Um dos maiores pensadores vivos falou ao Roda Viva em 1996.
Um dos maiores pensadores vivos falou ao Roda Viva em 1996.
Matinas Suzuki: Boa noite. Ele é um dos mais importantes pensadores deste final de século. No centro do Roda Viva está o professor americano Noam Chomsky.
[Comentarista]: Anos 60, tempo de paz, amor e uma revolução de costumes. Como contraste, o confronto entre Estados Unidos e União Soviética na Baía dos Porcos em Cuba, a Guerra do Vietnã. E é nesse cenário que, no início da década, sai do anonimato o lingüista Noam Chomsky e, com ele, a teoria de uma gramática universal, já presente no código genético, que ordena a fala do ser humano, relegando a língua a uma mera questão cultural. A idéia provoca um rebuliço na comunidade científica. A polêmica incentiva Noam Chomsky a expor sua visão política, suas críticas contra a Guerra do Vietnã chamam a atenção. Começava aí, um caminho sem volta contra qualquer modelo de poder, do comunismo ao liberalismo totalitário norte-americano. Outro alvo de ataque é a mídia de massa. Chomsky trata as grandes redes de comunicação como veículos manipuladores a serviço de quem ele considera os verdadeiros donos de governos e nações, os grandes conglomerados multinacionais. Decifrar a história por trás da mídia é um dos passatempos favoritos desse anarquista confesso. Em Repensando Camelot, um de seus mais de 50 livros, o filósofo estarrece os leitores com uma interpretação reveladora, arranca a máscara pacifista do ex-presidente John Kennedy e apresenta JFK como um dos mentores da invasão de Cuba e articulador da guerra contra o Vietnã e dos golpes no Chile e no Brasil. Chomsky é filho de judeus; o interesse pela lingüística herdou do pai, um erudito em hebraico. Aos 32 anos, Chomsky se tornou catedrático do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, um dos mais prestigiados centros de pesquisas do mundo. Hoje, aos 68 anos, é considerado um dos maiores intelectuais de esquerda e um crítico ferrenho das atuais políticas interna e externa dos Estados Unidos. Mesmo de origem judaica, é uma voz dissonante ao atacar a política israelense e se posicionar em favor de um estado palestino. A perspectiva de Chomsky para a virada do século é um balde de água fria nos apóstolos da globalização. Para ele, a eliminação das culturas regionais e a interferência de instrumentos de poder, como o FMI [Fundo Monetário Internacional], o Banco Mundial e o Nafta [Tratado Norte-Americano de Livre Comércio], funcionarão como geradores de pobreza, aumentando os problemas de distribuição de renda em favor das elites.
Matinas Suzuki: Para entrevistar o pensador Noam Chomsky, nós convidamos Alberto Dines, do Laboratório de Estudos Avançados de Jornalismo da Unicamp; o Ibsen Costa Manso, que é secretário assistente do Jornal da Tarde; o jornalista Sérgio Augusto, dos jornais O Globo e O Estado de S. Paulo; Daniel Piza, editor de cultura da Gazeta Mercantil; Breno Altman, diretor de redação da revista Atenção; o Emir Sader, que é cientista político, e o Ibsen Spartacus, diretor editorial da Nova Cultural. Boa noite, professor Noam Chomsky. Eu gostaria de começar este programa do início, ou seja, o senhor ficou conhecido no início como um estudioso dos fenômenos da linguagem, e a partir de um certo momento, passou também a fazer uma intervenção política. A partir de quando o senhor sentiu necessidade de interferir na questão política?
Noam Chomsky: Bem, meu primeiro artigo político escrevi quando eu tinha 10 anos, no jornal da escola, depois da queda de Barcelona. Estava muito interessado na guerra civil espanhola e envolvido, àquela altura, com grupos de esquerda, preocupados com a difusão do fascismo na Europa, seja lá como um garoto de 10 anos possa entender isso. E as coisas não mudaram muito desde então. Então, não é primeiro lingüística e depois política. Foi muito antes de saber que existia algo chamado lingüística ou o estudo da língua.
