Houve um tempo que revistas brasileiras como Veja eram mais imparciais e havia um jornalismo mais apurado com pautas com menos viés. Em plen...
Houve um tempo que revistas brasileiras como Veja eram mais imparciais e havia um jornalismo mais apurado com pautas com menos viés. Em plena censura do regime militar, Mino Carta mostrava como os veículos da imprensa deveriam se portar na sagrada missão de informar e conquistar credibilidade.
Hoje podemos constatar, graças ao PlusD do Wikileaks, como o ítalo-brasileiro Mino Carta combatia a censura imposta pelo Estado (Veja EUA fizeram lobby pró-censura durante governo militar).
Entrevista de Mino Carta a Jô Soares em 1988 (parte 1/2)
Obituário feito pela revista Forbes a Roberto Civita aponta a revista Veja como uma das publicações mais odiadas do Brasil, em razão da opção editorial pela direita e de sua oposição clara ao governo do Partido dos Trabalhadores.
[Fonte: Brasil 247]
Entrevista de Mino Carta a Jô Soares em 1988 (parte 2/2)
E com essa mesma espiada no retrovisor vemos o quanto a revista Veja inclinou-se à direita do espectro político nacional após sua saída da direção do periódico, conforme atesta artigo da Forbes sobre a morte de Roberto Civita (Bilionário Roberto Civita, Barão da Mídia Brasileira, Morre aos 76, em inglês). Nessa entrevista ao Roda Viva, Carta mostra um pouco de seu pensamento e de sua verve jornalística.
Trecho da entrevista ao Roda Viva da TV Cultura em 04/12/2000. [Fonte: Memória Roda viva - Fapesp]
Paulo Markun: Boa noite. Influenciado pela família nas artes, ele começou na pintura, mas acabou seduzido pelo jornalismo. Nos últimos cinqüenta anos, criou e dirigiu publicações importantes, escrevendo parte da história política e da história da imprensa no Brasil. Mino Carta, pintor, jornalista e escritor é o convidado do Roda Vida esta noite.
[Comentarista]: "De fato, sobre dia e mês do meu nascimento existem controvérsias, nada que mexa com o mundo, está claro, mas quanto basta para criar alguma confusão entre os mais chegados e me livrar das festas de aniversário. Meu pai era professor de história da arte, minha mãe se dedicava aos afazeres da casa com um pronunciado talento para cozinha, alegando vocação dramática não realizada por obra do descaso do marido, a quem se esmerou em redarguir vida adentro por falta de compreensão e incentivo. Quanto a mim, sou autoditada em tudo e por tudo. E virei jornalista" [narração de trecho do romance O castelo de âmbar]. No esboço de capítulo das memórias, Mino Carta descreve uma lembrança de infância que pertence tanto a ele próprio quanto ao personagem narrador de seu primeiro romance, O castelo de âmbar [Mino Carta lançou em 2003 seu segundo romance, que dá continuidade ao primeiro, intitulado A sombra do silêncio]. Também sem data certa de nascimento, setembro de 33 ou fevereiro de 34, Mino Carta é de Gênova, na Itália. Chegou ao Brasil em 1946, aos 13 anos de idade. Em 1950, dividido entre os pincéis e a máquina de escrever, acabou escolhendo jornalismo, mas sem abandonar a pintura. Nos cinqüenta anos que se seguiram, ele criou e dirigiu revistas como Quatro Rodas [1960], Veja [1968-1976], Senhor [1982-1988], IstoÉ [fundou e dirigiu a revista de 1976 a 1981 e foi diretor de redação entre 1988 a 1993, quando saiu para lançar Carta Capital], Jornal da Tarde [1966-1968], Carta Capital e dessa experiência construiu uma visão crítica da política brasileira e da atuação da imprensa na política brasileira que, agora, ele coloca n´O castelo de âmbar. O romance é baseado em fatos reais e os personagens são tratados com pseudônimos, mas a sátira e fina ironia do texto oferecem os elementos que ajudam a desvendar políticos, presidentes, jornalistas, personagens reais da recente história política do Brasil, uma história que se mistura à própria história profissional desse jornalista, pintor e agora escritor.
Paulo Markun: Para entrevistar Mino Carta, nós convidamos Dora Kramer, colunista de política do Jornal do Brasil; Ziraldo, diretor da revista Bundas; Paulo Henrique Amorim, do programa Conversa Afiada, aqui da TV Cultura; Reinaldo Azevedo, jornalista do site Primeira Leitura e da revista República. Nós convidamos também o nosso caro Tão Gomes Pinto, diretor de redação de revista Imprensa. [Programa transmitido ao vivo, que permitiu a participação dos telespectadores por telefone, fax e internet] Boa noite, Mino Carta.
Mino Carta: Boa noite, Markun.
Paulo Markun: Vou começar pelo seu livro, na repercussão que ele teve, pelo fato de citar pessoas aparentemente reais na parte, digamos, memorialística, supostamente memorialística de um personagem fictício, e por tratar num conto supostamente fictício de pessoas mencionadas com seus nomes reais, você acha que isso de alguma forma embaçou a avaliação do produto do seu trabalho efetivamente? Porque fala-se muito mais disso do que efetivamente da história em si e do romance em si.
Mino Carta: Bem, eu acho que talvez seja normal que a repercussão comece por aí, se repercussão há. Mas, de certo, eu creio que o que interessa mesmo é a história no seu conjunto. E, para tanto, a escrevi [sorrindo]. Que os leitores julguem, naturalmente.
Paulo Markun: E por que você, digamos assim, que tem à tua disposição a publicação que você faz, a Carta Capital, combativa e disponível, se lançou a escrever alguma coisa que tem um lado de romance, mas tem um lado também de fatos reais, nesse formato de livro, de romance?
Mino Carta: Bem, talvez estivesse trafegando há tempo entre o fígado e a alma essa vontade de escrever algo a respeito da minha existência, mas profissional, naturalmente. Mas não me senti à vontade para escrever memórias.
Paulo Markun: Por quê?
Mino Carta: Porque não me julgo à altura das memórias, acho que memórias cabem a pessoas muito importantes e eu não acredito ser tão importante assim. Então, eu optei por uma solução que, segundo Nirlando Beirão [jornalista e escritor, autor do livro Rio/Sao: doze visões de duas cidades maravilhosas], que é uma pessoa muito amiga e muito generosa, foi um recurso para conferir às personagens um aplomb [segurança] que na realidade eles não têm. Eu gostaria de poder responder assim, mas na realidade não é, não é. Eu achei que a história poderia valer por si, e a parte, digamos assim, que envolve os jornalistas e também os políticos... no fundo interessa mais aos políticos e aos jornalistas do que aos leitores em geral.
Paulo Markun: Quer dizer, em outras palavras, é algo como se a gente pudesse ter duas leituras do livro? Nós aqui, que de alguma forma temos curiosidade de identificar se fulano é fulano e sicrano é sicrano, lemos assim. E há uma outra possibilidade de leitura, que seria da história pura e simplesmente?
Mino Carta: Eu acho... pelo menos eu gostaria muito que fosse assim. Agora, devo te confessar Markun, que houve algo nessa história toda que me surpreendeu de alguma maneira, que foi... li nos jornais que 31 pessoas convidadas para este programa acharam por bem não comparecer, quer dizer, se recusaram ao convite. Eu tenho até certeza que muitas delas tinham ótimos motivos, outros compromissos: encontro com a namorada, dor de dente, torceram o pé; enfim, bons motivos. Mas acredito que alguns entre eles ficaram realmente constrangidos, ou porque têm simpatias com as minhas idéias, mas não podem dizer, deixar claro essa simpatia, porque senão o patrão ficaria chateado, não é?, ficaria agastado, ou porque realmente temem um debate. Agora, não sei porquê me parece que eles agem como a confirmar um certo teorema que no fundo está implícito no livro e que, evidentemente, não envolve todos os jornalistas, mas envolve muitos, evidentemente. Tanto que 31... parece que é o recorde aqui de recusas.
Paulo Markun: Consta.
Mino Carta: Consegui superar nisso o Antônio Carlos Magalhães. Mas eu acho importante dizer o seguinte, que... veja, eles confirmam a convicção de que nada como o silêncio para que as coisas possam ser encaradas como se não tivessem acontecido. Tanto que, você veja, meu livro não teve repercussão alguma - pelo menos por enquanto - nos órgãos da chamada grande imprensa, excluído o Jornal do Brasil, que foi até generosíssimo comigo. Agora, é estranho esse conceito desenvolvido por jornalistas, não é?
Reinaldo Azevedo: Mino... [ao fundo]
Mino Carta: O silêncio para matar a repercussão, não é?
Reinaldo Azevedo: Mino... [ao fundo]
Mino Carta: Deixa eu só concluir isso, porque é uma coisa que eu queria realmente dizer. Agora, veja, os fatos estão aí, não é? Hannah Arendt [(1906-1975) filósofa alemã de origem judia e influenciada pelo marxismo. Autora, entre outros, de A condição humana] dizia que quando eles não são relatados, vão ao fundo do mar e nunca mais serão recuperados. Mas talvez não seja o caso, porque o meu livro teve uma tiragem inicial de dez mil exemplares e está esgotado em menos de um mês. Então, o fato existe, por quê não discutí-lo? Vai ver até para baixar uma lenha firme, não é? [Risos]
Reinaldo Azevedo: Mino, vamos então debater um pouquinho...
Mino Carta: Vamos.
Reinaldo Azevedo: ...Se a minha questão não for muito tosca, vamos lá. A revista República deu uma entrevista com você em novembro, você foi capa da revista.
Mino Carta: Sim.
Reinaldo Azevedo: Num tratamento que me parece, não vou dizer generoso porque você merece, acho que à altura do seu talento.
Mino Carta: Não, generoso.
Reinaldo Azevedo: Agora, nessa entrevista você chama o diretor de redação da Folha, o Otavio Frias Filho, você diz lá num dado momento: "Otavinho é uma besta, um ser subdoloso" [lendo o trecho em um exemplar que trouxera consigo]. Do Roberto Civita [presidente do Grupo Abril, uma das companhias mais influentes de comunicação da América Latina, filho do italiano Victor Civita, fundador da editora Abril], você diz que ele é um pilantra. E fala de outras personagens também, do Lula, etc. Agora, eu te diria muito tecnicamente, sem entrar no mérito se um é besta e o outro é pilantra, de todas as críticas que você fez, as duas, ou que poderiam enquadrar a revista, inclusive na Lei de Imprensa vigente - pode não ser a melhor, mas é que a temos - ... e se vier outra, eu acho que pilantra e besta continuam passíveis de processo, pelo menos, pelo qual o diretor de redação [o próprio Azevedo] responderá solidariamente, como você bem sabe. E a revista fez aquilo que me parece óbvio, que foi ouvir as duas pessoas, dizendo assim: "Olha, o senhor Mino Carta deu uma entrevista aqui e disse que você é besta e subdoloso e disse que o senhor é um pilantra". As duas pessoas responderam a sua maneira. Um deles, o Roberto, disse que você está com memória fraca ou coisa parecida... [sendo interrompido]
Ziraldo: Mas isso não é usual não, não é?
Reinaldo Azevedo: Não, não. Infelizmente não. Ouvir o outro lado não é.
Ziraldo: Isso não é usual. O Tão Gomes Pinto poderia ter feito isso comigo e não fez.
[...]: Claro, claro, poderia fazer...
Ziraldo: E vocês fizeram. Então, não está certo isso aí não, porque não tem nada que contar antes do Mino publicar. Achei horrível isso aí! [Risos ao fundo]
[...]: [Risos] Falou, falou. Está falado. Eu também não gostei!
Reinaldo Azevedo: Eu pediria... Eu só queria assegurar meu direito de terminar uma pergunta, pelo menos...
Ziraldo: Não, com certeza.
Reinaldo Azevedo: Porque senão cai numa puta confusão que não resolve nada.
Ziraldo: Não, mas eu estou...
Reinaldo Azevedo: Não, a gente até pode debater depois, mas deixa eu fazer a pergunta. Muito bem, as duas pessoas responderam, esta resposta está na introdução da entrevista e depois você segue falando aquilo que você tão brilhantemente bem fala sobre todas as coisas, sobre tudo. Bom, no editorial da sua revista, Carta Capital, da revista que você dirige, você dá uma desancada na revista República dizendo que ela inovou no procedimento ao ouvir as pessoas atacadas. Primeiro que não inovou, porque as revistas estão cheias disso, de a pessoa atacada vai e responde... O que me parece é que você deu uma de Groucho Marx [(1890-1977) comediante estadunidense] quer dizer, há um silêncio notório e gritante sobre o seu livro e a revista que aceita não te convidar para ser sócio [Frase famosa de Groucho Marx: "Não quero pertencer a nenhum clube que me aceite como sócio"], mas que de algum modo pretende fazer par, ainda que menor, ao seu brilho, ao seu talento, você desanca a revista. O que parece é que você assim... escolheu o papel da vítima triunfante. Eu nunca vi uma vítima tão triunfante![Carta começa a rir] Quer dizer, você é brilhante, reconhecidamente brilhante, diz nesta entrevista que sempre fez tudo o que quis nas redações, nos jornais e nas revistas, e lhe sobra ainda o lugar da vítima [Carta ri novamente], o que é muito confortável, porque uma vítima brilhante como você, ora, quem é que se atreve a ser o seu algoz? Ninguém.
Mino Carta: Eu agradeço todos os seus elogios, achei fantástico, fiquei enaltecido com eles, mas...
Reinaldo Azevedo: Não, não, outros melhores já o fizeram.
Mino Carta: Não, não, eu não sei. Eu declaro, já ouvi elogios, mas ouvi mais críticas do que elogios. Mas, de qualquer maneira, é a primeira vez da minha história de jornalista que eu leio uma entrevista na qual pessoas que foram eventualmente criticadas e até muito asperamente criticadas pelo entrevistado são ouvidas concomitantemente. Este é o ponto. Eu acho que eles tinham direito de resposta, sim, claro, numa repercussão procurada até pela própria revista, mas não publicadas as respostas deles na própria entrevista, juntamente com a própria entrevista.
Reinaldo Azevedo: Você acha que isso é mau jornalismo?
Mino Carta: Eu acho.
Paulo Henrique Amorim: Não é um perfil, não é? Não é um perfil.
Mino Carta: É, não é um perfil!
Paulo Henrique Amorim: Para dar o direito de resposta da mesma edição tinha que dar a ele o direito de tréplica na mesma edição.
Mino Carta: É claro.
Reinaldo Azevedo: Bom, mas aí inicia-se um debate que não acaba nunca.
Paulo Henrique Amorim: Claro, é evidente.
Mino Carta: Mas aí é inescapável, aí é inescapável ao meu ver, desculpe hein.
Reinaldo Azevedo: Não, não.
Mino Carta: Agora, eu não desanquei...
Reinaldo Azevedo: Na verdade, eu estou sendo surpreendido também, até pela posição do Paulo Henrique.
Mino Carta: Não, não, veja...
Paulo Henrique Amorim: Veja, não era um perfil, era uma entrevista. Era uma entrevista. Eu acho que, tecnicamente, a discussão é a seguinte: numa entrevista, o direito de resposta sucede à publicação da revista. Isso não era um perfil.
Reinaldo Azevedo: Desculpe, há um desconhecimento técnico agora. Eu não quero chatear o programa, mas há um desconhecimento técnico, porque diz a Lei de Imprensa: se eu tenho uma pessoa... porque isto é claramente classificável como injúria - se tiver algum advogado presente que diga -, isto é injúria. Você desqualificar a posição de alguém e dizer que ele está errado é uma coisa; você chamá-lo de besta é outra coisa, ora! Ou de pilantra!
Paulo Henrique Amorim: O problema é se numa entrevista cabe o direito de resposta na mesma edição da entrevista.
Mino Carta: É, é este o ponto. Mas de qualquer maneira, desculpe, eu não desanquei a revista República, eu achei o seu verbo exagerado. Absolutamente... [sendo interrompido]
Reinaldo Azevedo: Não... "A revista é o exemplo de que os patrões..." Como é? [tentando localizar o trecho do texto que Carta publicou em sua revista em resposta à revista República] Diz lá: "... têm sido marrecos dos empresários da mídia". Se fosse Pitágoras diria que o seu teorema de que...
Mino Carta: Isso não é desancar.
Reinaldo Azevedo: Olha Mino, considerando o que você pensa dos patrões, é.
Mino Carta: Hein?
Reinaldo Azevedo: Considerando o que você pensa habitualmente dos patrões e diz nesta revista, inclusive, colocá-la como uma revista que puxa o saco dos patrões é desancar.
Mino Carta: Não, no caso eu acho que... [Azevedo faz um breve comentário ininteligível] Eu acho que houve uma preocupação... estranhamente foram ouvidos os empresários da comunicação e não Lula, [Orestes] Quércia, outros que tinham sido citados na entrevista.
Paulo Markun: Mino, eu queria pedir, antes da gente continuar a entrevista, queria registrar a chegada da Maria Bonomi, artista plástica, que era nossa convidada, já que se mencionou o fato de que várias pessoas não puderam participar. Maria Bonomi pode participar, chegou um pouquinho atrasada, mas está aí. Queria fazer um apelo - que eu acho que não é para fugir da discussão, acho ótimo quando o programa esquenta e vira uma polêmica - mas é apenas para lembrarmos que estamos falando para uma audiência enorme e que essa questão jornalística é pertinente, sem dúvida nenhuma, mas não é a única questão a ser discutida, porque todos nós aqui que somos jornalistas gostaríamos também de opinar e discutir, poderíamos estabelecer um amplo debate até sobre a Lei de Imprensa, mas eu acho que tem outras questões... Senão a gente vai ficar nesse ponto específico. Se não estou enganado, creio que o ponto de vista tanto do Reinaldo quanto do Mino já foi registrado. Mas, à vontade se alguém quiser tocar para adiante.
Tão Gomes Pinto: Eu queria fazer uma colocação ao Mercúcio Parla, porque Mercúcio Parla domina esse livro de uma maneira irresistível... eu diria brilhante.
Paulo Markun: Só vamos esclarecer então, desculpe interromper, Mercúcio Parla é, digamos assim, o personagem que escreve o livro, que conta suas memórias.
Tão Gomes Pinto: Conta sua memórias.
Paulo Markun: Claramente inspirado em Mino Carta.
Tão Gomes Pinto: Eu, por enredo, ou pelo destino, ou por razões de realidade virtual, trabalho na revista Jornalistas, que é a revista Imprensa. E ali sou até obrigado a tecer considerações sobre colegas de profissão, criticando alguns, chamando atenção de outros, elogiando outros. E eu publiquei, recentemente, numa... recentemente não, no último número da revista Jornalistas, um editorial onde eu digo que Mino Carta - ou Mercúcio Parla - é o melhor jornalista brasileiro dos últimos cinqüenta anos. Eu poderia ter dito 150, 225, porque é o que eu acredito. Eu acredito que a comparação sua, me parece, só pode ser feita com relação a Líbero Badaró, que por coincidência também nasceu na Laigueglia [cidade da Itália], deve ter um “castelo de âmbar” lá perto e tal. E que morreu no Brasil com a famosa frase: “Morre um liberal, mas não morre a liberdade”. Ele tinha o direito de sonhar, no último suspiro as pessoas têm o direito de sonhar. Então sonhou que morria um liberal, mas não morria a liberdade. Por coincidência, ele foi assassinado por ordem de um ouvidor chamado Japiassu.
Mino Carta: Que não tem nada a ver com o nosso amigo Moacir [referindo-se a Moacir Japiassu], nada, nada! [Risos]
Tão Gomes Pinto: É um detalhe!
[...]: Cuidado com o Japiassu, Mino! [Pinto dá uma gargalhada. Risos]
Tão Gomes Pinto: Mas o que eu queria dizer a você é o seguinte, Mino, perguntar e prerrogar o seguinte: o que você acha das novas mídias que estão surgindo? Fala-se muito em democratização da mídia, democratização da informação. Queria sair instrumentos: internets, e-mails, telefones celulares... Hoje... cada brasileiro, daqui há pouco, vai ser portador de alguma lombriga e de um telefone celular... Você não acha que estamos prestes a uma revolução na comunicação, ou seja, essa sua teoria e essa sua posição justificadíssima, de que os mandarins da imprensa são os donos dos jornais, são os sacerdotes da opinião pública - porque no Egito os sacerdote é que mandavam -, aos poucos serão minados por esta nova sede de informação? Por exemplo, o brasileiro hoje, não é que seja um povo sem conhecimento, nós temos capacidade de fazer, de bater falta, por exemplo, a média distância... Por exemplo, Rogério [Ceni], goleiro do São Paulo, faz isso com grande habilidade, não é?
Mino Carta: É verdade.
Tão Gomes Pinto: Mas o brasileiro pode estar sendo... ou saltando para um patamar novo na comunicação, ou se boçalizando em massa. Qual a sua opinião a respeito disso?
Mino Carta: A minha opinião a respeito disso é que esses instrumentos estarão a serviço dos "medalhões". Imagino que todos aqui tenham lido um conto de Machado de Assis, intitulado magistral, dessa figura universal, intitulado "A teoria do medalhão". É o título do conto. E o conto é o seguinte: um pai chama o filho que completa 21 anos e lhe ministra uma aula para ser medalhão. Como? A previsão dele é... uma idade correta para se tornar medalhão é 45 anos, embora possa ser admissível que ele só chegue a tanto aos sessenta ou mais, ou até menos, mas isso digamos, 25 anos, por exemplo, que é possível ser medalhão aos 25 anos, no entanto é coisa para gênios. E qual é a receita? A receita, em primeiro: jamais tenha idéias próprias, repita exaustivamente as idéias colhidas pelas esquinas. Repita e trabalhe sobre elas fugindo da imaginação e buscando evitar a solidão, porque a solidão é muito propícia para a reflexão [risos]. Então, a reflexão é perigosa. Perigosa, porque de repente vem uma idéia! Fuja sistematicamente da imaginação, use um vocabulário... - estou tentando repetir Machado - simples, simples, tíbio, apocado, sem toques de clarim! Isso é fundamental, fundamental! Agrade a todos, agrade a todos sistematicamente que você obterá grande repercussão e respeito geral. Agora use as locuções mais triviais, lugares comuns, mais nefandos, e as fórmulas consagradas. Ao cabo, o filho pergunta: "E o riso? Dá para dar uma risadinha de vez em quando?" O pai diz: "Sim, claro, lógico, mas fuja sempre da ironia, não use a ironia, que é feição própria dos céticos e dos desabusados!" Isso é textual.
Paulo Henrique Amorim: Mino, supondo...
Tão Gomes Pinto: Mercúcio era um deus grego?
Mino Carta: Mercúcio? Não. Mercúcio é uma personagem de Shakespeare [Mercúcio é personagem da tragédia Romeu e Julieta, de William Shakespeare, publicada em 1597. Mercúcio era parente de Escalo, príncipe de Verona - onde se passa a trama -, e amigo de Romeu Montecchio. O jovem falastrão e cômico é morto em duelo por Teobaldo, primo de Julieta Capuleto, o qual descobrira a intrusa presença de Romeu no baile dos Capuletos, onde Romeu e Julieta se conheceram. Teobaldo encontra Romeu, Mercúcio e mais um amigo pela rua e os enfrenta. Romeu não queria confusões mas, apesar da insistência dos amigos, Mercúcio compra a briga de Romeu e aceita o desafio. Quando vê seu amigo morto, Romeu mata Teobaldo. A morte de Mercúcio desperta ainda mais a ira entre os Montecchios e os Capuletos, marcando a transição da estória de comédia para tragédia].
