A leitura de jornais já foi no Brasil, em tempos não muito distantes, uma das mais gratificantes atividades para os espíritos curiosos. Abri...
A leitura de jornais já foi no Brasil, em tempos não muito distantes, uma das mais gratificantes atividades para os espíritos curiosos. Abrir um diário era como escancarar uma janela para o mundo.
Apesar de encontrar interpretações da realidade com as quais eventualmente não concordasse, o leitor ou leitora tinha a convicção de que, mesmo as parcialidades que lhe impunha a imprensa, buscavam sua legitimação num esforço de objetividade. Assim, o conservadorismo do Estado de S. Paulo e a ligeireza do Globo podiam ser comparados à afoiteza impertinente da Folha de S. Paulo e à austera obsessão do Jornal do Brasil pela acuidade, e podia-se perceber o valor simbólico de seus conteúdos.
Uma das razões para essa percepção era a presença, nas redações, de profissionais qualificados com o que existe de essencial no jornalismo: a humilde curiosidade pelo que há de vir.
Os profissionais não eram avaliados por seu perfil ideológico, mas pela capacidade de se surpreender e surpreender o leitor. Por isso, as redações eram verdadeiros laboratórios de receitas políticas, sociais e econômicas, onde um editor filiado ao Partido Comunista dava instruções a um repórter alinhado a uma irmandade católica. Ou vice-versa.
O que fazia, por exemplo, o Grupo Folhas, os Diários Associados ou o Shopping News, semanário de consumo dirigido à classe média alta de São Paulo, aceitarem como editor o militante trotskista Hermínio Sacchetta, fundador do Partido Socialista Revolucionário?
Qual era a vantagem de Victor Civita, o criador da Editora Abril, em manter em seus quadros intelectuais de esquerda visados pela ditadura militar, ou o que movia Júlio de Mesquita Neto a preservar os comunistas que atuavam no Estado de S. Paulo e no Jornal da Tarde, muitos dos quais em cargos de confiança?
A resposta é simples: esses dirigentes de empresas de comunicação sabiam que o jornalismo só se justifica se a busca da objetividade for um propósito, não apenas um mote para dissimular a manipulação da notícia. O subcampo intelectual ocupado pelos jornalistas tinha seus paradigmas, que deviam ser respeitados pelo patrão. Nesse acordo, a mais-valia dos jornalistas era compensada pela liberdade de opinião dentro das redações. Em contrapartida, os jornais ganhavam em diversidade e profundidade, elementos básicos para uma interpretação multifacetada dos acontecimentos.
Tudo pelos holofotes
Abra agora um jornal, qualquer jornal brasileiro, da quarta-feira, 28 de agosto de 2013. O leitor vai encontrar, da primeira à última página, uma só opinião sobre as questões nacionais, seja sobre a crise diplomática criada pela fuga de um senador boliviano que se abriga no Brasil, seja em torno do programa Mais Médicos, seja sobre as perspectivas da economia ou nas especulações em torno das possíveis candidaturas às eleições de 2014.
Todas as pautas conduzem, de alguma forma, a uma matriz de pensamento cuja principal característica é a substituição da “humilde curiosidade” pelo dogma que não admite contraste.
A imprensa brasileira faz tão pouco caso do julgamento que lhe trará o futuro, que parece mesmo movida pela crença na hipótese do “fim da História”. Não se trata, apenas, do alinhamento automático com este ou aquele partido ou agrupamento político: a imprensa só é fiel a si mesma, a seus valores e sua ideologia.
Mesmo os políticos, economistas, empresários, magistrados e outros protagonistas que contam com o apoio explícito das redações, aqueles que têm suas opiniões exibidas a qualquer pretexto, não passam de massa de manobra. Se, no decorrer de determinada campanha eleitoral, este ou aquele aliado for considerado um obstáculo ao propósito da mídia tradicional, será descartado liminarmente.
A imprensa é um campo de batalha dentro do processo civilizatório, e seus soldados são intelectuais cooptados para uma visão de mundo cada vez mais restritiva. Restam poucas cabeças independentes, e sua função não é a de assegurar diversidade ao conteúdo jornalístico, mas preservar a justificativa moral do jornalismo.
Por esse motivo, ao analisar certos textos de articulistas que se esforçam para manter seu espaço nas colunas de opinião dos jornais ou em programas de televisão outrora respeitados, eventualmente o observador se vê tomado por um sentimento de piedade, ao constatar como a obsessão pelos holofotes pode apagar os últimos resquícios de dignidade profissional.