Emir Sader: Professor Chomsky, terminada a chamada Guerra Fria e os conflitos entre Estados Unidos e União Soviética, segundo o professor Samuel Huntington, a dinâmica dos conflitos contemporâneos se daria no nível das civilizações, no nível das culturas [e não no plano ideológico ou econômico]; na verdade, a cultura ocidental contra o resto das culturas. É um artigo famoso, seguiu a trajetória do [Francis] Fukuyama, primeiro artigo da Foreign Affairs [revista científica norte-americana sobre relações internacionais], depois um livro [O choque de civilizações e a recomposição da ordem mundial, livro originalmente publicado em 1996 – no Brasil saiu em 1997– em que expande a tese defendida anos antes]; segundo [Henry] Kissinger [ex-secretário de Estado e ex-conselheiro de Segurança Nacional dos EUA], é o livro mais importante, desde o começo da Guerra Fria. Queria saber que opinião o senhor tem a respeito dessa concepção?
Noam Chomsky: Não tenho muita consideração pela maior parte do trabalho de intelectuais respeitados, admito. Eles têm uma função a cumprir, que é fazer as coisas parecerem complicadas e apresentar uma imagem do mundo que sirva a seus interessas de poder, e o fim da história foi declarado, pelo menos meia dúzia de vezes, nos últimos 130 anos, sempre da forma errada. Acho que a Guerra Fria foi seriamente mal interpretada. Do meu ponto de vista, foi uma fase do conflito Norte-Sul, um eufemismo para a conquista européia do mundo. A Europa Oriental era o Terceiro Mundo original desde o século XV, até quando começou a andar em direção à independência em 1917. E evocou a mesma reação que o extremo oposto, Granada, que começou a estabelecer cooperativas de pesca. A escala é radicalmente diferente, mas é a estrutura básica que está dentro desse molde e as coisas continuam. O que o professor Huntington chama de conflito de civilizações tem ocorrido há séculos e ocorre do mesmo modo de hoje. A idéia dele de que os Estados Unidos são os líderes do Ocidente se confrontados com a civilização islâmica, não faz sentido. Um dos mais próximos aliados dos EUA é talvez o país mais fundamentalista islâmico do mundo, a Arábia Saudita, e isso pode mudar amanhã se houver uma revolução na Arábia Saudita. A dinâmica e os processos são iguais aos de antes. Na verdade, chama a atenção, no caso dos Estados Unidos que, desde 1970, todas as intervenções americanas, principalmente desde 1945, foram justificadas como ligadas ao perigo soviético. Mas o que aconteceu antes da Guerra Fria, que na verdade começou em 1917, bem antes de [Thomas] Woodrow Wilson [1856-1924) presidente dos Estados Unidos pelo Partido Democrata por duas vezes seguidas, ficando no cargo de 1912 a 1921] invadir o Haiti e a República Dominicana. Isso não foi para defender-se da União Soviética, mas sim para se defender dos hunos [um dos povos bárbaros mais violentos e ávidos por guerras e pilhagens, eram nômades e provenientes da região da Mongólia, na Ásia]. Antes disso, foi para defender-se de outros. Considerando o desenvolvimento da marinha americana, há 110 anos, foi para defender-se do Chile. Navios de guerra americanos estavam nas costas do Chile. Logo depois da queda do Muro de Berlim, o que aconteceu? Poucas semanas depois, os Estados Unidos invadiram o Panamá. Foi algo tão convencional, que nem chega a nota de rodapé na história. A única diferença entre essa e outras intervenções, por muitos anos, foi a falta de pretextos. Não podia ser para defender-se da União Soviética. Então era contra os narcotraficantes hispânicos. Da próxima vez, será outra coisa. Olhando os conflitos que existem pelo mundo, a maioria já existe há muito tempo. Os únicos novos ocorrem dentro do império soviético desmoronado. Chechênia [Em 1991, a Chechênia declarou independência da Rússia, mas o ex-presidente russo Boris Yeltsin se opôs e, em 1994, enviou tropas à região, para restaurar a autoridade de Moscou. Em 1996, as forças russas foram derrotados pelas tropas chechenas, mas, apesar disso, a Rússia não reconheceu sua independência], isso é novo, mas é o resultado da queda de qualquer sistema imperial. Quando o império português desmoronou, havia, de fato, grandes conflitos ocorrendo no sistema colonial português: Angola, Moçambique, Timor, no sudeste asiático. Quando os sistemas britânico e francês desmoronaram, houve grandes massacres, chacinas e conflitos. Alguns ainda continuam. Os da África Central, no momento, são resíduos do imperialismo belga, alemão e francês. Há sempre coisas novas acontecendo, mas a dinâmica fundamental não muda substancialmente, na verdade, por muito tempo.