Paulo Henrique Amorim: Para quem não conhece você...
Mino Carta: ... [que] paga estupidamente pelos erros dos outros [sorrindo].
Paulo Henrique Amorim: ... [riso] Para quem não conhece você e não teve ainda a possibilidade de ler o seu livro, vamos tentar... Eu gostaria que você fizesse um pequeno resumo do que eu suponho seja uma idéia que acompanha todo o trabalho, que não sei se é um romance, se é uma reportagem, me permito não entrar nesse capítulo perigoso da classificação. Mas eu imagino que você tratou neste trabalho, neste texto, das relações entre o poder e a imprensa no Brasil, da forma pela qual você pode testemunhar.
Mino Carta: Certo.
Paulo Henrique Amorim: Você milita na imprensa brasileira já há algum tempo.
Mino Carta: Desde sempre.
Paulo Henrique Amorim: Desde sempre. E a minha pergunta é a seguinte: o seu balanço - se você se permitiu neste livro fazer um balanço - seu balanço é que nós melhoramos ou pioramos e por quê?
Mino Carta: Posso apenas concluir a resposta anterior?
Paulo Henrique Amorim: Claro, por favor.
Mino Carta: Não, eu queria dizer que essa invasão dessa arte nova, dessa virtualidade desenbestada etc e tal...
Tão Gomes Pinto: Novas tecnologias...
Mino Carta: ... só aproveita a criação de mais "medalhões", eu acho. Quer dizer, é a transformação, no plano virtual, da aplicação da "teoria do medalhão".
Tão Gomes Pinto: Quer dizer, as fontes, os mandarins, os sacerdotes continuam dirigindo...
Mino Carta: Eles vão transferir para o plano virtual...
Tão Gomes Pinto: Esse poder?
Mino Carta: Esse poder, essa receita.
Tão Gomes Pinto: Você não acha que há uma democratização?
Mino Carta: Não. Eu acho até que no Brasil não tem democracia, imagina você! Mas para responder a ele [apontando para Amorim], o balanço. Bom, o balanço. Eu acho que piorou, piorou bastante. Claro que melhorou do ponto de vista tecnológico, não é? Houve um avanço tecnológico extraordinário. Eu me espanto ao verificar que a minha modesta redação, a Carta Capital, está toda computadorizada. Estão todos no computador.
Paulo Henrique Amorim: Menos você!
Mino Carta: Menos eu, naturalmente.
Paulo Henrique Amorim: Eu vi no...
Mino Carta: Eu ainda lido com uma velha Olivetti [famosa marca de máquinas de escrever].
Reinaldo Azevedo: Por que naturalmente, Mino? Por que naturalmente?
Mino Carta: Porque eu sou um pobre velho [risos, close em Azevedo, que abre os braços consternado e depois ri], infeliz e incapaz, um coitadinho, entende? Não dá, é uma coisa mais forte do que eu! É superior às minhas forças.
Reinaldo Azevedo: Você tem e-mail?
Paulo Henrique Amorim: Mas Mino, por que você...
Mino Carta: Não, eu não tenho e-mail. Mas eu não tenho nem secretária eletrônica, quer dizer, então, eu me espanto até com televisão, imagine você!
Ziraldo: Acaba a resposta dele, a resposta do Paulo Henrique.
Mino Carta: Pois é.
Paulo Henrique Amorim: Mino, piorou por quê? - eu faria aqui uma segunda pergunta embutida nesta -, mesmo depois do regime militar?
Mino Carta: Não, sobretudo depois do regime militar, porque eu acho que a tragédia brasileira desaba realmente em 1964. Acho que o Brasil estava encaminhado para um processo qualquer de modernização. Aliás, Machado, na "teoria do medalhão", conta que o pai diz ao filho também: "Seja a favor da modernidade, mas nunca a aplique" [risos]. Então, é um pouco assim, entende? Nós somos a favor da modernidade, a modernidade ficou no... Bom, 1964 é a tragédia, tem um processo encaminhado...
Paulo Markun: Mas depois disso nós não passamos... Eu estou no jornalismo há trinta anos, então quando eu comecei a imprensa vivia sob censura.
Mino Carta: Sim, claro.
Paulo Markun: Todos os jornais! Depois de alguns jornais saírem da censura, manteve-se na Veja, n´ O Pasquim, no Opinião, nas televisões, e finalmente se acabou. Nem isso você acha que melhorou? O fato de termos hoje liberdade de imprensa para noticiarmos o que quisermos, publicarmos o que bem entendermos...
Mino Carta: Publicarmos o que quisermos não quer dizer falarmos bem do governo e das autoridades constituídas...
Paulo Markun: Mas uma publicação...
Mino Carta: ...e eventualmente silenciarmos a respeito das informações que deveriam ser dadas.
Paulo Markun: Mas a revista Carta Capital não faz isso?
Mino Carta: A Carta Capital... [sendo interrompido]
Paulo Markun: Está nas bancas.
Mino Carta: A Carta Capital é uma boa lembrança. Está nas bancas, mas a Carta Capital é um excelente exemplo, porque a Carta Capital, embora quinzenal - graças a uma equipe valente que eu apenas dirijo, mas tem gente lá de altíssimo nível e eu acho até que tem lá jornalistas bem melhores do que eu - a Carta Capital fura o jornalismo diário com informações que não têm segmento.
Paulo Markun: Sim, mas se nós estivéssemos no regime militar, estaríamos...
Mino Carta: A penúltima capa da revista Carta Capital, ou ante-penúltima, agora eu já não lembro, havia uma reportagem sobre mazelas sérias envolvendo figurões da República que mexem com o tal anexo quatro, enfim, movimentos entre Cayman e o Brasil. Quem falou disso? Ninguém! Agora, foram desmentidas as informações? Não, não, o que é isso! Então, acredito que sejam verdadeiras.
Reinaldo Azevedo: Mino, eu queria uma declaração sua, queria que você explicasse, na verdade, porque aqui para mim não ficou claro [lendo uma afirmação de Carta na mesma entrevista à revista República]: "Se compararmos o Brasil de hoje com o de 25 anos atrás, quando Vlado Herzog morreu, aquele era muito melhor, por incrível que pareça”.
Mino Carta: É, eu acho.
Reinaldo Azevedo: Eu queria que você... Evidentemente você não tem saudade de ditadura.
Mino Carta: Não, absolutamente, mas eu acho que nós tínhamos uma enorme esperança. A morte do Vlado é um momento terrível e decisivo na minha vida, devo dizer. Porque eu, naquele momento... Eu virei jornalista porque sou brasileiro, porque virei brasileiro. Porque, se eu tivesse ficado na Itália ou em qualquer país da Europa, eu não seria jornalista. Agora, no Brasil senti realmente a utilidade, a serventia, e senti nesse momento. Porque até, digamos, Veja, eu tinha trabalhado trabalhado como um profissional, entende? E assim, como...
Reinaldo Azevedo: Entendi.
Mino Carta: Sim, exatamente. E assim trabalhei no Estado [O Estado de S. Paulo], no “Estadão”, onde eu fui muito bem tratado e foram certamente os melhores patrões que eu tive. Mas eu tinha uma função técnica, a opinião era a do jornal. Quando eu fui para a Veja, até pelas lacunas, pela falta de um ideário claro por parte dos meus patrões - os quais, se tivessem conhecido o Brasil não teriam publicado aquela revista, até porque três meses depois da saída da revista desabou sobre o país o AI-5. Então, não era exatamente o momento ideal para fazer aquilo, e se fez foi porque eles não tinham uma clareza quanto ao que era exatamente o país, os rumores que o percorriam, a história...
Reinaldo Azevedo: Só para contar, você tinha ou você também não tinha? É uma pergunta minha, eu não estou te sacaneando. Você tinha essa clareza e você deixou ocorrer, ou você também não tinha?
Mino Carta: Não, eu tinha essa clareza, eu conhecia o país, eu cheguei aqui com doze anos.
Reinaldo Azevedo: Você estava ali falando: "Ih, isso não vai dar certo!"
Mino Carta: Não. Não é que não vai dar certo. Aliás, no livro está contada essa história, quer dizer, o Mercúcio Parla é advertido por seus amigos: "Olha, cuidado, isso aqui..." Mas era tão tentadora a oportunidade, por que fugir de uma situação? Eu normalmente não tiro o time de campo. Sou um gramsciano [em referência a Gramsci]: pessimista na inteligência e otimista na ação. Vou em todas as bolas.
Paulo Henrique Amorim: Mas, Mino, por que o episódio do Vlado foi decisivo na tua vida?
Mino Carta: Não, foi decisivo porque aquilo realmente me tocou muito, a bestialidade do evento, entende? A ferocidade... Então, quer dizer, no fundo cristalizou um processo que corria dentro de mim, e me levou à convicção de que jornalismo, no fundo, tem um sentido e que isso te ajuda a, pelo menos, fornecer elementos para que algum dia a história escrita pelos vencedores possa ser corrigida.
Paulo Henrique Amorim: Mas voltando ao tema do Markun...
Mino Carta: Essa é a questão, porque essa idéia de que a história é sempre escrita pelos vencedores é uma idéia que tem o poder de me irritar sobremaneira.
[...]: Muito bom, muito bom! Parabéns, Mino [Carta sorri].
Paulo Markun: Mino Carta, Paulo Rogério Lentiole, de Vila Antonieta, aqui em São Paulo, gostaria que você falasse um pouco sobre ética na impressa. Ele pergunta: "Existe ou não?" E diz: "Eu, como estudante de jornalismo, acho que falta essa matéria no curso" [Carta ri].
Mino Carta: Eu não sei, viu. Esta história de ética é uma história complexa. Acho que a ética é uma coisa automática, a gente aprende quando nasce, aprende com os primeiros exemplos, aprende no primário.
Paulo Markun: Vivendo em sociedade?
Mino Carta: Vivendo em sociedade. E há coisas óbvias. O problema é que, infelizmente, o país vive também, entre outras crises, uma crise moral. Eu acho que nossa sociedade... quando eu digo sociedade, digo de quem pode comer carne todos os dias, proteínas, consumir proteínas todos os dias; não falo, evidentemente, do povo brasileiro, que não é nem melhor e nem pior que tantos outros, que todos os outros, porque não existem povos melhores ou piores. Infelizmente, o povo brasileiro está ainda vivendo uma espécie de escravidão, se não for escravidão mesmo, não é? Agora, essa turma que vive entre razoavelmente e bem demais é uma turma que trafega na vida como... sabe o jacaré sobre a pele da água com os olhos observando para ver onde será o próximo golpe, o próximo bote, onde ele o dará? É por aí. Eu acho que nós vivemos um período moralmente muito medíocre, não é?
Paulo Markun: Nesse rio, com jacaré navegando para lá e para cá, o que o jornalista é ou deve ser, na sua opinião?
Mino Carta: É o que eu dizia há pouco, eu acho que o jornalista deve se preocupar em realmente fornecer elementos para que algum dia a história não seja... para que a versão dos vencedores, dada pelos vencedores, seja eventualmente contestada.
Paulo Markun: Mas se a gente olha os jornais, a chamada grande imprensa, e fizemos uma vasculhada aí nos últimos três, quatro, seis meses, veremos nas primeiras páginas diversas denúncias contra elementos do governo, contra autoridades...
Mino Carta: Sim, mas sempre denúncias menores - pelo menos, na maioria dos casos - em cima de assuntos menores. Nos interessamos muito, por exemplo, por Wanderley Luxemburgo [o então técnico da seleção brasileira de futebol foi acusado naquele ano de receber comissões indevidas com a venda supervalorizada de jogadores. No mesmo ano, Luxemburgo também foi acusado pela Justiça Federal de sonegação de impostos no período de 1994 a 1997]. A história do Wanderley Luxemburgo nos deixa atordoados, não dormimos, perdemos o sono, é uma coisa triste; aliás, me entristece muito. Só que eu acho que o problema é muito mais em cima. O problema está no João Havelange [presidente da Fifa (Fédération Internacionale de Football Association) entre 1975 e 1998, ano em que foi eleito presidente de honra da Federação], está no Ricardo Teixeira [presidente da CBF (Confederação Brasileira de Futebol) a partir de 1999 e ex-genro de Havelange], está na velhacaria e na corrupção desses cartolas. E nós nos preocupamos com Wanderley Luxemburgo. Não digo que Wanderley Luxemburgo seja uma flor, mas enfim, ele é o peixe pequeno. Então, é sempre o peixe pequeno.
Ziraldo: Posso fazer uma observação, Mino? Eu acho assim, que, no Brasil, pobre e rico se ferram! É só Georgina [Georgina de Freitas, ex-procuradora do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), presa por participar de um esquema de desvio de verbas da Previdência], o Wanderley... Agora rico, rico, pode ficar tranqüilo que não pegam. Cadê o Chico Lopes [presidente do Banco Central por apenas 21 dias, em janeiro de 1999, que participava de um esquema de venda de informações privilegiadas de juros e câmbio aos irmãos Sérgio e Luiz Bragança, Rubens Novaes e ao dono do banco Marka, Salvatore Alberto Cacciola. O dinheiro que financiava o esquema saía de uma conta do Bank of New York, por ordem de uma subsidiária do Banco Pactual nas Bahamas, famoso paraíso fiscal. Lopes, na época, foi demitido com alegações de que conduzira mal a política cambial de desvalorizalção do real. Durante as investigações, foi encontrada no apartamento de Lopes uma carta manuscrita por Sérgio Bragança, na qual ele afirmava ser o depositário fiel de cerca de um milhão e seiscentos mil dólares em contas de Lopes no exterior] por exemplo, com aquele um milhão e meio de dólares lá, declarado no exterior em nome do outro?
Mino Carta: Sim, sim.
Ziraldo: Então, trabalham em cima dos pobres que ficaram ricos. O rico pode ficar mais rico ainda, entendeu?
Mino Carta: É. Sempre, sempre.
Reinaldo Azevedo: Posso tentar organizar o dissenso de novo? Esta imprensa pós-ditadura derrubou um presidente da República, cassou um senador de maneira inédita na história da República, cassou um bando de deputados ligados à CPI do narcotráfico... No meu entendimento, aí eu gostaria de te ouvir também, acho até que peca por excesso de denuncismo, porque há um vaso comunicante hoje entre Ministério Público e imprensa dos mais incômodos, porque o Ministério Público planta lá a denúncia na imprensa antes mesmo desse troço ter qualquer indício de veracidade, e isso sai, e a honra das pessoas é jogada na lama e não se recupera mais, não adianta. Essa imprensa é tão ruim assim? A imprensa que derruba um presidente... [sendo interrompido]
Paulo Henrique Amorim: Desculpe, Reinaldo, isso o quê? Porque o Ministério Público faz um conjunto de denúncias.
Ziraldo: Pois é, qualquer censura ao Ministério Público me deixa estarrecido...
Paulo Henrique Amorim: Qual tipo de denúncia que você acha que é...?
Ziraldo: Você consegue chegar... A primeira conquista da democracia é o Ministério Público e ele quer denunciar o Ministério Público, rapaz? Pelo amor de Deus, você está a serviço de quem?
Reinaldo Azevedo: Não, não, não... Escuta, eu não acho que nem o Ministério Público, nem coisa nenhuma está acima de qualquer suspeita... não está também. Só estou dizendo o seguinte: essa imprensa derrubou ou não derrubou um presidente da República?
Mino Carta: Eu posso...? Achei ótima...
Reinaldo Azevedo: Cassou ou não cassou?
Mino Carta: Olha, achei ótima, estou encantado com essa sua referência a queda do... Eu vou lhe contar a queda do Collor.
Reinaldo Azevedo: Explique, sim. Por favor.
Mino Carta: Em fins de outubro de 1990, Collor não tinha ainda completado um ano de mandato - tinha sido empossado em março -, a revista IstoÉ, que eu então dirigia, publicou uma reportagem magistral assinada por Bob Fernandes que contava exatamente tudo, tudo, absolutamente tudo aquilo que o irmão do Collor declarou depois numa entrevista à revista Veja em abril de 92, ou seja, um ano e seis meses depois. Tudo, menos os supositórios de cocaína. Bem, essa reportagem caiu no vazio. Contava tudo sobre as relações entre PC Farias e o governo. Caiu no vazio. Por quê? Eu acho que caiu no vazio porque o pessoal de cima, que tinha agarrado no fio desencapado Collor - sabendo que se tratava de um fio desencapado, mas necessário, providencial até, para enfrentar o sapo barbudo Lula, para poder derrotá-lo, fazendo inclusive mil coisas fantásticas, mil mazelas, mil subterfúgios, mil coisas, mil retoques a debates e coisa similares, ajudando de todas as maneiras -,esses mesmos senhores não tinham ainda decidido derrubar o senhor Collor. Que o qual, porém, estava sendo...
Reinaldo Azevedo: Quem são os senhores, Mino? Eu sei, mas diz para o pessoal lá em casa quem são esses senhores! Quem são?
Mino Carta: Como "Diz para o pessoal lá em casa"? Os senhores são as pessoas que mandam no país.
Reinaldo Azevedo: Não, não, imagina.
Mino Carta: Era o governo, eram os empresários envolvidos com o governo, eram os donos da imprensa nativa, os donos da mídia e da comunicação em geral.
Reinaldo Azevedo: Muito bem, não deram atenção para a IstoÉ e depois?
Mino Carta: Não deram atenção, deram um ano e meio depois, por quê? Porque o rapaz estava cobrando um pedágio muito alto, 30%, 40%, os anteriores só cobraram dez, vinte, entende? Então, vamos... Mas eles não queriam derrubá-lo, não queriam derrubá-lo, você vai me desculpar, mas não queriam. Eles queriam adverti-lo, porque a tal CPI que se formou estava admitindo que, sem provas, não se conseguiria chegar a alguma coisa. E todo mundo dizia que não tinha provas, entende? E o próprio denunciante, o tal do Pedro Collor, dizia não ter provas. Então, a coisa ia morrer ali. Se a IstoÉ não descobrisse num trabalho de reportagem brilhante da sucursal de Brasília, orientada, diga-se de novo, pelo Bob Fernandes, que tinha dado uma dica preciosa que se revelou realmente certa, se confirmou.
Reinaldo Azevedo: Bob e o Lula também, não é?
Mino Carta: Hein?
Reinaldo Azevedo: E o Lula também. O Lula Marques também estava junto, não estava? Na coisa de achar o Eriberto.
Paulo Markun: Não, acho que era o Mino Pedrozo.
Mino Carta: Não, não. Havia três pessoas. A sucursal inteira trabalhou naquele episódio. Mas, enfim, eles foram atrás dessa indicação, era uma indicação, foram atrás, desenvolveram, acharam um motorista. Aí, com o motorista à mão, realmente a coisa ficou complicada.
Reinaldo Azevedo: Agora Mino, eu estava no [...], era uma histeria para achar provas e não existiam, não tinham provas!
Mino Carta: Eu quero lhe lembrar, quero lhe lembrar... Hein?
Reinaldo Azevedo: Era uma histeria nas redações dos jornais, eu estava num grande jornal na época em busca das provas até que vocês conseguiram.
Mino Carta: Mas é claro, eles estavam em busca das provas e não estavam achando.
Reinaldo Azevedo: Ninguém acendeu o sinal verde: "Vai lá e agora pega". Não foi assim!
Mino Carta: E a CPI ia se encerrar sem nada, sem... E o senhor Collor continuaria governando e concluiria seu mandato tranqüilamente. O Prêmio Esso de Jornalismo, que aliás, oferece oportunidades para acertos fantásticos embaixo do pano, por trás das cortinas e tal, porque [é] "eu dou essa coisa para você e você dá essa coisa para mim e no ano que vem que vem você vai ganhar" etc e tal, nós sabemos como é que funciona este negócio. Então, o Prêmio Esso foi dado à revista Veja, quando obviamente deveria ser dado ao pessoal da sucursal de Brasília da revista IstoÉ. Seria assim em qualquer país do mundo. Não é aqui, porque aqui nós temos a elite mais feroz, mais determinada, mais resistente do mundo. E, referindo-se à sua pergunta, com referência à sua pergunta de há pouco sobre porque no tempo de Vlado, [quando] nós estávamos no fundo, era um tempo melhor, por quê? Porque estávamos cheios de esperança, acreditávamos que no dia em que raiasse o sol da liberdade, seria liberdade mesmo. E olha, não raiou sequer a lua. Aqui a névoa é espessa. Aliás, graças a Fernando Henrique Cardoso, conseguiu-se formar a aliança de direita mais determinada, mais compacta de todos os tempos da história do país, debaixo da égide desse santo.
Reinaldo Azevedo: Que pode ser denunciada por aqueles que quiserem denunciar, o que não se poderia na época do Vlado.
Mino Carta: Não, não. Podem denunciar o que bem entenderem, mas nas questões substantivas não acontece absolutamente nada.
Reinaldo Azevedo: Mas não é a sociedade que tem que fazer as questões substantivas Mino?
Mino Carta: Hein?
Reinaldo Azevedo: Não é a sociedade que tem que fazer as questão substantivas, Não o jornalismo?
Mino Carta: Mas como se a sociedade é completamente manipulada, se a "teoria do medalhão" funciona tão admiravelmente neste país.
Reinaldo Azevedo: Mas funciona nos partidos, nos sindicatos, no...
Mino Carta: Eu acho que funciona em geral, eu acho que hoje, neste exato instante, o único movimento que me parece digno de algum respeito é o MST [Movimento dos Sem Terra].
Ziraldo: Mino, eu queria falar um pouquinho sobre a sua personalidade, quer dizer, porque a gente está entrevistando... Esta visão do Brasil que você tem, que me faz ter também uma admiração quase tão grande por você como tem o Tão, e o Nirlando Beirão [close em Carta rindo], que te chamou - Nirlando é adjetivoso como ninguém - o Nirlando e o Tão estão na sua lista. Aliás, por acaso, aqui na... você foi capa da minha revista [mostra a capa da revista Bundas, em que Mino Carta aparece em uma montagem com dois chifres de diabo e uma auréola de anjo].
Mino Carta: O que é isso? [Risos] Não, espera aí! Posso levantar?
Paulo Markun: Pode, pode.
Mino Carta: Posso trafegar pelo estúdio?
Paulo Markun: Graças ao microfone sem fio!
[Carta levanta-se da cadeira e vai até Ziraldo pegar o exemplar de sua mão, a fim de ver com mais detalhe, retornando logo ao seu lugar no centro da roda]
Mino Carta: Ah, sim. Puxa Vida!
Ziraldo: Estou falando sobre o negócio da personalidade.
Mino Carta: Mas é um demônio santo, não é?
Ziraldo: Não. É. É anjo e demônio.
Paulo Markun: Se você enquadrar, já que estamos no departamento de mostrar a revista do...
