é complicado tentar combater de fora dessas sociedades. Acabamos impondo nossas próprias prioridades sobre as pessoas das áreas infectadas. Foi o que fizemos na década de cinquenta, e aquela tentativa deu errado. Eu diria que, se só distribuirmos os instrumentos que fizemos, e eles não fizerem sentido na vida daquelas pessoas, corremos o risco de cometer o mesmo erro outra vez.
Não estou dizendo que a malária é indomável, porque eu acho que ela é domável, sim. Mas e se a gente combatesse a doença levando em conta as prioridades das pessoas que convivem com ela? Veja por exemplo a Inglaterra e os Estados Unidos. A malária foi um problema nesses países por centenas de anos, mas conseguimos nos livrar dela, não porque combatemos a malária. Nunca fizemos isso. O que combatemos foram as estradas ruins, as casas ruins, o sistema de drenagem ruim, a falta de eletricidade e a pobreza no campo. Atacamos o modo de vida que causa malária, e fazendo isso, fomos aos poucos acabando com a doença. Mas combater esse modo de vida, isso sim é algo com que as pessoas se importam. E combater esse modo de vida, não é rápido, não é barato, não é fácil, mas acho que é o único caminho que nos resta.
Muitíssimo obrigada.
(Aplausos)
[Via BBA]
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