Alberto Dines: Professor Chomsky, aproveitando a sua biografia, já que estamos no início do programa, o senhor foi educado numa família de forte tradição cultural, pelo menos judaica, uma família, inclusive, progressista, onde as notícias da guerra de Espanha chegavam, entravam dentro de casa. Como é que o senhor vê dois problemas ligados a sua formação? Um: no próximo ano, nós vamos ter o 1º século de existência do sionismo [movimento religioso e político, originado no século 19, que pregava o restabelecimento, na Palestina, de um Estado judaico] político. Qual o futuro que vê para o Estado de Israel? E qual o futuro que vê para o judaísmo na diáspora: religião, cultura apenas, uma idéia moral e ética? Eu queria que o senhor elaborasse um pouco sobre essas duas questões.
Noam Chomsky: Meus pais foram da primeira geração de imigrantes da Europa Oriental e, profundamente envolvidos na comunidade judaica, viviam num gueto cultural. Ao mesmo tempo, eram liberais do new deal [depois da grave crise finaneceira pela qual passaram os Estados Unidos em 1929, o então presidente Roosevelt, inspirado nas idéias do economista inglês John Maynard Keynes, lançou um conjunto de medidas econômicas pelas quais o Estado aumentava sua participação na economia, criando uma demanda que, para ser atendida, mobilizava setores da economia paralisados pela crise], de [Franklin Delano] Roosevelt [(1882-1945) presidente dos Estados Unidos entre 1933 e 1945]. Essa era a política basicamente. Outras partes da família, com as quais eu era ligado desde cedo, eram da classe trabalhadora, na maioria desempregados. Era o final dos anos 30, havia uma cultura intelectual rica e animada na época, uma cultura muito elevada, debates sobre psicanálise, [Karl] Marx [(1818-1883), teórico do socialismo e revolucionário alemão, autor, entre outras obras, de O capital, sua obra-prima e referência para as gerações posteriores de sociólogos e economistas] e Quarteto de cordas de Budapeste e assim por diante. Muitos quase não tinham educação, mas uma rica tradição cultural da qual eu fazia parte. É uma mistura de envolvimento judeu muito forte a minha vida toda. Na época, eu era o que se chamava de sionista [que defende o direito do povo judeu à autodeterminação e à criação de um Estado judaico]. Na verdade a maior parte do meu ativismo na adolescência foi sionista, mas em oposição a um Estado judeu, pois isso fazia parte do movimento sionista na época. Havia muitas ilusões sobre isso. O primeiro compromisso dos sionistas com um Estado judeu foi em 1942 nos Estados Unidos. Antes disso, incluía fortes tendências binacionalistas, mesmo incluindo a liderança de David Ben-Gurion e outros. Eu fazia parte da ala socialista radical, que era ligada à cooperação dos trabalhadores árabe-judeus. Talvez tenha sido uma ilusão ou foi real – pode-se debater isso–, mas o compromisso era esse e eu fiquei. Vivi em um kibutz por algum tempo, em Israel, e podia ter ficado lá, mas voltei. Mas, quanto ao futuro do sionismo, ele mudou. Em 1948 o sionismo político se tornou o sionismo de modo que as tendências anti-Estado foram absorvidas pelo Estado e, daquela época em diante, é apenas um outro Estado no sistema internacional comportando-se como qualquer outro Estado. Principalmente depois de 1967, com as conquistas, tornou-se um apêndice dos Estados Unidos. Então agora é o 51º estado, o que não é muito preciso, porque recebe muito mais subsídios federais do que qualquer outro dos 50 estados originais. Assim sendo é um posto avançado do poder dos EUA e dentro de um arranjo complicado, Israel tornou-se parte do... Os Estados Unidos tomaram da Inglaterra a dominação do Oriente Médio em 1945, como assumiram o domínio da América do Sul. Parte do sistema constitui um tipo de gendarmes [guardas] locais ou, como o secretário da Defesa os chamou, de “policial local de ronda”. A sede da polícia fica em Washington, Israel é uma delas. Faz parte de um imenso sistema que se estende do Pacífico até os Açores que visa o Oriente Médio, controlando o petróleo, o sistema do petróleo.