Mino Carta: O que é que eu faço? [Carta vira a capa do exemplar, antes voltada para si, para uma das câmeras do estúdio. Ao lado da foto de Carta, aparece o título da matéria "Quem tem medo do Mino Carta?"]
Paulo Markun: Até aí. Aí está bom. [Dando as orientações sobre a inclinação para Carta exibir a entrevista, de modo a não ter reflexos dos refletores do estúdio].
[...]: Assim.
Paulo Markun: Beleza.
Ziraldo: Pois é. Vocês podem cumprimentar amanhã a entrevista de hoje lendo a Bundas. Mas quero dizer o seguinte, porque tem um... "Quem tem medo do Mino Carta?" E essa coisa... nós transformamos você em "meio anjo, meio demômio". Quer dizer, eu acho, aí estou falando da sua personalidade, acho que é um pouco uma imagem que você gosta de cultivar [Carta ri]! Eu gosto da sua coragem e admiro muito essa coisa de você falar que o Brasil que te fez jornalista porque você chegou: "Aqui eu tenho que ser jornalista porque este país precisa dessa coisa"...
Mino Carta: É.
Ziraldo: Quero dizer que vocês três, o Paulo Henrique Amorim, o Tão e o Nirlando Beirão, são citados nesta entrevista como um dos três maiores jornalistas que o Mino conheceu.
Paulo Henrique Amorim: Obrigado, obrigado.
Tão Gomes Pinto: Muito obrigado.
Ziraldo: Agora, o Nirlando...
Mino Carta: Mas têm outros que eventualmente não privam comigo!
Ziraldo: Sim, mas estou falando desses. Mas o Nirlando...
Mino Carta: Mas esqueci, certamente muitos.
Ziraldo: Mas o Nirlando gosta muito de elogiar quem tem poder, ele é fascinado por quem tem poder [risos]. Outro dia ele deu uma lambida no Waltinho Moreira Salles [Walter Moreira Salles Jr., cineasta, diretor de Central do Brasil. Filho de Walther Moreira Salles (1912-2001), fundador do Unibanco] que eu fiquei estarrecido, mas agora o que ele fez em elogio a você no artigo que eu li aqui na internet é estarrecedor! Então, ele acaba te fazendo um elogio que eu acho que você não deve gostar muito. Eu queria saber o seguinte, duas coisas só, falando da sua personalidade, você gosta de que tenham medo do Mino Carta? E segundo, você é um rochedo de convicções? Não é possível, eu acho que você é um mar de dúvidas, eu queria... gosto muito mais dessa coisa maleável.
Mino Carta: Agradeço muito.
Ziraldo: E o Nirlando te chama de rochedo de convicções, Mino. Você virou um ditador e um autoritário, o que você acha? Você gosta de que tenham medo de você? Você é um rochedo de convicções?
Mino Carta: Não. Não. Primeiro, não gosto de que tenham medo, mas eu espero que ninguém tenha medo, em primeiro lugar. Não gostaria de causar medo. E, em segundo lugar, eu sou uma dúvida ambulante [risos]. Agora, em relação a certas coisas não há como escapar à convicção.
Ziraldo: Claro, claro.
Mino Carta: Entende? Por exemplo, se eu falo dos manda-chuvas do país, se eu falo dos donos do poder, como diz Raymundo Faoro [(1925-2003), autor de Os donos do poder, obra que critica a herança patrimonialista brasileira], eu tenho a convicção de que eles são os responsáveis pela situação que estamos vivendo, que é um situação terrível, as pessoas fingem que não, que não é com elas, entende? São Paulo e Rio estão entre as cinco cidades mais violentas do mundo, emparelhadas com Cali, Medellín, uma cidade da Cisjordânia...
Paulo Henrique Amorim: Ramallah.
Mino Carta: É, Ramallah.
Paulo Henrique Amorim: Isso.
Mino Carta: Quer dizer, cinco cidades... Esta é a situação, existe uma guerra civil não declarada, mas claradamente...
Ziraldo: Morre mais gente em São Paulo do que no Oriente Médio.
Mino Carta: Sim, entre São Paulo...
Paulo Henrique Amorim: Em Ramallah é igual.
Mino Carta: E...
Paulo Henrique Amorim: Em Ramallah é igual.
Ziraldo: É igual?
Paulo Henrique Amorim: É.
Tão Gomes Pinto: Mino, uma pergunta, aquela guerra civil...
Mino Carta: E chegamos a esta situação como? E as pessoas fingem que não vêem, mas é como se pretendessem passar na frente da favela e se acostumar tanto com a paisagem que te parece normal que ela esteja lá. E é assim, entende? Todos os nossos números nestes últimos seis anos pioraram, com exceção da inflação, que realmente foi domada, e graças a um plano certamente inteligente, mas exposto, talvez que, quem sabe, devesse ter recebido uns retoques, exposto a problemas, a chuvas e trovoadas, mas de qualquer maneira é discutível isso. E a mortalidade infantil, que realmente teve uma melhora nesse número. Todos os outros números estão piores, muito piores.
Paulo Henrique Amorim: Mino, já que estávamos falando de Machado de Assis e, para não dar a impressão que você é um Casmurro [personagem narrador do livro Dom Casmurro, de Machado de Assis], o livro O castelo de âmbar também tem perfis de personagens emocionantes, pessoas de quem você genuinamente gosta e elogia...
Mino Carta: Claro.
Paulo Henrique Amorim: ... de forma quase tão transbordante quanto o Nirlando Beirão. Eu me lembro, por exemplo, que você fala do Raymundo Faoro como um profeta.
Mino Carta: Sim.
Paulo Henrique Amorim: Sei que nessa categoria de pessoas que você admira e que foram importantes na sua vida tem também o Cláudio Abramo, jornalista como nós. Por que você não fala um pouco do Faoro e do Cláudio?
Mino Carta: Bem, o Faoro, eu conheci, na verdade quando eu sai da Veja, ele me ligou solidarizando, eu já tinha lido...
Paulo Henrique Amorim: Você não o conhecia?
Mino Carta: Não, não. Toca o telefone, do outro lado está o senhor Raymundo Faoro. Aí, acabei conhecendo quando ele já presidia a OAB [Ordem dos Advogados do Brasil] e almoçávamos bacalhau no [...], no Rio de Janeiro, e eu fiquei encantado com a ironia, com a ironia do desabusado, do cético desabusado. E um homem de extrema coragem e profeta, por quê? Ele próprio explica, na entrevista que ele deu ao Bob [Fernandes] e a mim, recentemente, que está na capa da última...
Paulo Henrique Amorim: Nesse número?
Mino Carta: Exato, da última Carta Capital. A primeira etimologia da palavra, o significado da palavra é mensageiro. Mensageiro que vinha para criticar uma situação. E ele é profeta nesse sentido, porque na verdade ele escreveu um livro tão admirado... Aliás, escreveu dois livros, ambos admiráveis, um deles é o Pirâmide e o trapézio [Raymundo Faoro é autor de Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio], que diz respeito ao Machado, quer dizer, é uma análise de política mostrando como Machado era um crítico de costumes formidável, e como ele via o país, como, de alguma forma, ele também era um profeta, porque antecipava as coisas ao fazer uma leitura correta que os contemporâneos não sabiam fazer. E isso pode ser dito também, sobretudo, até desse ponto de vista, em relação a Os donos do poder, que é uma reconstituição dos caminhos, dos caminhos do poder entre Portugal e Brasil, da Dinastia de Avis [reinou em Portugal de 1385 a 1580] a Getúlio Vargas. Mas você tem aí os elementos para imaginar o que acontecerá depois. Você já sabe, se você faz uma leitura correta do livro você chega lá. Quanto ao Cláudio, o Cláudio eu conheci menino, mal tinha chegado aqui e meu pai trabalhava no Estado [O Estado de S. Paulo] e escrevia todos os dias um artigo, porque meu pai dirigia a seção internacional do "Estadão" e esse artigo era uma espécie de súmula do dia, intitulava-se... era uma rubrica intitulada de um dia para o outro. Escrevia em italiano, tínhamos chegado há meses. E o Cláudio foi chamado para trabalhar no Estado, porque era um moço muito promissor e tal, todo mundo sabia que o garoto daria certo. Mas além disso, porque ele era filho de italianos, sabia perfeitamente italiano e traduzia meu pai, e foi neste tempo que nós ficamos amigos. E eu acompanhei muito o Cláudio, tinha grande admiração por ele, sempre tive, acho que foi o maior jornalista brasileiro dos últimos cinqüenta anos, talvez 225. [Risos]
[...]: Talvez Cláudio, Líbero Badaró e...
Mino Carta: Parafrasendo...
[Falam simultanemante]
Tão Gomes Pinto: Deixo eu colocar, você disse que o Mesquita foi um dos melhores patrões.
Ziraldo: Já falamos disso três vezes, não é? Aqui, aqui e no livro.
Mino Carta: Sim, sim.
Tão Gomes Pinto: Agora, aqui está no seu livro [lê um trecho do livro]: "Ao morrer, Alberti..." - Alberti é o Cláudio Abramo - "... leu-se, entre outras, estampada no arauto" - que é o "Estadão" - "a afirmação de que ele fora um grande repórter".
Mino Carta: Sim.
Tão Gomes Pinto: Ponto final.
Mino Carta: Sim.
Tão Gomes Pinto: O "Estadão" reduziu Alberti, Cláudio Abramo, à função de um grande repórter.
Mino Carta: Sim, essas coisas são coisas tristes, são coisas lamentáveis, mas eu me dei muito bem com os Mesquita enquanto trabalhei lá, e eles se portaram sempre muito bem comigo, era um tempo que eu me considerava um profissional, entende? As idéias deles não batiam com as minhas... Eu devo confessar que, ao regressar ao país em 60, eu tinha um certo ceticismo, digamos, um certo pessimismo na inteligência em relação à esquerda brasileira. Nunca confiei muito, eu confesso. Embora tenha enorme admiração por alguns esquerdistas brasileiros, por exemplo, Marighella [Carlos Marighella (1911-1969), jovem militante nos tempos da ditadura, filiado ao Partido Comunista do Brasil, morto a tiro em emboscada no centro da cidade de São Paulo], uma pessoa pela qual eu tenho grande admiração.
Reinaldo Azevedo: Pela coragem pessoal?
Mino Carta: Pela coragem pessoal, por algumas idéias que ele teve, que já eram meio antigas, talvez. A idéia da guerrilha urbana, por exemplo, inaplicável no Brasil... Mas, enfim, era uma pessoa séria, corajosa e disposta a ir até as últimas conseqüência. E houve muitos, diga-se, como ele...
Reinaldo Azevedo: E o Lula?
Mino Carta: ... ou então intelectuais como Caio Prado [Caio da Silva Prado Junior (1907-1990), geógrafo, historiador e escritor. Foi professor da Universidade de São Paulo, pertenceu à Aliança Nacional Libertadora de São Paulo e, posteriormente, foi eleito deputado estadual pelo Partido Comunista Brasileiro. É autor de importantes livros como Formação do Brasil contemporâneo], o Caio Prado que... enfim, mas eu acho um protótipo perfeito desses esquerdistas de quem eu desconfiava...
Reinaldo Azevedo: Mino, deixa eu te fazer uma pergunta precisa...
Paulo Henrique Amorim: Quem era, Mino?
Mino Carta: O Fernando Henrique Cardoso, entende? [Risos] Porque eu, desde que vi o Fernando Henrique, senti nele essa coisa... [sendo interrompido]
Reinaldo Azevedo: Mas nunca foi de esquerda, não é, Mino? A teoria da dependência não é de esquerda. Eu quero que alguém me prove que a dependência é uma tese de esquerda. Foi um erro brutal.
Mino Carta: Mas escuta, o primeiro livro dele, que é aquele sobre...
Reinaldo Azevedo: Sobre o escravismo...
Paulo Henrique Amorim: Escravidão no Brasil meridional [Capitalismo e escravidão no Brasil meridional - O negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul, 1977].
Mino Carta: No prefácio está escrito: "Eu usei aqui o método dialético marxista", prefácio escrito por ele. Quando ele me disse que, já nesse tempo, ele misturava Karl Marx com Weber, ou seja, 61, 62, eu disse ao Fernando Henrique: "Escuta, mas no prefácio, eu me lembro que estava escrito assim". Ele disse: "Não, não, mas na segunda edição eu tirei a referência!". [Risos]
Reinaldo Azevedo: Mino, você citou o Cláudio Abramo, que era marxista, mais propriamente trotskista e, portanto, tinha um marco claro de economia política que a gente conhecia, não é? E creio que, um dos últimos textos, senão o último que ele escreveu, um textinho lá na Folha, chamava "Culpa dos oprimidos", em que ele estava meio com saco cheio, acho que você lembra do texto, meio assim: "Olha...". Meio assim: "Desisto do povo, não dá e tal".
Mino Carta: Sim, era um desabafo...
Reinaldo Azevedo: Tomei aquilo como um texto assim, antecipando a morte, porque na verdade morria ali a esperança, também, de qualquer revolução e tal.
Mino Carta: Sim, sim.
Reinaldo Azevedo: Qual é seu marco? Você é marxista? Seu marco é de classe? Quando você fala dos poderosos, eu queria entender, é de classe social que você fala?
Mino Carta: Quando eu trabalhei na Itália, porque eu saí daqui...
Reinaldo Azevedo: Porque tem poderosos, como meu amigo Nirlando lambe, mas tem outros poderosos, também, que a imprensa de esquerda lambe, que são poderosos também. O MST é muito poderoso e a imprensa lambe o MST também, não é mesmo?
Ziraldo: Poderoso? [Risos]
Reinaldo Azevedo: Não? Eu te provo por números daqui há pouco.
Ziraldo: Quem sabe é o Mino.
Reinaldo Azevedo: Eu quero saber, o marco é marco de classe social?
Mino Carta: Não. Não vamos nos perder pelo...
Reinaldo Azevedo: Não, não. Você é marxista, Mino?
Mino Carta: Não, acho que Marx é um grande filósofo, um pensador notável. Eu aprecio muitas coisas de Marx, mas não sou marxista nesse sentido. Agora, quando eu estive na Itália, os meus amigos todos eram do Partido Comunista e, então, eu me liguei muito a eles. E cheguei aqui com idéias comunistas, comunismo italiano, que sempre foi um... Eu sou profundamente gramsciano; não sou marxista, sou um gramsciano.
Reinaldo Azevedo: Gramsci seria mais otimista na situação do Brasil atual, não seria?
Mino Carta: Na visão, no Brasil atual?
Reinaldo Azevedo: É.
Mino Carta: Mas, meu caro, eu sou muito otimista. A longo prazo.
Reinaldo Azevedo: A longo prazo? [Risos]
Mino Carta: Agora, eu gostaria de assistir [risos]. Eu gostaria de assistir a essa transformação fantástica, entende?
Reinaldo Azevedo: Mas você está fora do cárcere.
Mino Carta: Todos nós gostaríamos. Não. Eu, evidentemente, o meu tempo é curto, as clãs demonstram isso, provam largamente, mas eu gostaria que sobrasse para os meus netos e eu tenho dúvidas que sobrem para eles. Eu acho que temos que começar a pensar em cem anos. Aliás, a gente que sabe fazer esses cálculos fala em cem anos para poder recuperar o país de tantos erros.
Ziraldo: É o que começou em 64, não é? O que começou em 64 vai demorar cem anos ainda.
Mino Carta: Não, se é por isso começou... começou com a independência, na verdade...
Tão Gomes Pinto: Começou com a libertação dos escravos.
Mino Carta: ... porque o Líbero Badaró, que você [dirige-se a Tão] tanto admira, viveu aqui nesse tempo. O Brasil era pouco independente. Começou e continuou. Agora, realmente em 1964, até em função da industrialização, até em função de Volta Redonda, de uma séria de coisas que estavam acontecendo, da Petrobras, o país estava tomando um certo rumo, talvez até daí surgisse um proletariado, um proletariado consciente da sua condição de proletariado. Porque você não cria grandes partidos de esquerda, eficazes, porque o problema da nossa esquerda foi também que ela sempre foi muito ineficaz. Mas partidos de esquerda tem que ter o caldo de cultura de um proletariado disposto. A decepção do Cláudio [Abramo] era essa, entende? Não tem, não se formou um proletariado, você vai para São Bernardo, que se há um lugar do país onde deveria existir um proletariado [é ali] e, eventualmente, o [Paulo] Maluf ganha por lá, ou os homens do Maluf ou, enfim, o populismo mais reles, mais velhaco, não é? Então, é isso.
Maria Bonomi: Mino, você é pintor, não é? Eu estou aqui por causa disso, porque o resto passa, viu? Toda essa história... A grande alegria de ler “fui jornalista por causa do Brasil”. Então, nessa altura, Mino, que estava tendo um sucesso forte, jovem pintor Carlo Carrà [(1881-1966) pintor italiano, considerado fundador do futurismo], Sironi [Mário Sironi (1885-1961), pintor italiano modernista, grande nome do futurismo], estavam olhando para o Mino na Itália. Ele tinha ganhado prêmios na Itália importantes de pinturas, estava surgindo e, de repente, ele vem para cá, decisão de vida, de sobrevivência e, de repente, Sérgio Milliet [Sérgio Milliet da Costa e Silva (1898-1966), crítico de arte, fundou a revista Cultura em 1925 com Oswald de Andrade e Afonso Schimidt; criou, junto com Mário de Andrade e Paulo Duarte, o Departamento de Cultura de São Paulo], com quem ele priva, Portinari [Cândido Portinari (1903-1962), pintor modernista de maior repercussão mundial], Rebolo [Francisco Rebolo Gonsales (1902-1980), pintor paulitano modernista de grande participação na promoção do movimento artístico na cidade, tendo sido um dos fundadores do MAM - Museu de Arte Moderna de São Paulo], toda essa gente, você teve como interlocutores o Pietro Maria Bardi, [(1900-1999) nascido na Itália, fez carreira no Brasil como jornalista, historiador e expositor de arte, tendo sido fundador, ao lado de Assis Chateuabriand, do Masp], o Jacob Klintowitz [jornalista e crítico de arte brasileiro]...
Mino Carta: Que, aliás, está no livro! O Bardi está no livro e é um dos heróis do livro, é o professor.
Maria Bonomi: Pois é, e você teve grandes interlocutores.
Mino Carta: Sem dúvida.
Maria Bonomi: O Bardi, o Klintowitz, enfim, toda esta parte das artes plásticas te brindou com pessoas que te respeitam muito, te respeitavam e que criaram com você um tecido inexpugnável, que foi justificativa de você ter estado neste país, enquanto aquele outro setor era um setor que não soube apreciar, talvez, ou vai apreciar daqui cem anos - visto que a data é essa, que foi estabelecida [Carta ri]. O fato [é] que você nunca fez concessões, nunca; sempre teve uma grande lucidez, uma grande coerência, e talvez fosse um homem moderno, adiante do seu tempo. Então, de repente, você estava lidando com pessoas cuja origem eram as capitanias, não é? Eu acho que aí é que acontece o problema, não é em 1964. O Brasil se dividiu entre pessoas que ganharam as terras e que lutaram pelas terras. Os italianos imigrantes eram pessoas que não tinham tido capitanias e os outros imigrantes também. Este é o grande divisor de águas. Você continuou pintando, você tem uma carreira de artista considerável, exposições de sucesso, e eu ia te perguntar uma coisa que eu vivo pessoalmente muito forte, depois você vai me responder por que essa situação de dolore mezzo gaio [dor meio alegre]. Você sabe que existem também os patrões da arte, você sabe que existem também os patrões da cultura e, como tudo passa pela arte, pela cultura e pela educação, o resto se torna impossível. Depois vem o jornalismo, a política... Eu estava lendo Paul Virilio agora, 1977, Velocidade e política, é um livro fantástico. Tudo isso está lá atrás, está matado e, de repente, eu vejo você aqui hoje se debatendo com questões que deveriam pertencer ao passado. Eu não entendo como um patrão de um museu usa o museu para fins pessoais, e como um patrão de um jornal ou revista faça a mesma coisa. Então, essa é uma tendência que existe em todos os setores. Você luta contra isso numa área, eu em outra; a trincheira é a mesma.
Mino Carta: É verdade.
Maria Bonomi: Mas há pessoas tão inteligentes, inclusive eu faço aqui um... Há patrões que souberam que não era por aí e que lutaram do lado da verdade, porque discussão aqui é: a verdade ou a mentira. Quando você faz um trabalho jornalístico, e ele é verdadeiro, e cai no vazio... como você disse, nós fazemos um trabalho cultural todo dia e cai no vazio também. Então, essa questão que eu queria te perguntar. Essa generalidade de comportamento, essa linguagem comum, esses hábitos comuns: como você sente, como você pressente o espaço que é dado ao jornalista, que pode escrever - e, no fim, eu vejo que você não pode escrever o que você pensa, porque você incomoda. Você sempre pintou o que quis pintar, alguém te incomodou?
Mino Carta: [Risos] Não, não me incomodaram como pintor. Agora, como jornalista também eu sempre fiz o que eu achei que deveria fazer, e quando não deu para fazer mais, tirei o time de campo. Mas acho que há outros, há outros que fazem isso. O Paulo Henrique [Amorim], por exemplo, que está na minha frente, ele inclusive tinha um programa excelente na televisão, de informação, um programa diário, importante e o perdeu, não é? Agora está fazendo isso aqui na Cultura, graças ao bom Deus ou não sei a quem! [Close em Amorim rindo] Todos aqui se esforçam para fazer o seu serviço dignamente, e há outros em vários cantos, tirando, digamos... Carta Capital é uma coisa bastante compacta, como de resto a Bundas. São coisas que o órgão está tomando uma posição. Caros Amigos é outra publicação, cada um a seu modo, mas é gente que exercita o espírito crítico e fiscaliza o poder. Agora, você tem muitos colunistas, você tem articulistas, vários lugares, você tem às vezes economistas, professores de universidades que escrevem nos jornais, artigos críticos, artigos fortes, artigos que têm peso, não é? Agora, quando você se refere aos patrões da cultura, você se refere em geral aos donos do poder. São todos iguais, eu tive uma lida difícil, às vezes até dolorosa, com os patrões da imprensa, porque eu tinha amizade por eles eventualmente, entende? E aí o choque foi muito desagradável.
Maria Bonomi: Você não acha que era quase um problema de conversão? Porque eu dediquei muitos anos à conversão, eu faço um trabalho de catequese na área cultural [risos], das artes plásticas, permanente, me considero assim... uma freira, uma monja, eu vou lá, convenço, faço. Às vezes, quase surge um espaço para a gente, uma correspondência. Eu estou, no momento, até profundamente encantada com um jornalista que é um crítico de artes, o Daniel Piza, porque eu estou sentindo que ele vai passar por tudo aquilo que o Mino passou, que tanta gente passou, porque ele enveredou pela verdade assim batido, ele está indo, ele está indo, estou esperando só para ver o tiro...
Reinaldo Azevedo: Mino, na verdade é geralmente as pessoas que concordam com a gente ou existe uma verdade neutra, na sua opinião? É uma pergunta mesmo, eu sei, um pouco profunda demais, talvez, mas... [Risos]
Mino Carta: É profunda.