Mas a piedade é um sentimento perverso. Não há inocentes na imprensa.
Fonte: Observatório da Imprensa
[Via BBA]
Apesar de encontrar interpretações da realidade com as quais eventualmente não concordasse, o leitor ou leitora tinha a convicção de que, mesmo as parcialidades que lhe impunha a imprensa, buscavam sua legitimação num esforço de objetividade. Assim, o conservadorismo do Estado de S. Paulo e a ligeireza do Globo podiam ser comparados à afoiteza impertinente da Folha de S. Paulo e à austera obsessão do Jornal do Brasil pela acuidade, e podia-se perceber o valor simbólico de seus conteúdos.
Uma das razões para essa percepção era a presença, nas redações, de profissionais qualificados com o que existe de essencial no jornalismo: a humilde curiosidade pelo que há de vir.
Os profissionais não eram avaliados por seu perfil ideológico, mas pela capacidade de se surpreender e surpreender o leitor. Por isso, as redações eram verdadeiros laboratórios de receitas políticas, sociais e econômicas, onde um editor filiado ao Partido Comunista dava instruções a um repórter alinhado a uma irmandade católica. Ou vice-versa.
O que fazia, por exemplo, o Grupo Folhas, os Diários Associados ou o Shopping News, semanário de consumo dirigido à classe média alta de São Paulo, aceitarem como editor o militante trotskista Hermínio Sacchetta, fundador do Partido Socialista Revolucionário?
Qual era a vantagem de Victor Civita, o criador da Editora Abril, em manter em seus quadros intelectuais de esquerda visados pela ditadura militar, ou o que movia Júlio de Mesquita Neto a preservar os comunistas que atuavam no Estado de S. Paulo e no Jornal da Tarde, muitos dos quais em cargos de confiança?
A resposta é simples: esses dirigentes de empresas de comunicação sabiam que o jornalismo só se justifica se a busca da objetividade for um propósito, não apenas um mote para dissimular a manipulação da notícia. O subcampo intelectual ocupado pelos jornalistas tinha seus paradigmas, que deviam ser respeitados pelo patrão. Nesse acordo, a mais-valia dos jornalistas era compensada pela liberdade de opinião dentro das redações. Em contrapartida, os jornais ganhavam em diversidade e profundidade, elementos básicos para uma interpretação multifacetada dos acontecimentos.
Tudo pelos holofotes
Abra agora um jornal, qualquer jornal brasileiro, da quarta-feira, 28 de agosto de 2013. O leitor vai encontrar, da primeira à última página, uma só opinião sobre as questões nacionais, seja sobre a crise diplomática criada pela fuga de um senador boliviano que se abriga no Brasil, seja em torno do programa Mais Médicos, seja sobre as perspectivas da economia ou nas especulações em torno das possíveis candidaturas às eleições de 2014.
Todas as pautas conduzem, de alguma forma, a uma matriz de pensamento cuja principal característica é a substituição da “humilde curiosidade” pelo dogma que não admite contraste.
A imprensa brasileira faz tão pouco caso do julgamento que lhe trará o futuro, que parece mesmo movida pela crença na hipótese do “fim da História”. Não se trata, apenas, do alinhamento automático com este ou aquele partido ou agrupamento político: a imprensa só é fiel a si mesma, a seus valores e sua ideologia.
Mesmo os políticos, economistas, empresários, magistrados e outros protagonistas que contam com o apoio explícito das redações, aqueles que têm suas opiniões exibidas a qualquer pretexto, não passam de massa de manobra. Se, no decorrer de determinada campanha eleitoral, este ou aquele aliado for considerado um obstáculo ao propósito da mídia tradicional, será descartado liminarmente.
A imprensa é um campo de batalha dentro do processo civilizatório, e seus soldados são intelectuais cooptados para uma visão de mundo cada vez mais restritiva. Restam poucas cabeças independentes, e sua função não é a de assegurar diversidade ao conteúdo jornalístico, mas preservar a justificativa moral do jornalismo.
Por esse motivo, ao analisar certos textos de articulistas que se esforçam para manter seu espaço nas colunas de opinião dos jornais ou em programas de televisão outrora respeitados, eventualmente o observador se vê tomado por um sentimento de piedade, ao constatar como a obsessão pelos holofotes pode apagar os últimos resquícios de dignidade profissional.
Mas a piedade é um sentimento perverso. Não há inocentes na imprensa.
Fonte: Observatório da Imprensa
[Via BBA]
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