Alberto Dines: O futuro do judaísmo?
Noam Chomsky: O futuro? O futuro das pessoas está em suas próprias mãos. Não dá para prever coisas como o curso da civilização. Mesmo Israel está rigorosamente dividido de muitos modos. Quase metade da população é de países árabes, metade da Europa. Há uma divisão nítida de linhas religiosas, quase uma guerra civil. Lendo a imprensa israelense, como faço regularmente, pode-se ler na imprensa principal, avisos sobre perigos de um golpe militar com elementos religiosos nos meios oficiais. Muitos estão preocupados com isso. As últimas eleições mostraram uma nítida divisão cultural e é difícil prever o que virá. Nas diásporas, por exemplo, nos EUA, que conheço melhor, há um nível alto de assimilação, mas, ao mesmo tempo, há uma volta a algo como uma versão ficcionalizada dos séculos XVII e XVIII na Europa Oriental que está influenciando centenas de milhares de pessoas. Os negócios humanos são complicados, eu não tentaria prever [risos].
Breno Altman: Professor Chomsky, as opiniões sobre globalização e nova ordem majoritariamente têm se dividido em dois tipos: os eufóricos, que vibram com esse novo modelo de desenvolvimento dos países, e os conformados, que criticam esse modelo, mas o consideram inevitável. Na sua opinião, o senhor, que é um dos grandes críticos da globalização, há alternativa para os povos fora desse caminho? Há possibilidade de um outro modelo de organização da sociedade em resposta à globalização? Como no passado, por exemplo, houve modelos de uma sociedade não-capitalista, algum modelo alternativo à globalização e à nova ordem mundial?
Noam Chomsky: Primeiro, a globalização em si não é boa nem má, depende de que forma de globalização se trata. Se for do tipo que une as pessoas ao redor do mundo, é maravilhosa, sou a favor. O tipo de globalização que transfere o poder para as mãos do que a imprensa mercantil chama de governo “de fato” do mundo, das instituições financeiras internacionais que representam corporações transnacionais e seus afiliados locais, isso é ruim, é prejudicial para todas as pessoas do mundo. A questão é: que forma assume a globalização? Incidentalmente, quanto à inevitabilidade da globalização, deve-se cuidar de distinguir doutrina de realidade, medir fluxos de negócios, investimentos etc. O nível de globalização no mundo não é tão dramaticamente diferente do que foi no passado. Há diferenças, mas não dramáticas, nem em escala, e a maioria das interações é interna para os países ricamente desenvolvidos. Então, a maior parte, 75%, dentro da Europa, Japão e Estados Unidos. E a forma que toma depende do que as pessoas fazem com isso. Pode-se ter uma forma muito construtiva de globalização, na qual existam intercâmbios culturais e econômicos, ligações vitais se desenvolvendo entre as pessoas ou pode-se ter um tipo que transformará o mundo em uma espécie de Brasil. O Brasil é um caso extremo com dois países radicalmente diferentes, um pequeno e rico que faz parte da elite internacional e outro país enorme que é como a África Central. O mundo poderia se transformar nisso. Com efeito, está acontecendo nos Estados Unidos e na Inglaterra e em menores extensões em outras partes nesse momento. Mas esses são assuntos que estão sob controle, não há nada de inevitável neles. Não são leis da natureza. São decisões em instituições humanas que podem ser mudadas como todas as outras. Que tipo de mundo poderá ser? De maior liberdade e justiça. Tenho meu próprio ponto de vista de como deveria ser, penso como um anarquista à moda antiga, como era aos 10 anos. Acho que a ordem mundial deve ser baseada em associação mútua e voluntária onde quer que as pessoas estejam juntas, ou seja, controle do trabalhador no local de trabalho, controle da comunidade, associações voluntárias, arranjos federais entre atravessar fronteiras facilmente, não há nada de especial nelas. Acho que é totalmente viável um mundo assim, mas isso significa eliminar concentrações de poder. E, no momento, o poder está concentrado, a democracia está declinando e isso é algo contra o qual devemos lutar, pois não é inevitável. E não é uma lei da história. Olhando a história, houve de tudo: houve vitórias da liberdade, houve expansões de democracia, houve contrações. Estamos num período de contração, mas isso mudará, como mudou antes.