Reinaldo Azevedo: Geralmente não é verdade que quem concorda com gente, não... se são feita a matemática e olhe lá... aritmética?
Mino Carta: É uma pergunta profunda. Eu acho que existe uma coisa que se chama verdade factual e essa é indiscutível, não há o que discutir. Você está tomando água e este é um copo, você está usando gravata, entende? Então, isso é verdade factual e a verdade factual não se discute. Agora, o jornalista tem que ter essa fidelidade canina em relação à verdade factual, ao meu ver. Agora, no mais, exigir do jornalista a objetividade, para mim sempre foi uma besteira...
Reinaldo Azevedo: Você se diz gramsciano...
Mino Carta: Você tem que exigir do jornalista honestidade.
Reinaldo Azevedo: Você se diz gramsciano, você acha que o Gramsci, lá no cárcere, escrevendo e tal, diria que os patrões são todos iguais ou ele imaginaria uma tentativa de sair disso que acaba se constituindo... um dilema, não é? Porque se eles estão do lado de cá e são todos iguais, nós estamos do lado de lá e também somos, em princípio, todos iguais, não somos eles.
Mino Carta: Eu não acho que patrões são todos iguais e, como eu disse, eu tive, por exemplo, ótima relação com os senhores Mesquita, no Estado, era uma relação muito nítida, muito clara, eu tinha uma autonomia técnica total, fiz realmente o que bem entendi. Mas a opinião era deles, não era minha. Eu poderia discordar à vontade nos papos extra-jornal, no bar e tal, mas no jornal quem decidia eram eles. Depois eu tive grande amizade pelo Domingo Alzugaray, fomos amissíssimos, fizemos a IstoÉ juntos. Quer dizer, eu cuidava da parte editorial, ele cuidava da parte administrativa, financeira.
Tão Gomes Pinto: Garbos Chaves [personagem do livro que representa Domingo Alzugaray]?
Mino Carta: Garbos Chaves. Me dizem que ele está triste com meu livro, que não gostou [risos], a julgar pelo... Mas olha, é a tal história, o Garbos Chaves foi empurrando para fora, entende? Da revista. Ele queria que eu saísse quando, ele deu uma entrevista para, para...
Tão Gomes Pinto: Para a revista Imprensa.
Mino Carta: Para a revista Imprensa.
Tão Gomes Pinto: Jornalistas.
Mino Carta: Jornalistas, em que ele falava da IstoÉ sem me citar em nenhum momento. Uma entrevista grande, fluvial, em que ele afirmava os planos dele e tal: "Pá, farei isso, a IstoÉ vai por aqui e tal...". Era um recado claríssimo, todo mundo me disse: "Olha, está te dando um recado, você está fora desta revista, já está saindo". Se não me engano era abril, maio, de 1993.
Tão Gomes Pinto: Mino, eu queria...
Mino Carta: Quando eu cheguei a ele, ao cabo de muitos empurrões, e disse a ele: "Olha, Domingo, assim não dá, eu vou embora, tudo bem, não tem problema", ele aceitou na hora, não esboçou um mínimo gesto! [Risos] Agora, vamos e venhamos, eu fiz grandes bobagens em relação à IstoÉ, porque quando eu cismei com o Jornal da República e convenci o Domingo a fazer o Jornal da República e demos com os burros n´água rapidamente, por, eu acho, erros de ambos, porque ele não tinha calculado que a reação seria aquela, ele pensou que o Jornal da República teria o mesmo êxito que IstoÉ tinha tido e, depois, verificamos que não era assim, ele veio a mim e disse: "Vamos fechar este negócio". E disse: "Não, não, vamos...". A certa altura eu disse: "Não, não, então eu vou embora e te vendo a minha parte". E fizemos promissórias que depois ele, com incrível generosidade, rasgou e jogou fora, anos depois. Quando eu voltei à IstoÉ... que, aliás, quando eu fui trabalhar com ele na Senhor, que ele transformava de mensal em semanal e queria a mim para dirigir a semanal, ele me disse: "Olha, patrão, você, nunca mais! Você vai ser meu empregado". Eu achei perfeito, ele estava certo, porque eu realmente sou um desastre como empresário, entende? E a culpa de termos perdido a IstoÉ foi minha, e o Mercúcio Parla diz: "Perdemos essa e essa..."
Reinaldo Azevedo: Você acha que é fácil ser seu patrão, Mino? [Risos]
Mino Carta: Não, não sei, mas com o Domingo a relação...
Reinaldo Azevedo: É por aí que eu quero ir.
Mino Carta: Com o Domingo a nossa relação era excelente. Agora, eu não entendo como é que ele ficou chateado comigo. Agora, realmente...
[Falam simultaneamente]
Reinaldo Azevedo: Quem é patrão de Mino Carta, como é que faz?
Mino Carta: Deixa eu concluir.
Ziraldo: Eu não queria ser! [Risos]
Mino Carta: Deixa eu concluir, eu não contei nada inventado, o Domingo tinha um projeto para a editora dele, mais do que legítimo, ele queria fazer uma grande empresa. E fez, ele queria, esse era o projeto dele. Ele queria também uma televisão, talvez rádio, enfim, essas coisas, que...
Paulo Henrique Amorim: Mino, vamos tentar... deixa eu trazer você um pouco para o...
Mino Carta: Não, mas eu quero concluir essa parte, se você mo permite.
Paulo Henrique Amorim: Pois não, pois não, claro.
Mino Carta: "Mo permite" é boa! [Risos]
Paulo Henrique Amorim: Mo permite...
Reinaldo Azevedo: Finíssima língua portuguesa.
Paulo Henrique Amorim: Estamos em Machado [de Assis].
Ziraldo: Ele é doido por Machado.
Mino Carta: Eu não inventei nada! Agora, na hora que eu vou contar a vida do Mercúcio Parla eu devo contar isso, entende? Porque realmente foi uma coisa muito dolorosa e a IstoÉ, vamos e venhamos...
Reinaldo Azevedo: Porque não damos o nome real das pessoas, já que está todo mundo...
Mino Carta: ... quem a fez fui eu, eu e uma equipe. Aliás, eu não me canso de repetir que jornalismo é um trabalho de equipe.
[Falam simultaneamente]
Ziraldo: Por que você fez a Clefe, esse romance... Você adora quem descubra... o Richard Bitter - o Carlos, seu amigo, Carlos Richard Bitter, que deu com o maior cuidado, mandou até uma listinha para mim [erguendo as folhas de papel que portava].
Mino Carta: Que aliás está no livro.
Ziraldo: Ele mandou com todos... quer dizer, você fica fascinado quando as pessoas descobrem! Então, por que você não... Porque tem uma coisa, eu quero falar sobre você, eu digo o seguinte: você escrevendo esse romance, tem o que você chama de conto, é uma reportagem, você conta sobre toda a sua passagem pela Veja e toda sua relação com os Civita...
Mino Carta: Sim.
Ziraldo: Então, eu, o que eu queria falar com você sobre você é isso. Por exemplo, eu li, eu não acabei de ler seu romance ainda, está difícil de atravessar ele, eu falei para você que o conto eu gosto mais, porque é não literário [risos]. Então, por exemplo, você adora... eu gosto de ver você falar, essa coisa corrente de se falar, usar bem os adjetivos, mas você acha que tem duas maneiras diferentes de escrever. Por exemplo, só aqui [lendo texto que trouxera em uma folha avulsa]: “Dona Camomila foi por 25 anos secretária fiel e competente de Parla, e desenvolveu por ele uma admiração sem limites”. Isso é como você escreve o conto. Olha como é que você escreve o romance [lendo trecho do livro]: “Dona Camila foi de Parla secretária fiel e competente por 25 anos e por ele desenvolveu...". Você faz estilo! Quer dizer, existem duas maneiras de escrever? Existe uma maneira literária de escrever?
Mino Carta: Não, veja...
Ziraldo: Quer me explicar, Mino?
Mino Carta: Olha, a tua opinião eu respeito muito, agora eu vou explicar porque eu quis realmente usar três estilos diferentes, na verdade: o estilo do advogado, o estilo desse jornalista que quer escrever... [movimenta as mãos no ar como a expressar algo rebuscado]
[...]: Mercúcio.
Mino Carta: E o contrário, exatamente o conto, porque o conto é, digamos, não é a ficção... mas a ficção escrita com estilo jornalístico, seco.
Ziraldo: Então, você não tem pretensões literárias, de ser um escritor?
Mino Carta: Não, não. Eu acho que a língua tem que ser usada, acho que a língua portuguesa...
Maria Bonomi: Eu achei que era um grande roteiro de cinema, viu? [close em Carta rindo] Do jeito que está escrito aqui... É, totalmente visualizável como um filme...
Ziraldo: Espera aí, você não respondeu minha pergunta, Mino!
Mino Carta: Eu escrevi com três estilos diferentes. Quis escrever, se consegui isso, acho ótimo, porque era o intuito.
Ziraldo: É um exercício mesmo, no romance?
Mino Carta: Sim. Agora, me influenciou muito quando lia, porque te confesso que leio muito pouco hoje em dia. Mas quando eu lia me influenciou muito a literatura inglesa, por exemplo, Laurence Sterne, Dickens... são autores ricos, não é? Machado era um autor maravilhoso.
Ziraldo: Eu também acho.
Mino Carta: Desculpe, é uma linguagem riquíssima.
Tão Gomes Pinto: Mas Mino, mesmo a parte ficcional do seu trabalho, era toda ela calcada na realidade.
Mino Carta: Sim, calcada na realidade, com algumas fusões de personagens, entende? A minha história no Arauto, por exemplo, funde minhas experiência com as experiências do meu pai, que não era um ex-professor de história de arte.
Ziraldo: Pois é, escuta aqui, não era não?
Mino Carta: Era jornalista.
Ziraldo: O negócio é o seguinte, você fala do seu pai com uma grande admiração.
Mino Carta: É lógico.
Ziraldo: Um carinho imenso por ele e tal... na entrevista que você deu para nós isso transparece pelo que eu conheço você e, no entanto, poucas pessoas querem ser seu patrão ou querem ser seu pai, quer dizer, o que você tem contra a figura do cara que está sobre você? Você já fez uma análise para saber se você está brigando com seu pai quando você briga com seus patrões todos? [Risos]
Mino Carta: Você não acha que essa é a solução mais fácil, aí e tal...? [Risos]
Ziraldo: Freud americano. Freud para americanos!
Mino Carta: Eu acho, assim... acho porque, como você bem disse, eu sou um conjunto de dúvidas que anda sobre duas pernas.
Ziraldo: Graças a Deus!
Mino Carta: Sim, mas eu sou mesmo. Então, eu não tenho tantas certezas para afirmar coisas nesse campo para afirmar isso ou aquilo. Mas eu, em princípio, acho que tenho uma confiança espontânea no meu interlocutor. E eu, em princípio sou a favor do meu interlocutor.
Reinaldo Azevedo: Você já fez análise Mino, se é que você pode falar?
Mino Carta: Sim, fiz um pouco de análise, muito superficialmente a bem da verdade, mas...
Paulo Henrique Amorim: Mino, se você pudesse dizer para um jovem que está tentando começar a vida, você diria que deveria ser jornalista?
Maria Bonomi: Ou pintor?
Ziraldo: No Brasil... [risos] qual é o mais importante?
Mino Carta: No Brasil, [seria] muito bom se ele tivesse chance de independência, não é? Se ele tivesse, por exemplo, sei lá, digamos, Dora Kramer, uma coluna na qual ela escreve o que bem entende, por exemplo. Aí eu acho bom ser jornalista.
Tão Gomes Pinto: Uma coisa que me perguntam muito...
Mino Carta: Ou pelo menos que esse pudesse ser o objetivo de vida, porque não é uma coisa que se consegue no momento em que você começa a trabalhar em jornalismo.
Tão Gomes Pinto: Uma coisa que estudantes de jornalismo me perguntam muito, agora que eu estou na revista Imprensa, é se eu já escrevi muitas vezes coisas forçadas, contra minha opinião. Eu digo: "nunca escrevi, nunca escrevi nada contra minha opinião".
Mino Carta: Sim.
Tão Gomes Pinto: Aí eu acho que nenhum jornalista escreve contra a sua opinião na verdade, não é?
Paulo Henrique Amorim: Não, espere aí, Tão. Eu fui editorialista e discordei de um monte de coisas que eu escrevi.
Ziraldo: É, muita gente boa é editorialista...
Reinaldo Azevedo: Mas você assinava?
Paulo Henrique Amorim: Não assinava, editorialista não assina!
Ziraldo: Know-how, know-how.
Paulo Henrique Amorim: Vamos nos prender aqui à técnica da profissão: editorialista não assina. Está certo?
Reinaldo Azevedo: Sim, eu sei que não assina, por isso que perguntei.
Paulo Henrique Amorim: Já tratamos de questões técnicas antes, voltamos, editorialista não assina.
Ziraldo: Não é a opinião dele, ele está prestando um serviço.
Paulo Henrique Amorim: Claro, eu já escrevi um monte de coisas com as quais eu não concordo.
Tão Gomes Pinto: Agora, eu nunca... eu não me lembro de ter escrito nada...
Mino Carta: A diferença entre assinar e não assinar é fatal. Você pode ser um ghost-writer [escritor-fantasma] e você escreve o que o cara quer. Agora, outra coisa quando você põe o teu nome embaixo.
Ziraldo: Mino, a pergunta para eu terminar minhas perguntas a você é a seguinte: eu concordo com o Tão e acho também que qualquer um dos 31 jornalistas que não quiseram vir aqui hoje, na classe, na categoria, entre nós todos aqui, a colocação que o Tão dá a você é perfeita, você é um dos maiores jornalistas deste país. Agora, como você nunca quis ser patrão, como você nunca quis ficar rico, como você nunca quis fazer uma empresa de televisão, como você falou agora do nosso querido Alzugaray, eu te pergunto: por que você, que é um homem realizado, escolheu - essa pergunta é da Daniela, minha filha - por que você resolveu escrever um "romance-vingança"?
Mino Carta: Mas não é vingança, não é vingança.
Ziraldo: Por que você escreveu este romance, precisava?
Mino Carta: Precisava... [em tom de indignação] O que...
Maria Bonomi: Só ele podia escrever! Gente, estamos esquecendo da verdade. Ninguém... é aquela história que ele falou...
Mino Carta: Não, há tempo alguém dizia: "Escreve um livro de memórias, escreve um livro de memórias". Eu disse: "Não, eu não vou escrever um livro de memórias. Mas por que não escrever um romance?". Me tentou a idéia, acho até que vou voltar ao Mercúcio Parla, se eu tiver forças para tanto, porque estou começando a escrever, comecei a escrever, aliás.
Ziraldo: Você é fascinado pelo Mercúcio Parla, não é?
Mino Carta: Não, Mercúcio Parla...
Ziraldo: Que é você mesmo? Está aqui ó [apontando para o livro aberto que tem em suas mãos]...
Mino Carta: Imagina, Mercúcio Parla sou eu.
Ziraldo: Dona Camomila... sabe o que dona Camomila fala do Mercúcio Parla que você escreve?
Mino Carta: Sim.
Ziraldo: "Isso aqui é a história de um homem extraordinário!". [Risos]
Reinaldo Azevedo: Quem é dona Camomila?
Ziraldo: A personagem, quando entrega os originais para o...
Mino Carta: Esta é a Camomila, mas veja...
Ziraldo: O escritor chama Mercúcio Parla de figura extraordinária.
Tão Gomes Pinto: Eu li esse livro tentando decifrar vários nomes aí...
Mino Carta: Sim, a Camomila é fascinada, provavelmente até um pouco apaixonada pelo Mercúcio Parla. [Risos]
Paulo Henrique Amorim: Mas o Richard fez a lista, depois a gente vai...
Tão Gomes Pinto: Mas eu queria só observar o seguinte: esse livro não me pareceu livro de vingança não, esse livro me pareceu um livro saído do fundo da alma.
Mino Carta: É isso.
Tão Gomes Pinto: Do fundo da alma de um homem que está caminhando cada vez mais só.
Mino Carta: É isso.
Tão Gomes Pinto: É... mas não desiste.
Ziraldo: Mas ele é um vitorioso! Você não é um vitorioso, Mino?
Tão Gomes Pinto: Ele é um vitorioso.
Mino Carta: Eu sou um derrotado.
Ziraldo: Pelo amor de Deus! Ué?
Mino Carta: Eu perdi todas as batalhas, mas isso me honra.
Ziraldo: Mas perder batalha é ganhar a vida.
Mino Carta: Eu não gosto, eu não gosto de ser o demônio em última análise, eu não gosto de causar medo.
Ziraldo: Você é um vitorioso Mino, pelo amor de Deus!
Reinaldo Azevedo: Mas ninguém se convence disso Mino, por quê? Soa sempre, quase uma coisa, um estilo... desculpe, parece cantar em falsete. Você criou as maiores revistas do Brasil...
Mino Carta: Não, criei não.
Reinaldo Azevedo: Ou ajudou a criar.
Mino Carta: Comandei as relações que faziam isso.
Reinaldo Azevedo: Diz que teve poder sobre elas, você diz: "Sempre tive poder, quando não tinha mais, caía fora".
Mino Carta: Sim.
Reinaldo Azevedo: Hoje continua comandante absoluto.
Mino Carta: Olha, do Estado eu não saí porque não podia mandar, do Estado eu saí porque veio a Abril com uma proposta muito tentadora, mas não tanto...
Reinaldo Azevedo: Continua comandante absoluto de uma revista. Eu vou voltar à minha questão do início porque fica parecendo assim: nunca uma vítima foi tão poderosa, tão feliz, tão triunfante.
Tão Gomes Pinto: E nunca perdoou... Você, no fundo, você perdoa as pessoas nesse livro, Mercúcio perdoa as pessoas.
Mino Carta: Sim.
Reinaldo Azevedo: Algumas, não é?
Ziraldo: É.
Mino Carta: Não todas. [Risos]
Ziraldo: Bob Civita é perdoadíssimo, ele ainda conta que deu um soco no carro...
Mino Carta: Não, não, veja... Eu não perdôo, nem absolvo, nem condeno várias, várias... O Roberto Civita eu realmente não perdôo. Este eu não perdôo porque...
Reinaldo Azevedo: E nem ele a você por causa dos murros que você deu no carro dele.
Mino Carta: Não sei se ele me perdoa.
Ziraldo: Aliás, aquele negócio foi o pior negócio da sua vida, Mino, aquele soquinho em cima do carro. Fiquei triste... [Risos]
Mino Carta: Mas essa é uma versão sua, uma tentativa...
Ziraldo: Ele ficou dando socos em cima do carro do homem [dando socos no ar, para baixo, com as duas mãos simultaneamente].
Mino Carta: Essa é uma tentativa...
Ziraldo: E ainda cuspiu no pára-brisa! [Risos]
Mino Carta: Desculpe, tudo bem, mas...
Ziraldo: Está lá, você contou.
Mino Carta: Você está fazendo um gesto que indicaria, não sei, tendência estranhas [risos].
Reinaldo Azevedo: É coisa...
Mino Carta: Eu bati com a direita, só! [Dá um soco no ar, para baixo, com a mão direita]
Ziraldo: Ah! Não foi com as duas, assim, não? [Repetindo o gesto com as duas mãos. Risos]
Mino Carta: Não, não, isso é o que você gostaria que eu tivesse feito. [Risos]
Paulo Markun: Mino Carta. Nós estamos chegando ao final do programa, mas eu queria colocar uma última pergunta na qual você pudesse... normalmente a última pergunta é um fechinho rápido, mas dá para a gente ter aí mais uns dois minutinhos para esta última questão. Cláudio Abramo que você menciona no livro ao lado do saudoso Paulo Duarte...
Mino Carta: Sim.
Paulo Markun: Cujo codinome eu me esqueci agora.
Mino Carta: João da Lua.
Paulo Markun: João da Lua. Exatamente. Que foi uma figura que tive a felicidade de conhecer, trabalhou no Estadão, foi um grande intelectual, um grande jornalista.
Mino Carta: Sim.
Paulo Markun: Coisa fantástica!
Mino Carta: Sim.
Paulo Markun: Fez um livro, quer dizer, foi feito um livro com o trabalho dele, chamado A regra do jogo.
Mino Carta: Do Cláudio.
Paulo Markun: Do Cláudio Abramo, que você faz o prefácio, não é isso?
Mino Carta: Sim.
Paulo Markun: Aonde ele estabelece um raciocínio sobre justamente qual é a regra desse jogo que nós jornalistas temos que praticar. E ele fala sobre a ética e diz que a regra do jogo é essa, que a gente tem que jogar dentro desse jogo respeitando alguns limites.
Mino Carta: Sim.
Paulo Markun: A partir dos quais, como você mesmo disse, tiramos o time de campo.
Mino Carta: Certo.
Paulo Markun: Queria que você dissesse se é possível jogar dentro dessa regra e participar desse jogo dentro das regras, mesmo não tendo a competência e a trajetória do Mino Carta.
Mino Carta: Bem... A pergunta que você me faz, implica, enfim, para poder realizar o que você diz seria preciso mudar muita coisa no país. Quer dizer, mudar a estrutura do poder, mudar a concepção do poder. E portanto mudar também, de alguma maneira, a concepção que os patrões têm dos próprios órgãos que eles publicam para poder realmente garantir a todos indistintamente. Eu tive muita sorte na minha vida de jornalista, porque estava no lugar certo na hora certa. E olha, é verdade o que eu digo no sentido de que eu não acho que tenho tão grande talento, eu tive sorte, eu estava lá, não sou de tudo idiota, e me saí bem. Agora, eu acho que, eu acho que na prática correta, implica obediência a três preceitos básicos, não é? A fidelidade à verdade factual, um exercício do espírito crítico e a fiscalização do poder. Se você não fizer isso, eu acho que o jornalismo não tem sentido, o jornalismo como um jornalismo político, digamos - não estou falando necessariamente do jornalismo da Marie Claire, estou falando de um jornalismo político, com implicações políticas, com envolvimentos políticos, este não se realiza dessa maneira. Por outro lado, dentro da moldura de uma intenção profunda que é iluminar o público, elevar o público, nivelar por cima, não nivelar por baixo, neste país nós devemos procurar elevar as pessoas. Não baixá-las, não secundar a ignorância. Entende? Não criar um público que se farta de frases feitas, de até de um palavreado composto por umas vinte palavras que todos inevitavelmente repetem. Exaustivamente todos os dias você as ouvem todos os cantos, palavras são as mesmas idéias, não é? É um pouco, é a tal teoria da, teoria do medalhão, não é?, que é isso aí. Agora, sabe, eu tive, como te digo, sorte, então eu pude realmente fazer publicações que não dirigiam equipes, fazia publicações que não existiam antes de mim. O que também me permitiu nunca me entediar no exercício da profissão, isso, esse ponto de vista foi muito bom, não é? E também pude me permitir sair quando as coisas estavam impossíveis. Mas eu não sei se isso é possível para todos os jornalistas. Aliás, acredito que não, tanto mais num lugar onde o diploma, o diploma na faculdade de jornalismo hoje em dia é indispensável, não é? Então, formamos miríades de jovens e sem que haja, na verdade, espaço para eles nas redações existentes. Então, isso é um pouco, seria muita utopia desejar que isso fosse igual para todos. Foi felizmente para mim, mas ainda assim sou um perdedor, porque perdi todos os empregos!