Matinas Suzuki: Professor Chomsky, mas o que o senhor pensa do marxismo? O marxismo ainda tem alguma contribuição a dar para essas novas transformações que o senhor está afirmando?
Noam Chomsky: Acho complicado o conceito de marxismo. Na física, por exemplo, não existe “einsteinismo”, porque [Albert] Einstein [físico alemão (1879-1955) que alterou as perspectivas teóricas e práticas de sua disciplina, formulando a partir do trabalho de outros pesquisadores a teoria da relatividade e explicando o efeito foto-elétrico, pelo qual recebeu o prêmio Nobel de física de 1921] não é um deus que se adore, mas um ser humano que tinha coisas importantes a dizer e, como qualquer ser humano, cometeu erros [por exemplo, entre 1927 e 1930 Einstein tentou mostrar que a teoria quântica era incorreta e lançou uma série de paradoxos, que Niels Bohr resolveu, mostrando que os experimentos propostos não violavam o princípio da incerteza. Depois disso, Einstein teve de aceitar que a mecânica quântica era ao menos consistente]. Você aprende o que ele disse e desconsidera seus erros. O conceito de marxismo, na minha opinião, pertence à história da religião organizada. É um tipo de adoração de um indivíduo que não faz sentido. Quanto ao próprio Marx e outros da mesma tradição, aprende-se o que tem valor e descarta-se o que é errado. Depois é só observar. Quanto ao socialismo, por exemplo, Marx não tinha quase nada a dizer. Não sou um grande especialista em Marx, mas pelo que eu entendo – e li bastante – há apenas algumas menções de Marx ao socialismo. Ele é um teórico do capitalismo, era um teórico basicamente do capitalismo do século XIX. É perfeitamente natural. Ele desenvolveu uma espécie de modelo abstrato do sistema capitalista e suas propriedades, do qual temos muito a aprender. Uma pessoa pode ler e aprender disso tanto quanto aprendemos de outros, mas presumir que isso ofereça uma doutrina para hoje não faz sentido. Não consigo imaginar que Marx acreditasse nisso. Ele também escreveu coisas importantes sobre assuntos contemporâneos, como os ingleses na Índia. Certamente vale a pena ler, mas, se estivéssemos repetindo isso ainda agora, a civilização estaria morta. Tínhamos que aprender algo nos últimos 100 anos. Existem, sim, contribuições, como há no resto de nossa tradição cultural. Aprender deles o que é importante e descartar o que não é útil...
Ibsem Spartacus: Professor, eu queria saber como o senhor avalia a possibilidade de fortalecimento político internacional de países como China, Índia e Brasil, se o crescimento econômico, que tem sido registrado nesses países, poderia, de alguma forma, ameaçar a nova ordem mundial?
Noam Chomsky: Primeiramente, acho que devemos ter cuidado quando nos referimos a um país como a Índia, a China ou o Brasil, por exemplo. Devemos reconhecer que existe um grande nível de abstração. O Brasil não é uma entidade de ordem internacional, nem a Índia. Na Índia há um setor em desenvolvimento e um grande setor que... ou está estagnado ou provavelmente declinando. Estive lá há pouco tempo e vi os dois lados. Ao se falar de crescimento na Índia, de novo, cuidado. Quando as reformas neoliberais foram instituídas na Índia, houve, como sempre, um grande declínio e colapso. Isso é comum. Depois uma recuperação do colapso. O Wall Street Journal [jornal publicado na cidade de Nova Iorque] fala do crescimento maravilhoso, mas partem do período de recuperação. Voltem 10 anos e verão que, nesse período, o crescimento foi menor do que foi antes, mas é altamente concentrado e também multinacional. A Índia se abriu para penetrações estrangeiras, principalmente de empresas americanas. E foi interessante a forma como o fizeram. Primeiro, tomaram conta da indústria de propaganda. Vê-se a propaganda de bens estrangeiros, com o propósito de podar a indústria doméstica e tornar as pessoas dependentes de produtos estrangeiros. Há setores da sociedade indiana que se beneficiam com isso, vivendo muito melhor do que antes. Há outros setores que estão sofrendo. O mesmo ocorre na China. Ela está bem nitidamente dividida. Partes da China estão se desenvolvendo e outras estão devastadas. Tanto que estudiosos chineses temem a possibilidade de voltar para as guerras camponesas do passado. Observando coisas como a taxa de mortalidade, vê-se que o sistema de saúde em geral melhorou, se desenvolveu muito. Por volta de 1979, começou a se estabilizar e, nas mais recentes estatísticas, está em pleno declínio, isso paralelamente ao grande crescimento. E os yuppies [derivação da sigla YUP, expressão inglesa que significa "young urban professional", ou seja, jovem profissional urbano, e descreve um conjunto de atributos e traços de comportamento de jovens profissionais entre 20 e 40 anos, que vieram a constituir um estereótipo que se acredita ser comum nos EUA. Os yuppies, em geral, têm pouco tempo de formados em universidades, trabalham em suas profissões de formação e seguem as últimas tendências da moda] que aparecem na CNN [sigla de Cable News Network, rede de televisão norte-americana pertencente ao grupo Time Warner especializada na transmissão de notícias vinte e quatro horas por dia]... são duas Chinas diferentes. Como isso vai afetar a nova ordem mundial? Depende de qual será ela. Se a ordem mundial for dirigida por elites transnacionais em seu próprio interesse, com a maioria da população marginalizada, vai estar tudo bem. Se for uma ordem mundial baseada em democracia popular, liberdade e justiça, vai romper as estruturas que estão em desenvolvimento na China e na Índia, como vai romper as estruturas que ocorrem no Brasil.
Ibsem Spartacus: Mas essas elites locais não poderão vir a se associar de uma maneira a intercambiarem produtos, serviços e de protegerem seus mercados, porque são grandes mercados e podem vir a interessar uns aos outros, a algum desses países entre si. Isso não pode ser uma proteção contra o que seria essa elite internacional, basicamente que seria o Norte?
Noam Chomsky: A mesma estrutura. O que é o Nafta, o Acordo de Livre Comércio da América do Norte? É um acordo altamente protecionista, instituído pelos EUA e elites associadas no México e Canadá, dirigido contra as populações de seus próprios países, os três, e também contra Europa e Japão. Quanto aos tratados do Nafta, cerca de 10% deles consistem em exigências quanto à origem, o que quer dizer que alta porcentagem de produção da área norte-americana deva ser exportada. É só uma arma protecionista contra Europa e Japão. Os EUA gostariam de incorporar parte da América do Sul dentro de um bloco protecionista de comércio. A Ásia Oriental tem interesse em fazer a mesma coisa, a Europa está fazendo a mesma coisa. Por outro lado, eles não estão só em guerra. As ligações entre as empresas internacionais na Europa, Japão, nos EUA como também em áreas da Ásia Oriental e no Brasil, são elos muito fortes, são transnacionais. Então, há muitas coisas complicadas acontecendo ao mesmo tempo, mas a maior tendência agora é em direção à transferência de poder para tiranias particulares e longe dos temores públicos. Isso é perigoso. Está acontecendo em certos países, em níveis diferentes, está acontecendo internacionalmente e acho que será muito prejudicial para valores que devemos partilhar, como a democracia por exemplo...
Ibsen Costa Manso: Professor, eu queria voltar um pouco ao passado, na linha do que o professor Sader estava dizendo. Após a Guerra Fria, houve uma mudança na política externa americana no sentido de não mais temer o inimigo interno. E, por outro lado, criou-se, principalmente nos militares – e o Brasil foi usado como uma espécie de laboratório na questão da segurança nacional–... ou seja, a volta para dentro do país. O senhor teve acesso a documentos secretos no governo americano que contam um pouco desse nosso período aqui no Brasil. Como é que o senhor analisa esse período, que informações o senhor tem sobre isso?