Paulo Markun: Mas com certeza quem acompanhou esta entrevista até o final não perdeu seu tempo, Mino. Obrigado pela sua entrevista, obrigado a quem está em casa. A gente volta na próxima segunda-feira às dez e meia da noite. Até lá.
Fonte: Memória Roda Viva - Fapesp
[Via BBA]
Hoje podemos constatar, graças ao PlusD do Wikileaks, como o ítalo-brasileiro Mino Carta combatia a censura imposta pelo Estado (Veja EUA fizeram lobby pró-censura durante governo militar).
E com essa mesma espiada no retrovisor vemos o quanto a revista Veja inclinou-se à direita do espectro político nacional após sua saída da direção do periódico, conforme atesta artigo da Forbes sobre a morte de Roberto Civita (Bilionário Roberto Civita, Barão da Mídia Brasileira, Morre aos 76, em inglês). Nessa entrevista ao Roda Viva, Carta mostra um pouco de seu pensamento e de sua verve jornalística.
Paulo Markun: Boa noite. Influenciado pela família nas artes, ele começou na pintura, mas acabou seduzido pelo jornalismo. Nos últimos cinqüenta anos, criou e dirigiu publicações importantes, escrevendo parte da história política e da história da imprensa no Brasil. Mino Carta, pintor, jornalista e escritor é o convidado do Roda Vida esta noite.
[Comentarista]: "De fato, sobre dia e mês do meu nascimento existem controvérsias, nada que mexa com o mundo, está claro, mas quanto basta para criar alguma confusão entre os mais chegados e me livrar das festas de aniversário. Meu pai era professor de história da arte, minha mãe se dedicava aos afazeres da casa com um pronunciado talento para cozinha, alegando vocação dramática não realizada por obra do descaso do marido, a quem se esmerou em redarguir vida adentro por falta de compreensão e incentivo. Quanto a mim, sou autoditada em tudo e por tudo. E virei jornalista" [narração de trecho do romance O castelo de âmbar]. No esboço de capítulo das memórias, Mino Carta descreve uma lembrança de infância que pertence tanto a ele próprio quanto ao personagem narrador de seu primeiro romance, O castelo de âmbar [Mino Carta lançou em 2003 seu segundo romance, que dá continuidade ao primeiro, intitulado A sombra do silêncio]. Também sem data certa de nascimento, setembro de 33 ou fevereiro de 34, Mino Carta é de Gênova, na Itália. Chegou ao Brasil em 1946, aos 13 anos de idade. Em 1950, dividido entre os pincéis e a máquina de escrever, acabou escolhendo jornalismo, mas sem abandonar a pintura. Nos cinqüenta anos que se seguiram, ele criou e dirigiu revistas como Quatro Rodas [1960], Veja [1968-1976], Senhor [1982-1988], IstoÉ [fundou e dirigiu a revista de 1976 a 1981 e foi diretor de redação entre 1988 a 1993, quando saiu para lançar Carta Capital], Jornal da Tarde [1966-1968], Carta Capital e dessa experiência construiu uma visão crítica da política brasileira e da atuação da imprensa na política brasileira que, agora, ele coloca n´O castelo de âmbar. O romance é baseado em fatos reais e os personagens são tratados com pseudônimos, mas a sátira e fina ironia do texto oferecem os elementos que ajudam a desvendar políticos, presidentes, jornalistas, personagens reais da recente história política do Brasil, uma história que se mistura à própria história profissional desse jornalista, pintor e agora escritor.
Paulo Markun: Para entrevistar Mino Carta, nós convidamos Dora Kramer, colunista de política do Jornal do Brasil; Ziraldo, diretor da revista Bundas; Paulo Henrique Amorim, do programa Conversa Afiada, aqui da TV Cultura; Reinaldo Azevedo, jornalista do site Primeira Leitura e da revista República. Nós convidamos também o nosso caro Tão Gomes Pinto, diretor de redação de revista Imprensa. [Programa transmitido ao vivo, que permitiu a participação dos telespectadores por telefone, fax e internet] Boa noite, Mino Carta.
Mino Carta: Boa noite, Markun.
Paulo Markun: Vou começar pelo seu livro, na repercussão que ele teve, pelo fato de citar pessoas aparentemente reais na parte, digamos, memorialística, supostamente memorialística de um personagem fictício, e por tratar num conto supostamente fictício de pessoas mencionadas com seus nomes reais, você acha que isso de alguma forma embaçou a avaliação do produto do seu trabalho efetivamente? Porque fala-se muito mais disso do que efetivamente da história em si e do romance em si.
Mino Carta: Bem, eu acho que talvez seja normal que a repercussão comece por aí, se repercussão há. Mas, de certo, eu creio que o que interessa mesmo é a história no seu conjunto. E, para tanto, a escrevi [sorrindo]. Que os leitores julguem, naturalmente.
Paulo Markun: E por que você, digamos assim, que tem à tua disposição a publicação que você faz, a Carta Capital, combativa e disponível, se lançou a escrever alguma coisa que tem um lado de romance, mas tem um lado também de fatos reais, nesse formato de livro, de romance?
Mino Carta: Bem, talvez estivesse trafegando há tempo entre o fígado e a alma essa vontade de escrever algo a respeito da minha existência, mas profissional, naturalmente. Mas não me senti à vontade para escrever memórias.
Paulo Markun: Por quê?
Mino Carta: Porque não me julgo à altura das memórias, acho que memórias cabem a pessoas muito importantes e eu não acredito ser tão importante assim. Então, eu optei por uma solução que, segundo Nirlando Beirão [jornalista e escritor, autor do livro Rio/Sao: doze visões de duas cidades maravilhosas], que é uma pessoa muito amiga e muito generosa, foi um recurso para conferir às personagens um aplomb [segurança] que na realidade eles não têm. Eu gostaria de poder responder assim, mas na realidade não é, não é. Eu achei que a história poderia valer por si, e a parte, digamos assim, que envolve os jornalistas e também os políticos... no fundo interessa mais aos políticos e aos jornalistas do que aos leitores em geral.
Paulo Markun: Quer dizer, em outras palavras, é algo como se a gente pudesse ter duas leituras do livro? Nós aqui, que de alguma forma temos curiosidade de identificar se fulano é fulano e sicrano é sicrano, lemos assim. E há uma outra possibilidade de leitura, que seria da história pura e simplesmente?
Mino Carta: Eu acho... pelo menos eu gostaria muito que fosse assim. Agora, devo te confessar Markun, que houve algo nessa história toda que me surpreendeu de alguma maneira, que foi... li nos jornais que 31 pessoas convidadas para este programa acharam por bem não comparecer, quer dizer, se recusaram ao convite. Eu tenho até certeza que muitas delas tinham ótimos motivos, outros compromissos: encontro com a namorada, dor de dente, torceram o pé; enfim, bons motivos. Mas acredito que alguns entre eles ficaram realmente constrangidos, ou porque têm simpatias com as minhas idéias, mas não podem dizer, deixar claro essa simpatia, porque senão o patrão ficaria chateado, não é?, ficaria agastado, ou porque realmente temem um debate. Agora, não sei porquê me parece que eles agem como a confirmar um certo teorema que no fundo está implícito no livro e que, evidentemente, não envolve todos os jornalistas, mas envolve muitos, evidentemente. Tanto que 31... parece que é o recorde aqui de recusas.
Paulo Markun: Consta.
Mino Carta: Consegui superar nisso o Antônio Carlos Magalhães. Mas eu acho importante dizer o seguinte, que... veja, eles confirmam a convicção de que nada como o silêncio para que as coisas possam ser encaradas como se não tivessem acontecido. Tanto que, você veja, meu livro não teve repercussão alguma - pelo menos por enquanto - nos órgãos da chamada grande imprensa, excluído o Jornal do Brasil, que foi até generosíssimo comigo. Agora, é estranho esse conceito desenvolvido por jornalistas, não é?
Reinaldo Azevedo: Mino... [ao fundo]
Mino Carta: O silêncio para matar a repercussão, não é?
Reinaldo Azevedo: Mino... [ao fundo]
Mino Carta: Deixa eu só concluir isso, porque é uma coisa que eu queria realmente dizer. Agora, veja, os fatos estão aí, não é? Hannah Arendt [(1906-1975) filósofa alemã de origem judia e influenciada pelo marxismo. Autora, entre outros, de A condição humana] dizia que quando eles não são relatados, vão ao fundo do mar e nunca mais serão recuperados. Mas talvez não seja o caso, porque o meu livro teve uma tiragem inicial de dez mil exemplares e está esgotado em menos de um mês. Então, o fato existe, por quê não discutí-lo? Vai ver até para baixar uma lenha firme, não é? [Risos]
Reinaldo Azevedo: Mino, vamos então debater um pouquinho...
Mino Carta: Vamos.
Reinaldo Azevedo: ...Se a minha questão não for muito tosca, vamos lá. A revista República deu uma entrevista com você em novembro, você foi capa da revista.
Mino Carta: Sim.
Reinaldo Azevedo: Num tratamento que me parece, não vou dizer generoso porque você merece, acho que à altura do seu talento.
Mino Carta: Não, generoso.
Reinaldo Azevedo: Agora, nessa entrevista você chama o diretor de redação da Folha, o Otavio Frias Filho, você diz lá num dado momento: "Otavinho é uma besta, um ser subdoloso" [lendo o trecho em um exemplar que trouxera consigo]. Do Roberto Civita [presidente do Grupo Abril, uma das companhias mais influentes de comunicação da América Latina, filho do italiano Victor Civita, fundador da editora Abril], você diz que ele é um pilantra. E fala de outras personagens também, do Lula, etc. Agora, eu te diria muito tecnicamente, sem entrar no mérito se um é besta e o outro é pilantra, de todas as críticas que você fez, as duas, ou que poderiam enquadrar a revista, inclusive na Lei de Imprensa vigente - pode não ser a melhor, mas é que a temos - ... e se vier outra, eu acho que pilantra e besta continuam passíveis de processo, pelo menos, pelo qual o diretor de redação [o próprio Azevedo] responderá solidariamente, como você bem sabe. E a revista fez aquilo que me parece óbvio, que foi ouvir as duas pessoas, dizendo assim: "Olha, o senhor Mino Carta deu uma entrevista aqui e disse que você é besta e subdoloso e disse que o senhor é um pilantra". As duas pessoas responderam a sua maneira. Um deles, o Roberto, disse que você está com memória fraca ou coisa parecida... [sendo interrompido]
Ziraldo: Mas isso não é usual não, não é?
Reinaldo Azevedo: Não, não. Infelizmente não. Ouvir o outro lado não é.
Ziraldo: Isso não é usual. O Tão Gomes Pinto poderia ter feito isso comigo e não fez.
[...]: Claro, claro, poderia fazer...
Ziraldo: E vocês fizeram. Então, não está certo isso aí não, porque não tem nada que contar antes do Mino publicar. Achei horrível isso aí! [Risos ao fundo]
[...]: [Risos] Falou, falou. Está falado. Eu também não gostei!
Reinaldo Azevedo: Eu pediria... Eu só queria assegurar meu direito de terminar uma pergunta, pelo menos...
Ziraldo: Não, com certeza.
Reinaldo Azevedo: Porque senão cai numa puta confusão que não resolve nada.
Ziraldo: Não, mas eu estou...
Reinaldo Azevedo: Não, a gente até pode debater depois, mas deixa eu fazer a pergunta. Muito bem, as duas pessoas responderam, esta resposta está na introdução da entrevista e depois você segue falando aquilo que você tão brilhantemente bem fala sobre todas as coisas, sobre tudo. Bom, no editorial da sua revista, Carta Capital, da revista que você dirige, você dá uma desancada na revista República dizendo que ela inovou no procedimento ao ouvir as pessoas atacadas. Primeiro que não inovou, porque as revistas estão cheias disso, de a pessoa atacada vai e responde... O que me parece é que você deu uma de Groucho Marx [(1890-1977) comediante estadunidense] quer dizer, há um silêncio notório e gritante sobre o seu livro e a revista que aceita não te convidar para ser sócio [Frase famosa de Groucho Marx: "Não quero pertencer a nenhum clube que me aceite como sócio"], mas que de algum modo pretende fazer par, ainda que menor, ao seu brilho, ao seu talento, você desanca a revista. O que parece é que você assim... escolheu o papel da vítima triunfante. Eu nunca vi uma vítima tão triunfante![Carta começa a rir] Quer dizer, você é brilhante, reconhecidamente brilhante, diz nesta entrevista que sempre fez tudo o que quis nas redações, nos jornais e nas revistas, e lhe sobra ainda o lugar da vítima [Carta ri novamente], o que é muito confortável, porque uma vítima brilhante como você, ora, quem é que se atreve a ser o seu algoz? Ninguém.
Mino Carta: Eu agradeço todos os seus elogios, achei fantástico, fiquei enaltecido com eles, mas...
Reinaldo Azevedo: Não, não, outros melhores já o fizeram.
Mino Carta: Não, não, eu não sei. Eu declaro, já ouvi elogios, mas ouvi mais críticas do que elogios. Mas, de qualquer maneira, é a primeira vez da minha história de jornalista que eu leio uma entrevista na qual pessoas que foram eventualmente criticadas e até muito asperamente criticadas pelo entrevistado são ouvidas concomitantemente. Este é o ponto. Eu acho que eles tinham direito de resposta, sim, claro, numa repercussão procurada até pela própria revista, mas não publicadas as respostas deles na própria entrevista, juntamente com a própria entrevista.
Reinaldo Azevedo: Você acha que isso é mau jornalismo?
Mino Carta: Eu acho.
Paulo Henrique Amorim: Não é um perfil, não é? Não é um perfil.
Mino Carta: É, não é um perfil!
Paulo Henrique Amorim: Para dar o direito de resposta da mesma edição tinha que dar a ele o direito de tréplica na mesma edição.
Mino Carta: É claro.
Reinaldo Azevedo: Bom, mas aí inicia-se um debate que não acaba nunca.
Paulo Henrique Amorim: Claro, é evidente.
Mino Carta: Mas aí é inescapável, aí é inescapável ao meu ver, desculpe hein.
Reinaldo Azevedo: Não, não.
Mino Carta: Agora, eu não desanquei...
Reinaldo Azevedo: Na verdade, eu estou sendo surpreendido também, até pela posição do Paulo Henrique.
Mino Carta: Não, não, veja...
Paulo Henrique Amorim: Veja, não era um perfil, era uma entrevista. Era uma entrevista. Eu acho que, tecnicamente, a discussão é a seguinte: numa entrevista, o direito de resposta sucede à publicação da revista. Isso não era um perfil.
Reinaldo Azevedo: Desculpe, há um desconhecimento técnico agora. Eu não quero chatear o programa, mas há um desconhecimento técnico, porque diz a Lei de Imprensa: se eu tenho uma pessoa... porque isto é claramente classificável como injúria - se tiver algum advogado presente que diga -, isto é injúria. Você desqualificar a posição de alguém e dizer que ele está errado é uma coisa; você chamá-lo de besta é outra coisa, ora! Ou de pilantra!
Paulo Henrique Amorim: O problema é se numa entrevista cabe o direito de resposta na mesma edição da entrevista.
Mino Carta: É, é este o ponto. Mas de qualquer maneira, desculpe, eu não desanquei a revista República, eu achei o seu verbo exagerado. Absolutamente... [sendo interrompido]
Reinaldo Azevedo: Não... "A revista é o exemplo de que os patrões..." Como é? [tentando localizar o trecho do texto que Carta publicou em sua revista em resposta à revista República] Diz lá: "... têm sido marrecos dos empresários da mídia". Se fosse Pitágoras diria que o seu teorema de que...
Mino Carta: Isso não é desancar.
Reinaldo Azevedo: Olha Mino, considerando o que você pensa dos patrões, é.
Mino Carta: Hein?
Reinaldo Azevedo: Considerando o que você pensa habitualmente dos patrões e diz nesta revista, inclusive, colocá-la como uma revista que puxa o saco dos patrões é desancar.
Mino Carta: Não, no caso eu acho que... [Azevedo faz um breve comentário ininteligível] Eu acho que houve uma preocupação... estranhamente foram ouvidos os empresários da comunicação e não Lula, [Orestes] Quércia, outros que tinham sido citados na entrevista.
Paulo Markun: Mino, eu queria pedir, antes da gente continuar a entrevista, queria registrar a chegada da Maria Bonomi, artista plástica, que era nossa convidada, já que se mencionou o fato de que várias pessoas não puderam participar. Maria Bonomi pode participar, chegou um pouquinho atrasada, mas está aí. Queria fazer um apelo - que eu acho que não é para fugir da discussão, acho ótimo quando o programa esquenta e vira uma polêmica - mas é apenas para lembrarmos que estamos falando para uma audiência enorme e que essa questão jornalística é pertinente, sem dúvida nenhuma, mas não é a única questão a ser discutida, porque todos nós aqui que somos jornalistas gostaríamos também de opinar e discutir, poderíamos estabelecer um amplo debate até sobre a Lei de Imprensa, mas eu acho que tem outras questões... Senão a gente vai ficar nesse ponto específico. Se não estou enganado, creio que o ponto de vista tanto do Reinaldo quanto do Mino já foi registrado. Mas, à vontade se alguém quiser tocar para adiante.
Tão Gomes Pinto: Eu queria fazer uma colocação ao Mercúcio Parla, porque Mercúcio Parla domina esse livro de uma maneira irresistível... eu diria brilhante.
Paulo Markun: Só vamos esclarecer então, desculpe interromper, Mercúcio Parla é, digamos assim, o personagem que escreve o livro, que conta suas memórias.
Tão Gomes Pinto: Conta sua memórias.
Paulo Markun: Claramente inspirado em Mino Carta.
Tão Gomes Pinto: Eu, por enredo, ou pelo destino, ou por razões de realidade virtual, trabalho na revista Jornalistas, que é a revista Imprensa. E ali sou até obrigado a tecer considerações sobre colegas de profissão, criticando alguns, chamando atenção de outros, elogiando outros. E eu publiquei, recentemente, numa... recentemente não, no último número da revista Jornalistas, um editorial onde eu digo que Mino Carta - ou Mercúcio Parla - é o melhor jornalista brasileiro dos últimos cinqüenta anos. Eu poderia ter dito 150, 225, porque é o que eu acredito. Eu acredito que a comparação sua, me parece, só pode ser feita com relação a Líbero Badaró, que por coincidência também nasceu na Laigueglia [cidade da Itália], deve ter um “castelo de âmbar” lá perto e tal. E que morreu no Brasil com a famosa frase: “Morre um liberal, mas não morre a liberdade”. Ele tinha o direito de sonhar, no último suspiro as pessoas têm o direito de sonhar. Então sonhou que morria um liberal, mas não morria a liberdade. Por coincidência, ele foi assassinado por ordem de um ouvidor chamado Japiassu.
Mino Carta: Que não tem nada a ver com o nosso amigo Moacir [referindo-se a Moacir Japiassu], nada, nada! [Risos]
Tão Gomes Pinto: É um detalhe!
[...]: Cuidado com o Japiassu, Mino! [Pinto dá uma gargalhada. Risos]
Tão Gomes Pinto: Mas o que eu queria dizer a você é o seguinte, Mino, perguntar e prerrogar o seguinte: o que você acha das novas mídias que estão surgindo? Fala-se muito em democratização da mídia, democratização da informação. Queria sair instrumentos: internets, e-mails, telefones celulares... Hoje... cada brasileiro, daqui há pouco, vai ser portador de alguma lombriga e de um telefone celular... Você não acha que estamos prestes a uma revolução na comunicação, ou seja, essa sua teoria e essa sua posição justificadíssima, de que os mandarins da imprensa são os donos dos jornais, são os sacerdotes da opinião pública - porque no Egito os sacerdote é que mandavam -, aos poucos serão minados por esta nova sede de informação? Por exemplo, o brasileiro hoje, não é que seja um povo sem conhecimento, nós temos capacidade de fazer, de bater falta, por exemplo, a média distância... Por exemplo, Rogério [Ceni], goleiro do São Paulo, faz isso com grande habilidade, não é?
Mino Carta: É verdade.
Tão Gomes Pinto: Mas o brasileiro pode estar sendo... ou saltando para um patamar novo na comunicação, ou se boçalizando em massa. Qual a sua opinião a respeito disso?
Mino Carta: A minha opinião a respeito disso é que esses instrumentos estarão a serviço dos "medalhões". Imagino que todos aqui tenham lido um conto de Machado de Assis, intitulado magistral, dessa figura universal, intitulado "A teoria do medalhão". É o título do conto. E o conto é o seguinte: um pai chama o filho que completa 21 anos e lhe ministra uma aula para ser medalhão. Como? A previsão dele é... uma idade correta para se tornar medalhão é 45 anos, embora possa ser admissível que ele só chegue a tanto aos sessenta ou mais, ou até menos, mas isso digamos, 25 anos, por exemplo, que é possível ser medalhão aos 25 anos, no entanto é coisa para gênios. E qual é a receita? A receita, em primeiro: jamais tenha idéias próprias, repita exaustivamente as idéias colhidas pelas esquinas. Repita e trabalhe sobre elas fugindo da imaginação e buscando evitar a solidão, porque a solidão é muito propícia para a reflexão [risos]. Então, a reflexão é perigosa. Perigosa, porque de repente vem uma idéia! Fuja sistematicamente da imaginação, use um vocabulário... - estou tentando repetir Machado - simples, simples, tíbio, apocado, sem toques de clarim! Isso é fundamental, fundamental! Agrade a todos, agrade a todos sistematicamente que você obterá grande repercussão e respeito geral. Agora use as locuções mais triviais, lugares comuns, mais nefandos, e as fórmulas consagradas. Ao cabo, o filho pergunta: "E o riso? Dá para dar uma risadinha de vez em quando?" O pai diz: "Sim, claro, lógico, mas fuja sempre da ironia, não use a ironia, que é feição própria dos céticos e dos desabusados!" Isso é textual.
Paulo Henrique Amorim: Mino, supondo...
Tão Gomes Pinto: Mercúcio era um deus grego?
Mino Carta: Mercúcio? Não. Mercúcio é uma personagem de Shakespeare [Mercúcio é personagem da tragédia Romeu e Julieta, de William Shakespeare, publicada em 1597. Mercúcio era parente de Escalo, príncipe de Verona - onde se passa a trama -, e amigo de Romeu Montecchio. O jovem falastrão e cômico é morto em duelo por Teobaldo, primo de Julieta Capuleto, o qual descobrira a intrusa presença de Romeu no baile dos Capuletos, onde Romeu e Julieta se conheceram. Teobaldo encontra Romeu, Mercúcio e mais um amigo pela rua e os enfrenta. Romeu não queria confusões mas, apesar da insistência dos amigos, Mercúcio compra a briga de Romeu e aceita o desafio. Quando vê seu amigo morto, Romeu mata Teobaldo. A morte de Mercúcio desperta ainda mais a ira entre os Montecchios e os Capuletos, marcando a transição da estória de comédia para tragédia].
Paulo Henrique Amorim: Para quem não conhece você...