Noam Chomsky: Há muitos documentos. Os EUA são uma sociedade bem aberta e uma das coisas boas nela é que se tem bom acesso aos planos secretos. Talvez uns 30 anos atrás, mas às vezes até bem recentemente. Não acho que a política externa dos EUA tenha mudado muito depois da Guerra Fria. Vejamos, por exemplo, o Oriente Médio, Cuba, Panamá, é tudo igual, nada muda muito. Algumas mudanças, mas a política não foi guiada por medo da União Soviética. Isso foi um pretexto. Vê-se claramente pelo fato de que as políticas continuam sob diferentes pretextos. No caso de Cuba, por 30 anos, o pretexto foi o perigo da União Soviética depois da Guerra Fria, o que aconteceu? As políticas endurecem. Agora, de repente, os Estados Unidos amam a democracia. Logo será outro pretexto. Acho que a política não mudou. Com relação ao Brasil, conhecemos bem a ficha. No final dos anos 50, a administração [Dwight David] Eisenhower [(1890-1969) presidente dos Estados Unidos entre 1953 e 1961 e comandante supremo das forças aliadas durante a Segunda Guerra Mundial] começou a propor o fortalecimento militar da América Latina e uma troca da missão militar, determinada, em grande parte, pelos EUA. Propunha uma mudança que não pôde ser instituída na época, o Congresso não a aceitou. Mas foi aceita, no governo Kennedy, em 1962. A administração Kennedy mudou a missão militar da América Latina para defesa hemisférica, que é algo da Segunda Guerra, que era chamado de segurança interna, que é um termo técnico que significa guerra contra as suas próprias populações. E o golpe militar brasileiro, logo depois, foi um dos primeiros exemplos disso, muito bem recebido nos Estados Unidos, mesmo publicamente. Não é preciso ler documentos secretos para isso. Foi bem-vindo publicamente pelo pessoal de Kennedy – ele já tinha sido assassinado – por Lincoln Gordon [(1913) foi embaixador dos Estados Unidos no Brasil entre 1961 e 1966], Robert McNamara [secretário de Defesa dos Estados Unidos de 1961 a 1968, durante a Guerra do Vietnã, e presidente do Banco Mundial de 1968 a 1981], como uma grande vitória pela liberdade no século XX e assim por diante. O Brasil é um país grande e isso teve um efeito-dominó, espalhou-se pelo hemisfério até a América Central. Nos anos 80, houve ondas enormes de repressão, únicas na história deste continente sangrento. E foi devastador. Acabou com muitas organizações populares e estabeleceu a base para as políticas que estão sendo seguidas agora. Pode-se encontrar a origem disso na mudança da missão militar. Os militares brasileiros eram chamados de uma ilha de sanidade no Brasil e sua tomada de posse foi muito bem recebida. E o Brasil se tornou o que a imprensa comercial chamou de “a menina dos olhos latino-americana da comunidade comercial”. Sabemos o suficiente para mencionar o que aconteceu com a população, mas o setor se beneficiou e continuou assim até os anos 80. Uma grande taxa de crescimento, uma divisão em dois países, tudo isso muito bem-vindo nos círculos internacional e financeiro e pode-se achar a origem disso. Não temos as fichas dos anos recentes, mas temos as fichas dos anos 60 e são claras. As mais importantes são as feitas por volta de 1965, que estão disponíveis há alguns anos. São discussões entre os intelectuais de Kennedy. McNamara era secretário da Defesa, [McGeorge] Bundy era conselheiro de Segurança Nacional e eles discutiam que o desenvolvimento do Brasil, dois anos depois do golpe, era um grande sucesso. E discutiam que, dentro do que eles chamavam de contexto cultural latino-americano, era necessário que os militares derrubassem o governo civil quando, na opinião deles, esse governo civil não estivesse agindo no interesse da nação. E o interesse da nação é descrito em termos explícitos que parecem vindos de algo malicioso. Referem-se claramente à luta revolucionária pelo poder nas classes conflitantes da América Central e à necessidade de melhorar os investimentos etc. As discussões internas eram muito francas. E a tomada de posse militar contribuiu para isso e era bem recebida. Pouco tempo depois, há o apoio aberto dos EUA para a derrubada do governo Allende [(1970-1973), o presidente do Chile, Salvador Allende, foi deposto por um golpe de Estado comandado pelo general Augusto Pinochet, que instaurou a ditadura no país] e depois as atrocidades na América Central etc. E nada disso tinha a ver com os russos. Quantos russos havia no Brasil em 1964? Na verdade, os russos estavam apoiando os generais argentinos. Estavam entre os principais parceiros comerciais deles. Claro que, para a população americana, sempre se falava em ameaça russa. É assim que se controla as pessoas: você as assusta. Mas, nos Estados Unidos, na realidade, isso é uma piada. Não havia ameaça russa no hemisfério ocidental. Os russos ameaçavam o hemisfério ocidental, tanto quanto os EUA ameaçavam a Europa Oriental.