Mino Carta: ... [que] paga estupidamente pelos erros dos outros [sorrindo].
Paulo Henrique Amorim: ... [riso] Para quem não conhece você e não teve ainda a possibilidade de ler o seu livro, vamos tentar... Eu gostaria que você fizesse um pequeno resumo do que eu suponho seja uma idéia que acompanha todo o trabalho, que não sei se é um romance, se é uma reportagem, me permito não entrar nesse capítulo perigoso da classificação. Mas eu imagino que você tratou neste trabalho, neste texto, das relações entre o poder e a imprensa no Brasil, da forma pela qual você pode testemunhar.
Mino Carta: Certo.
Paulo Henrique Amorim: Você milita na imprensa brasileira já há algum tempo.
Mino Carta: Desde sempre.
Paulo Henrique Amorim: Desde sempre. E a minha pergunta é a seguinte: o seu balanço - se você se permitiu neste livro fazer um balanço - seu balanço é que nós melhoramos ou pioramos e por quê?
Mino Carta: Posso apenas concluir a resposta anterior?
Paulo Henrique Amorim: Claro, por favor.
Mino Carta: Não, eu queria dizer que essa invasão dessa arte nova, dessa virtualidade desenbestada etc e tal...
Tão Gomes Pinto: Novas tecnologias...
Mino Carta: ... só aproveita a criação de mais "medalhões", eu acho. Quer dizer, é a transformação, no plano virtual, da aplicação da "teoria do medalhão".
Tão Gomes Pinto: Quer dizer, as fontes, os mandarins, os sacerdotes continuam dirigindo...
Mino Carta: Eles vão transferir para o plano virtual...
Tão Gomes Pinto: Esse poder?
Mino Carta: Esse poder, essa receita.
Tão Gomes Pinto: Você não acha que há uma democratização?
Mino Carta: Não. Eu acho até que no Brasil não tem democracia, imagina você! Mas para responder a ele [apontando para Amorim], o balanço. Bom, o balanço. Eu acho que piorou, piorou bastante. Claro que melhorou do ponto de vista tecnológico, não é? Houve um avanço tecnológico extraordinário. Eu me espanto ao verificar que a minha modesta redação, a Carta Capital, está toda computadorizada. Estão todos no computador.
Paulo Henrique Amorim: Menos você!
Mino Carta: Menos eu, naturalmente.
Paulo Henrique Amorim: Eu vi no...
Mino Carta: Eu ainda lido com uma velha Olivetti [famosa marca de máquinas de escrever].
Reinaldo Azevedo: Por que naturalmente, Mino? Por que naturalmente?
Mino Carta: Porque eu sou um pobre velho [risos, close em Azevedo, que abre os braços consternado e depois ri], infeliz e incapaz, um coitadinho, entende? Não dá, é uma coisa mais forte do que eu! É superior às minhas forças.
Reinaldo Azevedo: Você tem e-mail?
Paulo Henrique Amorim: Mas Mino, por que você...
Mino Carta: Não, eu não tenho e-mail. Mas eu não tenho nem secretária eletrônica, quer dizer, então, eu me espanto até com televisão, imagine você!
Ziraldo: Acaba a resposta dele, a resposta do Paulo Henrique.
Mino Carta: Pois é.
Paulo Henrique Amorim: Mino, piorou por quê? - eu faria aqui uma segunda pergunta embutida nesta -, mesmo depois do regime militar?
Mino Carta: Não, sobretudo depois do regime militar, porque eu acho que a tragédia brasileira desaba realmente em 1964. Acho que o Brasil estava encaminhado para um processo qualquer de modernização. Aliás, Machado, na "teoria do medalhão", conta que o pai diz ao filho também: "Seja a favor da modernidade, mas nunca a aplique" [risos]. Então, é um pouco assim, entende? Nós somos a favor da modernidade, a modernidade ficou no... Bom, 1964 é a tragédia, tem um processo encaminhado...
Paulo Markun: Mas depois disso nós não passamos... Eu estou no jornalismo há trinta anos, então quando eu comecei a imprensa vivia sob censura.
Mino Carta: Sim, claro.
Paulo Markun: Todos os jornais! Depois de alguns jornais saírem da censura, manteve-se na Veja, n´ O Pasquim, no Opinião, nas televisões, e finalmente se acabou. Nem isso você acha que melhorou? O fato de termos hoje liberdade de imprensa para noticiarmos o que quisermos, publicarmos o que bem entendermos...
Mino Carta: Publicarmos o que quisermos não quer dizer falarmos bem do governo e das autoridades constituídas...
Paulo Markun: Mas uma publicação...
Mino Carta: ...e eventualmente silenciarmos a respeito das informações que deveriam ser dadas.
Paulo Markun: Mas a revista Carta Capital não faz isso?
Mino Carta: A Carta Capital... [sendo interrompido]
Paulo Markun: Está nas bancas.
Mino Carta: A Carta Capital é uma boa lembrança. Está nas bancas, mas a Carta Capital é um excelente exemplo, porque a Carta Capital, embora quinzenal - graças a uma equipe valente que eu apenas dirijo, mas tem gente lá de altíssimo nível e eu acho até que tem lá jornalistas bem melhores do que eu - a Carta Capital fura o jornalismo diário com informações que não têm segmento.
Paulo Markun: Sim, mas se nós estivéssemos no regime militar, estaríamos...
Mino Carta: A penúltima capa da revista Carta Capital, ou ante-penúltima, agora eu já não lembro, havia uma reportagem sobre mazelas sérias envolvendo figurões da República que mexem com o tal anexo quatro, enfim, movimentos entre Cayman e o Brasil. Quem falou disso? Ninguém! Agora, foram desmentidas as informações? Não, não, o que é isso! Então, acredito que sejam verdadeiras.
Reinaldo Azevedo: Mino, eu queria uma declaração sua, queria que você explicasse, na verdade, porque aqui para mim não ficou claro [lendo uma afirmação de Carta na mesma entrevista à revista República]: "Se compararmos o Brasil de hoje com o de 25 anos atrás, quando Vlado Herzog morreu, aquele era muito melhor, por incrível que pareça”.
Mino Carta: É, eu acho.
Reinaldo Azevedo: Eu queria que você... Evidentemente você não tem saudade de ditadura.
Mino Carta: Não, absolutamente, mas eu acho que nós tínhamos uma enorme esperança. A morte do Vlado é um momento terrível e decisivo na minha vida, devo dizer. Porque eu, naquele momento... Eu virei jornalista porque sou brasileiro, porque virei brasileiro. Porque, se eu tivesse ficado na Itália ou em qualquer país da Europa, eu não seria jornalista. Agora, no Brasil senti realmente a utilidade, a serventia, e senti nesse momento. Porque até, digamos, Veja, eu tinha trabalhado trabalhado como um profissional, entende? E assim, como...
Reinaldo Azevedo: Entendi.
Mino Carta: Sim, exatamente. E assim trabalhei no Estado [O Estado de S. Paulo], no “Estadão”, onde eu fui muito bem tratado e foram certamente os melhores patrões que eu tive. Mas eu tinha uma função técnica, a opinião era a do jornal. Quando eu fui para a Veja, até pelas lacunas, pela falta de um ideário claro por parte dos meus patrões - os quais, se tivessem conhecido o Brasil não teriam publicado aquela revista, até porque três meses depois da saída da revista desabou sobre o país o AI-5. Então, não era exatamente o momento ideal para fazer aquilo, e se fez foi porque eles não tinham uma clareza quanto ao que era exatamente o país, os rumores que o percorriam, a história...
Reinaldo Azevedo: Só para contar, você tinha ou você também não tinha? É uma pergunta minha, eu não estou te sacaneando. Você tinha essa clareza e você deixou ocorrer, ou você também não tinha?
Mino Carta: Não, eu tinha essa clareza, eu conhecia o país, eu cheguei aqui com doze anos.
Reinaldo Azevedo: Você estava ali falando: "Ih, isso não vai dar certo!"
Mino Carta: Não. Não é que não vai dar certo. Aliás, no livro está contada essa história, quer dizer, o Mercúcio Parla é advertido por seus amigos: "Olha, cuidado, isso aqui..." Mas era tão tentadora a oportunidade, por que fugir de uma situação? Eu normalmente não tiro o time de campo. Sou um gramsciano [em referência a Gramsci]: pessimista na inteligência e otimista na ação. Vou em todas as bolas.
Paulo Henrique Amorim: Mas, Mino, por que o episódio do Vlado foi decisivo na tua vida?
Mino Carta: Não, foi decisivo porque aquilo realmente me tocou muito, a bestialidade do evento, entende? A ferocidade... Então, quer dizer, no fundo cristalizou um processo que corria dentro de mim, e me levou à convicção de que jornalismo, no fundo, tem um sentido e que isso te ajuda a, pelo menos, fornecer elementos para que algum dia a história escrita pelos vencedores possa ser corrigida.
Paulo Henrique Amorim: Mas voltando ao tema do Markun...
Mino Carta: Essa é a questão, porque essa idéia de que a história é sempre escrita pelos vencedores é uma idéia que tem o poder de me irritar sobremaneira.
[...]: Muito bom, muito bom! Parabéns, Mino [Carta sorri].
Paulo Markun: Mino Carta, Paulo Rogério Lentiole, de Vila Antonieta, aqui em São Paulo, gostaria que você falasse um pouco sobre ética na impressa. Ele pergunta: "Existe ou não?" E diz: "Eu, como estudante de jornalismo, acho que falta essa matéria no curso" [Carta ri].
Mino Carta: Eu não sei, viu. Esta história de ética é uma história complexa. Acho que a ética é uma coisa automática, a gente aprende quando nasce, aprende com os primeiros exemplos, aprende no primário.
Paulo Markun: Vivendo em sociedade?
Mino Carta: Vivendo em sociedade. E há coisas óbvias. O problema é que, infelizmente, o país vive também, entre outras crises, uma crise moral. Eu acho que nossa sociedade... quando eu digo sociedade, digo de quem pode comer carne todos os dias, proteínas, consumir proteínas todos os dias; não falo, evidentemente, do povo brasileiro, que não é nem melhor e nem pior que tantos outros, que todos os outros, porque não existem povos melhores ou piores. Infelizmente, o povo brasileiro está ainda vivendo uma espécie de escravidão, se não for escravidão mesmo, não é? Agora, essa turma que vive entre razoavelmente e bem demais é uma turma que trafega na vida como... sabe o jacaré sobre a pele da água com os olhos observando para ver onde será o próximo golpe, o próximo bote, onde ele o dará? É por aí. Eu acho que nós vivemos um período moralmente muito medíocre, não é?
Paulo Markun: Nesse rio, com jacaré navegando para lá e para cá, o que o jornalista é ou deve ser, na sua opinião?
Mino Carta: É o que eu dizia há pouco, eu acho que o jornalista deve se preocupar em realmente fornecer elementos para que algum dia a história não seja... para que a versão dos vencedores, dada pelos vencedores, seja eventualmente contestada.
Paulo Markun: Mas se a gente olha os jornais, a chamada grande imprensa, e fizemos uma vasculhada aí nos últimos três, quatro, seis meses, veremos nas primeiras páginas diversas denúncias contra elementos do governo, contra autoridades...
Mino Carta: Sim, mas sempre denúncias menores - pelo menos, na maioria dos casos - em cima de assuntos menores. Nos interessamos muito, por exemplo, por Wanderley Luxemburgo [o então técnico da seleção brasileira de futebol foi acusado naquele ano de receber comissões indevidas com a venda supervalorizada de jogadores. No mesmo ano, Luxemburgo também foi acusado pela Justiça Federal de sonegação de impostos no período de 1994 a 1997]. A história do Wanderley Luxemburgo nos deixa atordoados, não dormimos, perdemos o sono, é uma coisa triste; aliás, me entristece muito. Só que eu acho que o problema é muito mais em cima. O problema está no João Havelange [presidente da Fifa (Fédération Internacionale de Football Association) entre 1975 e 1998, ano em que foi eleito presidente de honra da Federação], está no Ricardo Teixeira [presidente da CBF (Confederação Brasileira de Futebol) a partir de 1999 e ex-genro de Havelange], está na velhacaria e na corrupção desses cartolas. E nós nos preocupamos com Wanderley Luxemburgo. Não digo que Wanderley Luxemburgo seja uma flor, mas enfim, ele é o peixe pequeno. Então, é sempre o peixe pequeno.
Ziraldo: Posso fazer uma observação, Mino? Eu acho assim, que, no Brasil, pobre e rico se ferram! É só Georgina [Georgina de Freitas, ex-procuradora do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), presa por participar de um esquema de desvio de verbas da Previdência], o Wanderley... Agora rico, rico, pode ficar tranqüilo que não pegam. Cadê o Chico Lopes [presidente do Banco Central por apenas 21 dias, em janeiro de 1999, que participava de um esquema de venda de informações privilegiadas de juros e câmbio aos irmãos Sérgio e Luiz Bragança, Rubens Novaes e ao dono do banco Marka, Salvatore Alberto Cacciola. O dinheiro que financiava o esquema saía de uma conta do Bank of New York, por ordem de uma subsidiária do Banco Pactual nas Bahamas, famoso paraíso fiscal. Lopes, na época, foi demitido com alegações de que conduzira mal a política cambial de desvalorizalção do real. Durante as investigações, foi encontrada no apartamento de Lopes uma carta manuscrita por Sérgio Bragança, na qual ele afirmava ser o depositário fiel de cerca de um milhão e seiscentos mil dólares em contas de Lopes no exterior] por exemplo, com aquele um milhão e meio de dólares lá, declarado no exterior em nome do outro?
Mino Carta: Sim, sim.
Ziraldo: Então, trabalham em cima dos pobres que ficaram ricos. O rico pode ficar mais rico ainda, entendeu?
Mino Carta: É. Sempre, sempre.
Reinaldo Azevedo: Posso tentar organizar o dissenso de novo? Esta imprensa pós-ditadura derrubou um presidente da República, cassou um senador de maneira inédita na história da República, cassou um bando de deputados ligados à CPI do narcotráfico... No meu entendimento, aí eu gostaria de te ouvir também, acho até que peca por excesso de denuncismo, porque há um vaso comunicante hoje entre Ministério Público e imprensa dos mais incômodos, porque o Ministério Público planta lá a denúncia na imprensa antes mesmo desse troço ter qualquer indício de veracidade, e isso sai, e a honra das pessoas é jogada na lama e não se recupera mais, não adianta. Essa imprensa é tão ruim assim? A imprensa que derruba um presidente... [sendo interrompido]
Paulo Henrique Amorim: Desculpe, Reinaldo, isso o quê? Porque o Ministério Público faz um conjunto de denúncias.
Ziraldo: Pois é, qualquer censura ao Ministério Público me deixa estarrecido...
Paulo Henrique Amorim: Qual tipo de denúncia que você acha que é...?
Ziraldo: Você consegue chegar... A primeira conquista da democracia é o Ministério Público e ele quer denunciar o Ministério Público, rapaz? Pelo amor de Deus, você está a serviço de quem?
Reinaldo Azevedo: Não, não, não... Escuta, eu não acho que nem o Ministério Público, nem coisa nenhuma está acima de qualquer suspeita... não está também. Só estou dizendo o seguinte: essa imprensa derrubou ou não derrubou um presidente da República?
Mino Carta: Eu posso...? Achei ótima...
Reinaldo Azevedo: Cassou ou não cassou?
Mino Carta: Olha, achei ótima, estou encantado com essa sua referência a queda do... Eu vou lhe contar a queda do Collor.
Reinaldo Azevedo: Explique, sim. Por favor.
Mino Carta: Em fins de outubro de 1990, Collor não tinha ainda completado um ano de mandato - tinha sido empossado em março -, a revista IstoÉ, que eu então dirigia, publicou uma reportagem magistral assinada por Bob Fernandes que contava exatamente tudo, tudo, absolutamente tudo aquilo que o irmão do Collor declarou depois numa entrevista à revista Veja em abril de 92, ou seja, um ano e seis meses depois. Tudo, menos os supositórios de cocaína. Bem, essa reportagem caiu no vazio. Contava tudo sobre as relações entre PC Farias e o governo. Caiu no vazio. Por quê? Eu acho que caiu no vazio porque o pessoal de cima, que tinha agarrado no fio desencapado Collor - sabendo que se tratava de um fio desencapado, mas necessário, providencial até, para enfrentar o sapo barbudo Lula, para poder derrotá-lo, fazendo inclusive mil coisas fantásticas, mil mazelas, mil subterfúgios, mil coisas, mil retoques a debates e coisa similares, ajudando de todas as maneiras -,esses mesmos senhores não tinham ainda decidido derrubar o senhor Collor. Que o qual, porém, estava sendo...
Reinaldo Azevedo: Quem são os senhores, Mino? Eu sei, mas diz para o pessoal lá em casa quem são esses senhores! Quem são?
Mino Carta: Como "Diz para o pessoal lá em casa"? Os senhores são as pessoas que mandam no país.
Reinaldo Azevedo: Não, não, imagina.
Mino Carta: Era o governo, eram os empresários envolvidos com o governo, eram os donos da imprensa nativa, os donos da mídia e da comunicação em geral.
Reinaldo Azevedo: Muito bem, não deram atenção para a IstoÉ e depois?
Mino Carta: Não deram atenção, deram um ano e meio depois, por quê? Porque o rapaz estava cobrando um pedágio muito alto, 30%, 40%, os anteriores só cobraram dez, vinte, entende? Então, vamos... Mas eles não queriam derrubá-lo, não queriam derrubá-lo, você vai me desculpar, mas não queriam. Eles queriam adverti-lo, porque a tal CPI que se formou estava admitindo que, sem provas, não se conseguiria chegar a alguma coisa. E todo mundo dizia que não tinha provas, entende? E o próprio denunciante, o tal do Pedro Collor, dizia não ter provas. Então, a coisa ia morrer ali. Se a IstoÉ não descobrisse num trabalho de reportagem brilhante da sucursal de Brasília, orientada, diga-se de novo, pelo Bob Fernandes, que tinha dado uma dica preciosa que se revelou realmente certa, se confirmou.
Reinaldo Azevedo: Bob e o Lula também, não é?
Mino Carta: Hein?
Reinaldo Azevedo: E o Lula também. O Lula Marques também estava junto, não estava? Na coisa de achar o Eriberto.
Paulo Markun: Não, acho que era o Mino Pedrozo.
Mino Carta: Não, não. Havia três pessoas. A sucursal inteira trabalhou naquele episódio. Mas, enfim, eles foram atrás dessa indicação, era uma indicação, foram atrás, desenvolveram, acharam um motorista. Aí, com o motorista à mão, realmente a coisa ficou complicada.
Reinaldo Azevedo: Agora Mino, eu estava no [...], era uma histeria para achar provas e não existiam, não tinham provas!
Mino Carta: Eu quero lhe lembrar, quero lhe lembrar... Hein?
Reinaldo Azevedo: Era uma histeria nas redações dos jornais, eu estava num grande jornal na época em busca das provas até que vocês conseguiram.
Mino Carta: Mas é claro, eles estavam em busca das provas e não estavam achando.
Reinaldo Azevedo: Ninguém acendeu o sinal verde: "Vai lá e agora pega". Não foi assim!
Mino Carta: E a CPI ia se encerrar sem nada, sem... E o senhor Collor continuaria governando e concluiria seu mandato tranqüilamente. O Prêmio Esso de Jornalismo, que aliás, oferece oportunidades para acertos fantásticos embaixo do pano, por trás das cortinas e tal, porque [é] "eu dou essa coisa para você e você dá essa coisa para mim e no ano que vem que vem você vai ganhar" etc e tal, nós sabemos como é que funciona este negócio. Então, o Prêmio Esso foi dado à revista Veja, quando obviamente deveria ser dado ao pessoal da sucursal de Brasília da revista IstoÉ. Seria assim em qualquer país do mundo. Não é aqui, porque aqui nós temos a elite mais feroz, mais determinada, mais resistente do mundo. E, referindo-se à sua pergunta, com referência à sua pergunta de há pouco sobre porque no tempo de Vlado, [quando] nós estávamos no fundo, era um tempo melhor, por quê? Porque estávamos cheios de esperança, acreditávamos que no dia em que raiasse o sol da liberdade, seria liberdade mesmo. E olha, não raiou sequer a lua. Aqui a névoa é espessa. Aliás, graças a Fernando Henrique Cardoso, conseguiu-se formar a aliança de direita mais determinada, mais compacta de todos os tempos da história do país, debaixo da égide desse santo.
Reinaldo Azevedo: Que pode ser denunciada por aqueles que quiserem denunciar, o que não se poderia na época do Vlado.
Mino Carta: Não, não. Podem denunciar o que bem entenderem, mas nas questões substantivas não acontece absolutamente nada.
Reinaldo Azevedo: Mas não é a sociedade que tem que fazer as questões substantivas Mino?
Mino Carta: Hein?
Reinaldo Azevedo: Não é a sociedade que tem que fazer as questão substantivas, Não o jornalismo?
Mino Carta: Mas como se a sociedade é completamente manipulada, se a "teoria do medalhão" funciona tão admiravelmente neste país.
Reinaldo Azevedo: Mas funciona nos partidos, nos sindicatos, no...
Mino Carta: Eu acho que funciona em geral, eu acho que hoje, neste exato instante, o único movimento que me parece digno de algum respeito é o MST [Movimento dos Sem Terra].
Ziraldo: Mino, eu queria falar um pouquinho sobre a sua personalidade, quer dizer, porque a gente está entrevistando... Esta visão do Brasil que você tem, que me faz ter também uma admiração quase tão grande por você como tem o Tão, e o Nirlando Beirão [close em Carta rindo], que te chamou - Nirlando é adjetivoso como ninguém - o Nirlando e o Tão estão na sua lista. Aliás, por acaso, aqui na... você foi capa da minha revista [mostra a capa da revista Bundas, em que Mino Carta aparece em uma montagem com dois chifres de diabo e uma auréola de anjo].
Mino Carta: O que é isso? [Risos] Não, espera aí! Posso levantar?
Paulo Markun: Pode, pode.
Mino Carta: Posso trafegar pelo estúdio?
Paulo Markun: Graças ao microfone sem fio!
[Carta levanta-se da cadeira e vai até Ziraldo pegar o exemplar de sua mão, a fim de ver com mais detalhe, retornando logo ao seu lugar no centro da roda]
Mino Carta: Ah, sim. Puxa Vida!
Ziraldo: Estou falando sobre o negócio da personalidade.
Mino Carta: Mas é um demônio santo, não é?
Ziraldo: Não. É. É anjo e demônio.
Paulo Markun: Se você enquadrar, já que estamos no departamento de mostrar a revista do...
Mino Carta: O que é que eu faço? [Carta vira a capa do exemplar, antes voltada para si, para uma das câmeras do estúdio. Ao lado da foto de Carta, aparece o título da matéria "Quem tem medo do Mino Carta?"]
Paulo Markun: Até aí. Aí está bom. [Dando as orientações sobre a inclinação para Carta exibir a entrevista, de modo a não ter reflexos dos refletores do estúdio].
[...]: Assim.
Paulo Markun: Beleza.
Ziraldo: Pois é. Vocês podem cumprimentar amanhã a entrevista de hoje lendo a Bundas. Mas quero dizer o seguinte, porque tem um... "Quem tem medo do Mino Carta?" E essa coisa... nós transformamos você em "meio anjo, meio demômio". Quer dizer, eu acho, aí estou falando da sua personalidade, acho que é um pouco uma imagem que você gosta de cultivar [Carta ri]! Eu gosto da sua coragem e admiro muito essa coisa de você falar que o Brasil que te fez jornalista porque você chegou: "Aqui eu tenho que ser jornalista porque este país precisa dessa coisa"...
Mino Carta: É.
Ziraldo: Quero dizer que vocês três, o Paulo Henrique Amorim, o Tão e o Nirlando Beirão, são citados nesta entrevista como um dos três maiores jornalistas que o Mino conheceu.
Paulo Henrique Amorim: Obrigado, obrigado.
Tão Gomes Pinto: Muito obrigado.
Ziraldo: Agora, o Nirlando...
Mino Carta: Mas têm outros que eventualmente não privam comigo!
Ziraldo: Sim, mas estou falando desses. Mas o Nirlando...
Mino Carta: Mas esqueci, certamente muitos.
Ziraldo: Mas o Nirlando gosta muito de elogiar quem tem poder, ele é fascinado por quem tem poder [risos]. Outro dia ele deu uma lambida no Waltinho Moreira Salles [Walter Moreira Salles Jr., cineasta, diretor de Central do Brasil. Filho de Walther Moreira Salles (1912-2001), fundador do Unibanco] que eu fiquei estarrecido, mas agora o que ele fez em elogio a você no artigo que eu li aqui na internet é estarrecedor! Então, ele acaba te fazendo um elogio que eu acho que você não deve gostar muito. Eu queria saber o seguinte, duas coisas só, falando da sua personalidade, você gosta de que tenham medo do Mino Carta? E segundo, você é um rochedo de convicções? Não é possível, eu acho que você é um mar de dúvidas, eu queria... gosto muito mais dessa coisa maleável.
Mino Carta: Agradeço muito.
Ziraldo: E o Nirlando te chama de rochedo de convicções, Mino. Você virou um ditador e um autoritário, o que você acha? Você gosta de que tenham medo de você? Você é um rochedo de convicções?
Mino Carta: Não. Não. Primeiro, não gosto de que tenham medo, mas eu espero que ninguém tenha medo, em primeiro lugar. Não gostaria de causar medo. E, em segundo lugar, eu sou uma dúvida ambulante [risos]. Agora, em relação a certas coisas não há como escapar à convicção.
Ziraldo: Claro, claro.
Mino Carta: Entende? Por exemplo, se eu falo dos manda-chuvas do país, se eu falo dos donos do poder, como diz Raymundo Faoro [(1925-2003), autor de Os donos do poder, obra que critica a herança patrimonialista brasileira], eu tenho a convicção de que eles são os responsáveis pela situação que estamos vivendo, que é um situação terrível, as pessoas fingem que não, que não é com elas, entende? São Paulo e Rio estão entre as cinco cidades mais violentas do mundo, emparelhadas com Cali, Medellín, uma cidade da Cisjordânia...
Paulo Henrique Amorim: Ramallah.
Mino Carta: É, Ramallah.
Paulo Henrique Amorim: Isso.
Mino Carta: Quer dizer, cinco cidades... Esta é a situação, existe uma guerra civil não declarada, mas claradamente...
Ziraldo: Morre mais gente em São Paulo do que no Oriente Médio.
Mino Carta: Sim, entre São Paulo...
Paulo Henrique Amorim: Em Ramallah é igual.
Mino Carta: E...
Paulo Henrique Amorim: Em Ramallah é igual.
Ziraldo: É igual?
Paulo Henrique Amorim: É.
Tão Gomes Pinto: Mino, uma pergunta, aquela guerra civil...
Mino Carta: E chegamos a esta situação como? E as pessoas fingem que não vêem, mas é como se pretendessem passar na frente da favela e se acostumar tanto com a paisagem que te parece normal que ela esteja lá. E é assim, entende? Todos os nossos números nestes últimos seis anos pioraram, com exceção da inflação, que realmente foi domada, e graças a um plano certamente inteligente, mas exposto, talvez que, quem sabe, devesse ter recebido uns retoques, exposto a problemas, a chuvas e trovoadas, mas de qualquer maneira é discutível isso. E a mortalidade infantil, que realmente teve uma melhora nesse número. Todos os outros números estão piores, muito piores.
Paulo Henrique Amorim: Mino, já que estávamos falando de Machado de Assis e, para não dar a impressão que você é um Casmurro [personagem narrador do livro Dom Casmurro, de Machado de Assis], o livro O castelo de âmbar também tem perfis de personagens emocionantes, pessoas de quem você genuinamente gosta e elogia...
Mino Carta: Claro.
Paulo Henrique Amorim: ... de forma quase tão transbordante quanto o Nirlando Beirão. Eu me lembro, por exemplo, que você fala do Raymundo Faoro como um profeta.
Mino Carta: Sim.
Paulo Henrique Amorim: Sei que nessa categoria de pessoas que você admira e que foram importantes na sua vida tem também o Cláudio Abramo, jornalista como nós. Por que você não fala um pouco do Faoro e do Cláudio?
Mino Carta: Bem, o Faoro, eu conheci, na verdade quando eu sai da Veja, ele me ligou solidarizando, eu já tinha lido...
Paulo Henrique Amorim: Você não o conhecia?
Mino Carta: Não, não. Toca o telefone, do outro lado está o senhor Raymundo Faoro. Aí, acabei conhecendo quando ele já presidia a OAB [Ordem dos Advogados do Brasil] e almoçávamos bacalhau no [...], no Rio de Janeiro, e eu fiquei encantado com a ironia, com a ironia do desabusado, do cético desabusado. E um homem de extrema coragem e profeta, por quê? Ele próprio explica, na entrevista que ele deu ao Bob [Fernandes] e a mim, recentemente, que está na capa da última...
Paulo Henrique Amorim: Nesse número?
Mino Carta: Exato, da última Carta Capital. A primeira etimologia da palavra, o significado da palavra é mensageiro. Mensageiro que vinha para criticar uma situação. E ele é profeta nesse sentido, porque na verdade ele escreveu um livro tão admirado... Aliás, escreveu dois livros, ambos admiráveis, um deles é o Pirâmide e o trapézio [Raymundo Faoro é autor de Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio], que diz respeito ao Machado, quer dizer, é uma análise de política mostrando como Machado era um crítico de costumes formidável, e como ele via o país, como, de alguma forma, ele também era um profeta, porque antecipava as coisas ao fazer uma leitura correta que os contemporâneos não sabiam fazer. E isso pode ser dito também, sobretudo, até desse ponto de vista, em relação a Os donos do poder, que é uma reconstituição dos caminhos, dos caminhos do poder entre Portugal e Brasil, da Dinastia de Avis [reinou em Portugal de 1385 a 1580] a Getúlio Vargas. Mas você tem aí os elementos para imaginar o que acontecerá depois. Você já sabe, se você faz uma leitura correta do livro você chega lá. Quanto ao Cláudio, o Cláudio eu conheci menino, mal tinha chegado aqui e meu pai trabalhava no Estado [O Estado de S. Paulo] e escrevia todos os dias um artigo, porque meu pai dirigia a seção internacional do "Estadão" e esse artigo era uma espécie de súmula do dia, intitulava-se... era uma rubrica intitulada de um dia para o outro. Escrevia em italiano, tínhamos chegado há meses. E o Cláudio foi chamado para trabalhar no Estado, porque era um moço muito promissor e tal, todo mundo sabia que o garoto daria certo. Mas além disso, porque ele era filho de italianos, sabia perfeitamente italiano e traduzia meu pai, e foi neste tempo que nós ficamos amigos. E eu acompanhei muito o Cláudio, tinha grande admiração por ele, sempre tive, acho que foi o maior jornalista brasileiro dos últimos cinqüenta anos, talvez 225. [Risos]
[...]: Talvez Cláudio, Líbero Badaró e...
Mino Carta: Parafrasendo...
[Falam simultanemante]
Tão Gomes Pinto: Deixo eu colocar, você disse que o Mesquita foi um dos melhores patrões.
Ziraldo: Já falamos disso três vezes, não é? Aqui, aqui e no livro.
Mino Carta: Sim, sim.
Tão Gomes Pinto: Agora, aqui está no seu livro [lê um trecho do livro]: "Ao morrer, Alberti..." - Alberti é o Cláudio Abramo - "... leu-se, entre outras, estampada no arauto" - que é o "Estadão" - "a afirmação de que ele fora um grande repórter".
Mino Carta: Sim.
Tão Gomes Pinto: Ponto final.
Mino Carta: Sim.
Tão Gomes Pinto: O "Estadão" reduziu Alberti, Cláudio Abramo, à função de um grande repórter.
Mino Carta: Sim, essas coisas são coisas tristes, são coisas lamentáveis, mas eu me dei muito bem com os Mesquita enquanto trabalhei lá, e eles se portaram sempre muito bem comigo, era um tempo que eu me considerava um profissional, entende? As idéias deles não batiam com as minhas... Eu devo confessar que, ao regressar ao país em 60, eu tinha um certo ceticismo, digamos, um certo pessimismo na inteligência em relação à esquerda brasileira. Nunca confiei muito, eu confesso. Embora tenha enorme admiração por alguns esquerdistas brasileiros, por exemplo, Marighella [Carlos Marighella (1911-1969), jovem militante nos tempos da ditadura, filiado ao Partido Comunista do Brasil, morto a tiro em emboscada no centro da cidade de São Paulo], uma pessoa pela qual eu tenho grande admiração.
Reinaldo Azevedo: Pela coragem pessoal?
Mino Carta: Pela coragem pessoal, por algumas idéias que ele teve, que já eram meio antigas, talvez. A idéia da guerrilha urbana, por exemplo, inaplicável no Brasil... Mas, enfim, era uma pessoa séria, corajosa e disposta a ir até as últimas conseqüência. E houve muitos, diga-se, como ele...
Reinaldo Azevedo: E o Lula?
Mino Carta: ... ou então intelectuais como Caio Prado [Caio da Silva Prado Junior (1907-1990), geógrafo, historiador e escritor. Foi professor da Universidade de São Paulo, pertenceu à Aliança Nacional Libertadora de São Paulo e, posteriormente, foi eleito deputado estadual pelo Partido Comunista Brasileiro. É autor de importantes livros como Formação do Brasil contemporâneo], o Caio Prado que... enfim, mas eu acho um protótipo perfeito desses esquerdistas de quem eu desconfiava...
Reinaldo Azevedo: Mino, deixa eu te fazer uma pergunta precisa...
Paulo Henrique Amorim: Quem era, Mino?
Mino Carta: O Fernando Henrique Cardoso, entende? [Risos] Porque eu, desde que vi o Fernando Henrique, senti nele essa coisa... [sendo interrompido]
Reinaldo Azevedo: Mas nunca foi de esquerda, não é, Mino? A teoria da dependência não é de esquerda. Eu quero que alguém me prove que a dependência é uma tese de esquerda. Foi um erro brutal.
Mino Carta: Mas escuta, o primeiro livro dele, que é aquele sobre...
Reinaldo Azevedo: Sobre o escravismo...
Paulo Henrique Amorim: Escravidão no Brasil meridional [Capitalismo e escravidão no Brasil meridional - O negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul, 1977].
Mino Carta: No prefácio está escrito: "Eu usei aqui o método dialético marxista", prefácio escrito por ele. Quando ele me disse que, já nesse tempo, ele misturava Karl Marx com Weber, ou seja, 61, 62, eu disse ao Fernando Henrique: "Escuta, mas no prefácio, eu me lembro que estava escrito assim". Ele disse: "Não, não, mas na segunda edição eu tirei a referência!". [Risos]
Reinaldo Azevedo: Mino, você citou o Cláudio Abramo, que era marxista, mais propriamente trotskista e, portanto, tinha um marco claro de economia política que a gente conhecia, não é? E creio que, um dos últimos textos, senão o último que ele escreveu, um textinho lá na Folha, chamava "Culpa dos oprimidos", em que ele estava meio com saco cheio, acho que você lembra do texto, meio assim: "Olha...". Meio assim: "Desisto do povo, não dá e tal".
Mino Carta: Sim, era um desabafo...
Reinaldo Azevedo: Tomei aquilo como um texto assim, antecipando a morte, porque na verdade morria ali a esperança, também, de qualquer revolução e tal.
Mino Carta: Sim, sim.
Reinaldo Azevedo: Qual é seu marco? Você é marxista? Seu marco é de classe? Quando você fala dos poderosos, eu queria entender, é de classe social que você fala?
Mino Carta: Quando eu trabalhei na Itália, porque eu saí daqui...
Reinaldo Azevedo: Porque tem poderosos, como meu amigo Nirlando lambe, mas tem outros poderosos, também, que a imprensa de esquerda lambe, que são poderosos também. O MST é muito poderoso e a imprensa lambe o MST também, não é mesmo?
Ziraldo: Poderoso? [Risos]
Reinaldo Azevedo: Não? Eu te provo por números daqui há pouco.
Ziraldo: Quem sabe é o Mino.
Reinaldo Azevedo: Eu quero saber, o marco é marco de classe social?
Mino Carta: Não. Não vamos nos perder pelo...
Reinaldo Azevedo: Não, não. Você é marxista, Mino?
Mino Carta: Não, acho que Marx é um grande filósofo, um pensador notável. Eu aprecio muitas coisas de Marx, mas não sou marxista nesse sentido. Agora, quando eu estive na Itália, os meus amigos todos eram do Partido Comunista e, então, eu me liguei muito a eles. E cheguei aqui com idéias comunistas, comunismo italiano, que sempre foi um... Eu sou profundamente gramsciano; não sou marxista, sou um gramsciano.
Reinaldo Azevedo: Gramsci seria mais otimista na situação do Brasil atual, não seria?
Mino Carta: Na visão, no Brasil atual?
Reinaldo Azevedo: É.
Mino Carta: Mas, meu caro, eu sou muito otimista. A longo prazo.
Reinaldo Azevedo: A longo prazo? [Risos]
Mino Carta: Agora, eu gostaria de assistir [risos]. Eu gostaria de assistir a essa transformação fantástica, entende?
Reinaldo Azevedo: Mas você está fora do cárcere.
Mino Carta: Todos nós gostaríamos. Não. Eu, evidentemente, o meu tempo é curto, as clãs demonstram isso, provam largamente, mas eu gostaria que sobrasse para os meus netos e eu tenho dúvidas que sobrem para eles. Eu acho que temos que começar a pensar em cem anos. Aliás, a gente que sabe fazer esses cálculos fala em cem anos para poder recuperar o país de tantos erros.
Ziraldo: É o que começou em 64, não é? O que começou em 64 vai demorar cem anos ainda.
Mino Carta: Não, se é por isso começou... começou com a independência, na verdade...
Tão Gomes Pinto: Começou com a libertação dos escravos.
Mino Carta: ... porque o Líbero Badaró, que você [dirige-se a Tão] tanto admira, viveu aqui nesse tempo. O Brasil era pouco independente. Começou e continuou. Agora, realmente em 1964, até em função da industrialização, até em função de Volta Redonda, de uma séria de coisas que estavam acontecendo, da Petrobras, o país estava tomando um certo rumo, talvez até daí surgisse um proletariado, um proletariado consciente da sua condição de proletariado. Porque você não cria grandes partidos de esquerda, eficazes, porque o problema da nossa esquerda foi também que ela sempre foi muito ineficaz. Mas partidos de esquerda tem que ter o caldo de cultura de um proletariado disposto. A decepção do Cláudio [Abramo] era essa, entende? Não tem, não se formou um proletariado, você vai para São Bernardo, que se há um lugar do país onde deveria existir um proletariado [é ali] e, eventualmente, o [Paulo] Maluf ganha por lá, ou os homens do Maluf ou, enfim, o populismo mais reles, mais velhaco, não é? Então, é isso.
Maria Bonomi: Mino, você é pintor, não é? Eu estou aqui por causa disso, porque o resto passa, viu? Toda essa história... A grande alegria de ler “fui jornalista por causa do Brasil”. Então, nessa altura, Mino, que estava tendo um sucesso forte, jovem pintor Carlo Carrà [(1881-1966) pintor italiano, considerado fundador do futurismo], Sironi [Mário Sironi (1885-1961), pintor italiano modernista, grande nome do futurismo], estavam olhando para o Mino na Itália. Ele tinha ganhado prêmios na Itália importantes de pinturas, estava surgindo e, de repente, ele vem para cá, decisão de vida, de sobrevivência e, de repente, Sérgio Milliet [Sérgio Milliet da Costa e Silva (1898-1966), crítico de arte, fundou a revista Cultura em 1925 com Oswald de Andrade e Afonso Schimidt; criou, junto com Mário de Andrade e Paulo Duarte, o Departamento de Cultura de São Paulo], com quem ele priva, Portinari [Cândido Portinari (1903-1962), pintor modernista de maior repercussão mundial], Rebolo [Francisco Rebolo Gonsales (1902-1980), pintor paulitano modernista de grande participação na promoção do movimento artístico na cidade, tendo sido um dos fundadores do MAM - Museu de Arte Moderna de São Paulo], toda essa gente, você teve como interlocutores o Pietro Maria Bardi, [(1900-1999) nascido na Itália, fez carreira no Brasil como jornalista, historiador e expositor de arte, tendo sido fundador, ao lado de Assis Chateuabriand, do Masp], o Jacob Klintowitz [jornalista e crítico de arte brasileiro]...
Mino Carta: Que, aliás, está no livro! O Bardi está no livro e é um dos heróis do livro, é o professor.
Maria Bonomi: Pois é, e você teve grandes interlocutores.
Mino Carta: Sem dúvida.
Maria Bonomi: O Bardi, o Klintowitz, enfim, toda esta parte das artes plásticas te brindou com pessoas que te respeitam muito, te respeitavam e que criaram com você um tecido inexpugnável, que foi justificativa de você ter estado neste país, enquanto aquele outro setor era um setor que não soube apreciar, talvez, ou vai apreciar daqui cem anos - visto que a data é essa, que foi estabelecida [Carta ri]. O fato [é] que você nunca fez concessões, nunca; sempre teve uma grande lucidez, uma grande coerência, e talvez fosse um homem moderno, adiante do seu tempo. Então, de repente, você estava lidando com pessoas cuja origem eram as capitanias, não é? Eu acho que aí é que acontece o problema, não é em 1964. O Brasil se dividiu entre pessoas que ganharam as terras e que lutaram pelas terras. Os italianos imigrantes eram pessoas que não tinham tido capitanias e os outros imigrantes também. Este é o grande divisor de águas. Você continuou pintando, você tem uma carreira de artista considerável, exposições de sucesso, e eu ia te perguntar uma coisa que eu vivo pessoalmente muito forte, depois você vai me responder por que essa situação de dolore mezzo gaio [dor meio alegre]. Você sabe que existem também os patrões da arte, você sabe que existem também os patrões da cultura e, como tudo passa pela arte, pela cultura e pela educação, o resto se torna impossível. Depois vem o jornalismo, a política... Eu estava lendo Paul Virilio agora, 1977, Velocidade e política, é um livro fantástico. Tudo isso está lá atrás, está matado e, de repente, eu vejo você aqui hoje se debatendo com questões que deveriam pertencer ao passado. Eu não entendo como um patrão de um museu usa o museu para fins pessoais, e como um patrão de um jornal ou revista faça a mesma coisa. Então, essa é uma tendência que existe em todos os setores. Você luta contra isso numa área, eu em outra; a trincheira é a mesma.
Mino Carta: É verdade.
Maria Bonomi: Mas há pessoas tão inteligentes, inclusive eu faço aqui um... Há patrões que souberam que não era por aí e que lutaram do lado da verdade, porque discussão aqui é: a verdade ou a mentira. Quando você faz um trabalho jornalístico, e ele é verdadeiro, e cai no vazio... como você disse, nós fazemos um trabalho cultural todo dia e cai no vazio também. Então, essa questão que eu queria te perguntar. Essa generalidade de comportamento, essa linguagem comum, esses hábitos comuns: como você sente, como você pressente o espaço que é dado ao jornalista, que pode escrever - e, no fim, eu vejo que você não pode escrever o que você pensa, porque você incomoda. Você sempre pintou o que quis pintar, alguém te incomodou?
Mino Carta: [Risos] Não, não me incomodaram como pintor. Agora, como jornalista também eu sempre fiz o que eu achei que deveria fazer, e quando não deu para fazer mais, tirei o time de campo. Mas acho que há outros, há outros que fazem isso. O Paulo Henrique [Amorim], por exemplo, que está na minha frente, ele inclusive tinha um programa excelente na televisão, de informação, um programa diário, importante e o perdeu, não é? Agora está fazendo isso aqui na Cultura, graças ao bom Deus ou não sei a quem! [Close em Amorim rindo] Todos aqui se esforçam para fazer o seu serviço dignamente, e há outros em vários cantos, tirando, digamos... Carta Capital é uma coisa bastante compacta, como de resto a Bundas. São coisas que o órgão está tomando uma posição. Caros Amigos é outra publicação, cada um a seu modo, mas é gente que exercita o espírito crítico e fiscaliza o poder. Agora, você tem muitos colunistas, você tem articulistas, vários lugares, você tem às vezes economistas, professores de universidades que escrevem nos jornais, artigos críticos, artigos fortes, artigos que têm peso, não é? Agora, quando você se refere aos patrões da cultura, você se refere em geral aos donos do poder. São todos iguais, eu tive uma lida difícil, às vezes até dolorosa, com os patrões da imprensa, porque eu tinha amizade por eles eventualmente, entende? E aí o choque foi muito desagradável.
Maria Bonomi: Você não acha que era quase um problema de conversão? Porque eu dediquei muitos anos à conversão, eu faço um trabalho de catequese na área cultural [risos], das artes plásticas, permanente, me considero assim... uma freira, uma monja, eu vou lá, convenço, faço. Às vezes, quase surge um espaço para a gente, uma correspondência. Eu estou, no momento, até profundamente encantada com um jornalista que é um crítico de artes, o Daniel Piza, porque eu estou sentindo que ele vai passar por tudo aquilo que o Mino passou, que tanta gente passou, porque ele enveredou pela verdade assim batido, ele está indo, ele está indo, estou esperando só para ver o tiro...
Reinaldo Azevedo: Mino, na verdade é geralmente as pessoas que concordam com a gente ou existe uma verdade neutra, na sua opinião? É uma pergunta mesmo, eu sei, um pouco profunda demais, talvez, mas... [Risos]
Mino Carta: É profunda.
Reinaldo Azevedo: Geralmente não é verdade que quem concorda com gente, não... se são feita a matemática e olhe lá... aritmética?
Mino Carta: É uma pergunta profunda. Eu acho que existe uma coisa que se chama verdade factual e essa é indiscutível, não há o que discutir. Você está tomando água e este é um copo, você está usando gravata, entende? Então, isso é verdade factual e a verdade factual não se discute. Agora, o jornalista tem que ter essa fidelidade canina em relação à verdade factual, ao meu ver. Agora, no mais, exigir do jornalista a objetividade, para mim sempre foi uma besteira...
Reinaldo Azevedo: Você se diz gramsciano...
Mino Carta: Você tem que exigir do jornalista honestidade.
Reinaldo Azevedo: Você se diz gramsciano, você acha que o Gramsci, lá no cárcere, escrevendo e tal, diria que os patrões são todos iguais ou ele imaginaria uma tentativa de sair disso que acaba se constituindo... um dilema, não é? Porque se eles estão do lado de cá e são todos iguais, nós estamos do lado de lá e também somos, em princípio, todos iguais, não somos eles.
Mino Carta: Eu não acho que patrões são todos iguais e, como eu disse, eu tive, por exemplo, ótima relação com os senhores Mesquita, no Estado, era uma relação muito nítida, muito clara, eu tinha uma autonomia técnica total, fiz realmente o que bem entendi. Mas a opinião era deles, não era minha. Eu poderia discordar à vontade nos papos extra-jornal, no bar e tal, mas no jornal quem decidia eram eles. Depois eu tive grande amizade pelo Domingo Alzugaray, fomos amissíssimos, fizemos a IstoÉ juntos. Quer dizer, eu cuidava da parte editorial, ele cuidava da parte administrativa, financeira.
Tão Gomes Pinto: Garbos Chaves [personagem do livro que representa Domingo Alzugaray]?
Mino Carta: Garbos Chaves. Me dizem que ele está triste com meu livro, que não gostou [risos], a julgar pelo... Mas olha, é a tal história, o Garbos Chaves foi empurrando para fora, entende? Da revista. Ele queria que eu saísse quando, ele deu uma entrevista para, para...
Tão Gomes Pinto: Para a revista Imprensa.
Mino Carta: Para a revista Imprensa.
Tão Gomes Pinto: Jornalistas.
Mino Carta: Jornalistas, em que ele falava da IstoÉ sem me citar em nenhum momento. Uma entrevista grande, fluvial, em que ele afirmava os planos dele e tal: "Pá, farei isso, a IstoÉ vai por aqui e tal...". Era um recado claríssimo, todo mundo me disse: "Olha, está te dando um recado, você está fora desta revista, já está saindo". Se não me engano era abril, maio, de 1993.
Tão Gomes Pinto: Mino, eu queria...
Mino Carta: Quando eu cheguei a ele, ao cabo de muitos empurrões, e disse a ele: "Olha, Domingo, assim não dá, eu vou embora, tudo bem, não tem problema", ele aceitou na hora, não esboçou um mínimo gesto! [Risos] Agora, vamos e venhamos, eu fiz grandes bobagens em relação à IstoÉ, porque quando eu cismei com o Jornal da República e convenci o Domingo a fazer o Jornal da República e demos com os burros n´água rapidamente, por, eu acho, erros de ambos, porque ele não tinha calculado que a reação seria aquela, ele pensou que o Jornal da República teria o mesmo êxito que IstoÉ tinha tido e, depois, verificamos que não era assim, ele veio a mim e disse: "Vamos fechar este negócio". E disse: "Não, não, vamos...". A certa altura eu disse: "Não, não, então eu vou embora e te vendo a minha parte". E fizemos promissórias que depois ele, com incrível generosidade, rasgou e jogou fora, anos depois. Quando eu voltei à IstoÉ... que, aliás, quando eu fui trabalhar com ele na Senhor, que ele transformava de mensal em semanal e queria a mim para dirigir a semanal, ele me disse: "Olha, patrão, você, nunca mais! Você vai ser meu empregado". Eu achei perfeito, ele estava certo, porque eu realmente sou um desastre como empresário, entende? E a culpa de termos perdido a IstoÉ foi minha, e o Mercúcio Parla diz: "Perdemos essa e essa..."
Reinaldo Azevedo: Você acha que é fácil ser seu patrão, Mino? [Risos]
Mino Carta: Não, não sei, mas com o Domingo a relação...
Reinaldo Azevedo: É por aí que eu quero ir.
Mino Carta: Com o Domingo a nossa relação era excelente. Agora, eu não entendo como é que ele ficou chateado comigo. Agora, realmente...
[Falam simultaneamente]
Reinaldo Azevedo: Quem é patrão de Mino Carta, como é que faz?
Mino Carta: Deixa eu concluir.
Ziraldo: Eu não queria ser! [Risos]
Mino Carta: Deixa eu concluir, eu não contei nada inventado, o Domingo tinha um projeto para a editora dele, mais do que legítimo, ele queria fazer uma grande empresa. E fez, ele queria, esse era o projeto dele. Ele queria também uma televisão, talvez rádio, enfim, essas coisas, que...
Paulo Henrique Amorim: Mino, vamos tentar... deixa eu trazer você um pouco para o...
Mino Carta: Não, mas eu quero concluir essa parte, se você mo permite.
Paulo Henrique Amorim: Pois não, pois não, claro.
Mino Carta: "Mo permite" é boa! [Risos]
Paulo Henrique Amorim: Mo permite...
Reinaldo Azevedo: Finíssima língua portuguesa.
Paulo Henrique Amorim: Estamos em Machado [de Assis].
Ziraldo: Ele é doido por Machado.
Mino Carta: Eu não inventei nada! Agora, na hora que eu vou contar a vida do Mercúcio Parla eu devo contar isso, entende? Porque realmente foi uma coisa muito dolorosa e a IstoÉ, vamos e venhamos...
Reinaldo Azevedo: Porque não damos o nome real das pessoas, já que está todo mundo...
Mino Carta: ... quem a fez fui eu, eu e uma equipe. Aliás, eu não me canso de repetir que jornalismo é um trabalho de equipe.
[Falam simultaneamente]
Ziraldo: Por que você fez a Clefe, esse romance... Você adora quem descubra... o Richard Bitter - o Carlos, seu amigo, Carlos Richard Bitter, que deu com o maior cuidado, mandou até uma listinha para mim [erguendo as folhas de papel que portava].
Mino Carta: Que aliás está no livro.
Ziraldo: Ele mandou com todos... quer dizer, você fica fascinado quando as pessoas descobrem! Então, por que você não... Porque tem uma coisa, eu quero falar sobre você, eu digo o seguinte: você escrevendo esse romance, tem o que você chama de conto, é uma reportagem, você conta sobre toda a sua passagem pela Veja e toda sua relação com os Civita...
Mino Carta: Sim.
Ziraldo: Então, eu, o que eu queria falar com você sobre você é isso. Por exemplo, eu li, eu não acabei de ler seu romance ainda, está difícil de atravessar ele, eu falei para você que o conto eu gosto mais, porque é não literário [risos]. Então, por exemplo, você adora... eu gosto de ver você falar, essa coisa corrente de se falar, usar bem os adjetivos, mas você acha que tem duas maneiras diferentes de escrever. Por exemplo, só aqui [lendo texto que trouxera em uma folha avulsa]: “Dona Camomila foi por 25 anos secretária fiel e competente de Parla, e desenvolveu por ele uma admiração sem limites”. Isso é como você escreve o conto. Olha como é que você escreve o romance [lendo trecho do livro]: “Dona Camila foi de Parla secretária fiel e competente por 25 anos e por ele desenvolveu...". Você faz estilo! Quer dizer, existem duas maneiras de escrever? Existe uma maneira literária de escrever?
Mino Carta: Não, veja...
Ziraldo: Quer me explicar, Mino?
Mino Carta: Olha, a tua opinião eu respeito muito, agora eu vou explicar porque eu quis realmente usar três estilos diferentes, na verdade: o estilo do advogado, o estilo desse jornalista que quer escrever... [movimenta as mãos no ar como a expressar algo rebuscado]
[...]: Mercúcio.
Mino Carta: E o contrário, exatamente o conto, porque o conto é, digamos, não é a ficção... mas a ficção escrita com estilo jornalístico, seco.
Ziraldo: Então, você não tem pretensões literárias, de ser um escritor?
Mino Carta: Não, não. Eu acho que a língua tem que ser usada, acho que a língua portuguesa...
Maria Bonomi: Eu achei que era um grande roteiro de cinema, viu? [close em Carta rindo] Do jeito que está escrito aqui... É, totalmente visualizável como um filme...
Ziraldo: Espera aí, você não respondeu minha pergunta, Mino!
Mino Carta: Eu escrevi com três estilos diferentes. Quis escrever, se consegui isso, acho ótimo, porque era o intuito.
Ziraldo: É um exercício mesmo, no romance?
Mino Carta: Sim. Agora, me influenciou muito quando lia, porque te confesso que leio muito pouco hoje em dia. Mas quando eu lia me influenciou muito a literatura inglesa, por exemplo, Laurence Sterne, Dickens... são autores ricos, não é? Machado era um autor maravilhoso.
Ziraldo: Eu também acho.
Mino Carta: Desculpe, é uma linguagem riquíssima.
Tão Gomes Pinto: Mas Mino, mesmo a parte ficcional do seu trabalho, era toda ela calcada na realidade.
Mino Carta: Sim, calcada na realidade, com algumas fusões de personagens, entende? A minha história no Arauto, por exemplo, funde minhas experiência com as experiências do meu pai, que não era um ex-professor de história de arte.
Ziraldo: Pois é, escuta aqui, não era não?
Mino Carta: Era jornalista.
Ziraldo: O negócio é o seguinte, você fala do seu pai com uma grande admiração.
Mino Carta: É lógico.
Ziraldo: Um carinho imenso por ele e tal... na entrevista que você deu para nós isso transparece pelo que eu conheço você e, no entanto, poucas pessoas querem ser seu patrão ou querem ser seu pai, quer dizer, o que você tem contra a figura do cara que está sobre você? Você já fez uma análise para saber se você está brigando com seu pai quando você briga com seus patrões todos? [Risos]
Mino Carta: Você não acha que essa é a solução mais fácil, aí e tal...? [Risos]
Ziraldo: Freud americano. Freud para americanos!
Mino Carta: Eu acho, assim... acho porque, como você bem disse, eu sou um conjunto de dúvidas que anda sobre duas pernas.
Ziraldo: Graças a Deus!
Mino Carta: Sim, mas eu sou mesmo. Então, eu não tenho tantas certezas para afirmar coisas nesse campo para afirmar isso ou aquilo. Mas eu, em princípio, acho que tenho uma confiança espontânea no meu interlocutor. E eu, em princípio sou a favor do meu interlocutor.
Reinaldo Azevedo: Você já fez análise Mino, se é que você pode falar?
Mino Carta: Sim, fiz um pouco de análise, muito superficialmente a bem da verdade, mas...
Paulo Henrique Amorim: Mino, se você pudesse dizer para um jovem que está tentando começar a vida, você diria que deveria ser jornalista?
Maria Bonomi: Ou pintor?
Ziraldo: No Brasil... [risos] qual é o mais importante?
Mino Carta: No Brasil, [seria] muito bom se ele tivesse chance de independência, não é? Se ele tivesse, por exemplo, sei lá, digamos, Dora Kramer, uma coluna na qual ela escreve o que bem entende, por exemplo. Aí eu acho bom ser jornalista.
Tão Gomes Pinto: Uma coisa que me perguntam muito...
Mino Carta: Ou pelo menos que esse pudesse ser o objetivo de vida, porque não é uma coisa que se consegue no momento em que você começa a trabalhar em jornalismo.
Tão Gomes Pinto: Uma coisa que estudantes de jornalismo me perguntam muito, agora que eu estou na revista Imprensa, é se eu já escrevi muitas vezes coisas forçadas, contra minha opinião. Eu digo: "nunca escrevi, nunca escrevi nada contra minha opinião".
Mino Carta: Sim.
Tão Gomes Pinto: Aí eu acho que nenhum jornalista escreve contra a sua opinião na verdade, não é?
Paulo Henrique Amorim: Não, espere aí, Tão. Eu fui editorialista e discordei de um monte de coisas que eu escrevi.
Ziraldo: É, muita gente boa é editorialista...
Reinaldo Azevedo: Mas você assinava?
Paulo Henrique Amorim: Não assinava, editorialista não assina!
Ziraldo: Know-how, know-how.
Paulo Henrique Amorim: Vamos nos prender aqui à técnica da profissão: editorialista não assina. Está certo?
Reinaldo Azevedo: Sim, eu sei que não assina, por isso que perguntei.
Paulo Henrique Amorim: Já tratamos de questões técnicas antes, voltamos, editorialista não assina.
Ziraldo: Não é a opinião dele, ele está prestando um serviço.
Paulo Henrique Amorim: Claro, eu já escrevi um monte de coisas com as quais eu não concordo.
Tão Gomes Pinto: Agora, eu nunca... eu não me lembro de ter escrito nada...
Mino Carta: A diferença entre assinar e não assinar é fatal. Você pode ser um ghost-writer [escritor-fantasma] e você escreve o que o cara quer. Agora, outra coisa quando você põe o teu nome embaixo.
Ziraldo: Mino, a pergunta para eu terminar minhas perguntas a você é a seguinte: eu concordo com o Tão e acho também que qualquer um dos 31 jornalistas que não quiseram vir aqui hoje, na classe, na categoria, entre nós todos aqui, a colocação que o Tão dá a você é perfeita, você é um dos maiores jornalistas deste país. Agora, como você nunca quis ser patrão, como você nunca quis ficar rico, como você nunca quis fazer uma empresa de televisão, como você falou agora do nosso querido Alzugaray, eu te pergunto: por que você, que é um homem realizado, escolheu - essa pergunta é da Daniela, minha filha - por que você resolveu escrever um "romance-vingança"?
Mino Carta: Mas não é vingança, não é vingança.
Ziraldo: Por que você escreveu este romance, precisava?
Mino Carta: Precisava... [em tom de indignação] O que...
Maria Bonomi: Só ele podia escrever! Gente, estamos esquecendo da verdade. Ninguém... é aquela história que ele falou...
Mino Carta: Não, há tempo alguém dizia: "Escreve um livro de memórias, escreve um livro de memórias". Eu disse: "Não, eu não vou escrever um livro de memórias. Mas por que não escrever um romance?". Me tentou a idéia, acho até que vou voltar ao Mercúcio Parla, se eu tiver forças para tanto, porque estou começando a escrever, comecei a escrever, aliás.
Ziraldo: Você é fascinado pelo Mercúcio Parla, não é?
Mino Carta: Não, Mercúcio Parla...
Ziraldo: Que é você mesmo? Está aqui ó [apontando para o livro aberto que tem em suas mãos]...
Mino Carta: Imagina, Mercúcio Parla sou eu.
Ziraldo: Dona Camomila... sabe o que dona Camomila fala do Mercúcio Parla que você escreve?
Mino Carta: Sim.
Ziraldo: "Isso aqui é a história de um homem extraordinário!". [Risos]
Reinaldo Azevedo: Quem é dona Camomila?
Ziraldo: A personagem, quando entrega os originais para o...
Mino Carta: Esta é a Camomila, mas veja...
Ziraldo: O escritor chama Mercúcio Parla de figura extraordinária.
Tão Gomes Pinto: Eu li esse livro tentando decifrar vários nomes aí...
Mino Carta: Sim, a Camomila é fascinada, provavelmente até um pouco apaixonada pelo Mercúcio Parla. [Risos]
Paulo Henrique Amorim: Mas o Richard fez a lista, depois a gente vai...
Tão Gomes Pinto: Mas eu queria só observar o seguinte: esse livro não me pareceu livro de vingança não, esse livro me pareceu um livro saído do fundo da alma.
Mino Carta: É isso.
Tão Gomes Pinto: Do fundo da alma de um homem que está caminhando cada vez mais só.
Mino Carta: É isso.
Tão Gomes Pinto: É... mas não desiste.
Ziraldo: Mas ele é um vitorioso! Você não é um vitorioso, Mino?
Tão Gomes Pinto: Ele é um vitorioso.
Mino Carta: Eu sou um derrotado.
Ziraldo: Pelo amor de Deus! Ué?
Mino Carta: Eu perdi todas as batalhas, mas isso me honra.
Ziraldo: Mas perder batalha é ganhar a vida.
Mino Carta: Eu não gosto, eu não gosto de ser o demônio em última análise, eu não gosto de causar medo.
Ziraldo: Você é um vitorioso Mino, pelo amor de Deus!
Reinaldo Azevedo: Mas ninguém se convence disso Mino, por quê? Soa sempre, quase uma coisa, um estilo... desculpe, parece cantar em falsete. Você criou as maiores revistas do Brasil...
Mino Carta: Não, criei não.
Reinaldo Azevedo: Ou ajudou a criar.
Mino Carta: Comandei as relações que faziam isso.
Reinaldo Azevedo: Diz que teve poder sobre elas, você diz: "Sempre tive poder, quando não tinha mais, caía fora".
Mino Carta: Sim.
Reinaldo Azevedo: Hoje continua comandante absoluto.
Mino Carta: Olha, do Estado eu não saí porque não podia mandar, do Estado eu saí porque veio a Abril com uma proposta muito tentadora, mas não tanto...
Reinaldo Azevedo: Continua comandante absoluto de uma revista. Eu vou voltar à minha questão do início porque fica parecendo assim: nunca uma vítima foi tão poderosa, tão feliz, tão triunfante.
Tão Gomes Pinto: E nunca perdoou... Você, no fundo, você perdoa as pessoas nesse livro, Mercúcio perdoa as pessoas.
Mino Carta: Sim.
Reinaldo Azevedo: Algumas, não é?
Ziraldo: É.
Mino Carta: Não todas. [Risos]
Ziraldo: Bob Civita é perdoadíssimo, ele ainda conta que deu um soco no carro...
Mino Carta: Não, não, veja... Eu não perdôo, nem absolvo, nem condeno várias, várias... O Roberto Civita eu realmente não perdôo. Este eu não perdôo porque...
Reinaldo Azevedo: E nem ele a você por causa dos murros que você deu no carro dele.
Mino Carta: Não sei se ele me perdoa.
Ziraldo: Aliás, aquele negócio foi o pior negócio da sua vida, Mino, aquele soquinho em cima do carro. Fiquei triste... [Risos]
Mino Carta: Mas essa é uma versão sua, uma tentativa...
Ziraldo: Ele ficou dando socos em cima do carro do homem [dando socos no ar, para baixo, com as duas mãos simultaneamente].
Mino Carta: Essa é uma tentativa...
Ziraldo: E ainda cuspiu no pára-brisa! [Risos]
Mino Carta: Desculpe, tudo bem, mas...
Ziraldo: Está lá, você contou.
Mino Carta: Você está fazendo um gesto que indicaria, não sei, tendência estranhas [risos].
Reinaldo Azevedo: É coisa...
Mino Carta: Eu bati com a direita, só! [Dá um soco no ar, para baixo, com a mão direita]
Ziraldo: Ah! Não foi com as duas, assim, não? [Repetindo o gesto com as duas mãos. Risos]
Mino Carta: Não, não, isso é o que você gostaria que eu tivesse feito. [Risos]
Paulo Markun: Mino Carta. Nós estamos chegando ao final do programa, mas eu queria colocar uma última pergunta na qual você pudesse... normalmente a última pergunta é um fechinho rápido, mas dá para a gente ter aí mais uns dois minutinhos para esta última questão. Cláudio Abramo que você menciona no livro ao lado do saudoso Paulo Duarte...
Mino Carta: Sim.
Paulo Markun: Cujo codinome eu me esqueci agora.
Mino Carta: João da Lua.
Paulo Markun: João da Lua. Exatamente. Que foi uma figura que tive a felicidade de conhecer, trabalhou no Estadão, foi um grande intelectual, um grande jornalista.
Mino Carta: Sim.
Paulo Markun: Coisa fantástica!
Mino Carta: Sim.
Paulo Markun: Fez um livro, quer dizer, foi feito um livro com o trabalho dele, chamado A regra do jogo.
Mino Carta: Do Cláudio.
Paulo Markun: Do Cláudio Abramo, que você faz o prefácio, não é isso?
Mino Carta: Sim.
Paulo Markun: Aonde ele estabelece um raciocínio sobre justamente qual é a regra desse jogo que nós jornalistas temos que praticar. E ele fala sobre a ética e diz que a regra do jogo é essa, que a gente tem que jogar dentro desse jogo respeitando alguns limites.
Mino Carta: Sim.
Paulo Markun: A partir dos quais, como você mesmo disse, tiramos o time de campo.
Mino Carta: Certo.
Paulo Markun: Queria que você dissesse se é possível jogar dentro dessa regra e participar desse jogo dentro das regras, mesmo não tendo a competência e a trajetória do Mino Carta.
Mino Carta: Bem... A pergunta que você me faz, implica, enfim, para poder realizar o que você diz seria preciso mudar muita coisa no país. Quer dizer, mudar a estrutura do poder, mudar a concepção do poder. E portanto mudar também, de alguma maneira, a concepção que os patrões têm dos próprios órgãos que eles publicam para poder realmente garantir a todos indistintamente. Eu tive muita sorte na minha vida de jornalista, porque estava no lugar certo na hora certa. E olha, é verdade o que eu digo no sentido de que eu não acho que tenho tão grande talento, eu tive sorte, eu estava lá, não sou de tudo idiota, e me saí bem. Agora, eu acho que, eu acho que na prática correta, implica obediência a três preceitos básicos, não é? A fidelidade à verdade factual, um exercício do espírito crítico e a fiscalização do poder. Se você não fizer isso, eu acho que o jornalismo não tem sentido, o jornalismo como um jornalismo político, digamos - não estou falando necessariamente do jornalismo da Marie Claire, estou falando de um jornalismo político, com implicações políticas, com envolvimentos políticos, este não se realiza dessa maneira. Por outro lado, dentro da moldura de uma intenção profunda que é iluminar o público, elevar o público, nivelar por cima, não nivelar por baixo, neste país nós devemos procurar elevar as pessoas. Não baixá-las, não secundar a ignorância. Entende? Não criar um público que se farta de frases feitas, de até de um palavreado composto por umas vinte palavras que todos inevitavelmente repetem. Exaustivamente todos os dias você as ouvem todos os cantos, palavras são as mesmas idéias, não é? É um pouco, é a tal teoria da, teoria do medalhão, não é?, que é isso aí. Agora, sabe, eu tive, como te digo, sorte, então eu pude realmente fazer publicações que não dirigiam equipes, fazia publicações que não existiam antes de mim. O que também me permitiu nunca me entediar no exercício da profissão, isso, esse ponto de vista foi muito bom, não é? E também pude me permitir sair quando as coisas estavam impossíveis. Mas eu não sei se isso é possível para todos os jornalistas. Aliás, acredito que não, tanto mais num lugar onde o diploma, o diploma na faculdade de jornalismo hoje em dia é indispensável, não é? Então, formamos miríades de jovens e sem que haja, na verdade, espaço para eles nas redações existentes. Então, isso é um pouco, seria muita utopia desejar que isso fosse igual para todos. Foi felizmente para mim, mas ainda assim sou um perdedor, porque perdi todos os empregos!
Paulo Markun: Mas com certeza quem acompanhou esta entrevista até o final não perdeu seu tempo, Mino. Obrigado pela sua entrevista, obrigado a quem está em casa. A gente volta na próxima segunda-feira às dez e meia da noite. Até lá.
Fonte: Memória Roda Viva - Fapesp
[Via BBA]
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