Sérgio Augusto: Professor Chomsky, em 1967 o senhor publicou um ensaio polêmico, chamado "O poder americano e os novos mandarins", em que o senhor apontava a responsabilidade dos intelectuais americanos que trabalhavam atrás da política externa americana. O senhor acha que nesses últimos 30 anos intelectuais americanos ficaram mais ou menos responsáveis?
Noam Chomsky: Falar de intelectuais é como falar de países, deve-se distinguir. Há aqueles que são chamados de intelectuais responsáveis, os que servem ao poder, e há aqueles que são os dissidentes, que estão fora do sistema de poder e não o servem. Há intelectuais de todos os tipos desde que existe a história registrada. Volte à Bíblia e achará a mesma distinção. Entre aqueles dos anos recentes é difícil dizer. Houve uma grande mudança nos EUA desde os anos 60. Houve uma mudança cultural de grande escala. Os anos 60 levaram a uma mudança na sociedade em geral... à libertação da sociedade. Ela é muito mais aberta do que era há 40 anos. Há mais preocupação por questões de opressão racial, os direitos da mulher se tornaram uma preocupação, questões ambientais, solidariedade com o terceiro mundo. Isso tudo mudou, afetando todo o país. O ativismo era maior nos anos 80 que nos 60 e mais profundamente enraizado na sociedade americana e, entre as pessoas envolvidas, estão os intelectuais. O que isso significa? São pessoas que têm o privilégio de devotar esforço substancial ao trabalho da mente. E, para alguns, isso significa trabalhar com pessoas que estão lutando por uma vida melhor, liberdade ou direitos humanos. Para outros é servir ao poder, sempre foi assim, mas a sociedade está diferente de muitos outros modos, está muito mais saudável.
Daniel Piza: Senhor Chomsky, o senhor tem dito, em várias entrevistas, que acha que a democracia está sofrendo uma ofensiva no mundo inteiro hoje e que o neoliberalismo seria essa ameaça à democracia. O senhor não diria também que o que a gente poderia chamar de capitalismo de consumo foi justamente o que levou as pessoas do Leste Europeu, por exemplo, a lutarem por regimes democráticos e pelo fim do socialismo?
Noam Chomsky: Primeiro, nunca houve nada nem remotamente parecido com o socialismo da Europa Oriental. Lá os países se chamavam de socialistas e democráticos, eram democracias populares. O Ocidente ridicularizava a alegação de serem democracias, mas adorava a alegação de serem socialistas, porque é uma forma de difamar o socialismo. Mas, de fato, eram tão socialistas quanto democratas. Não acho que o fator motivador na Europa Oriental fosse um desejo de consumo. Na verdade, os níveis de consumo se reduziram muito na Europa Oriental desde o fim da Guerra Fria. A busca por liberdade, sim. Lutavam por liberdade e democracia, mas o que mais conseguiram, na maior parte, foi uma volta ao Terceiro Mundo. E, quanto à primeira parte do seu comentário... Sim, acho que o que se chama de neoliberalismo é um ataque aberto, não-secreto à democracia. O objetivo é minimizar o Estado e, ao minimizá-lo, se maximiza uma outra coisa. O que se está se maximizando? A tirania particular. O Estado é a arena em que o público tem o papel, pelo menos, a princípio, de determinar a política e o setor privado não tem regras. Quanto mais a arena pública é minimizada e o poder particular é maximizado, menos democracia se tem. Acho o Estado uma instituição ilegítima, que deveria ser desfeita, mas não enquanto o poder particular subsistir. Isso é pior, pois é um sistema que não presta contas ao público e o impulso principal do neoliberalismo é restringir a arena onde o povo possa fazer diferença.
Entrevistador: E o que o senhor propõe?
Noam Chomsky: Minha sugestão é expandir a arena pública – e do modo clássico. Principalmente, como disse antes, os trabalhadores devem ter o controle dos locais de trabalho, não os tiranos particulares. As pessoas devem ter o controle de sua comunidade e devem interagir umas com as outras, isso aumenta a esfera pública. Se a pesada concentração de poder particular for eliminada, daí eu acho que se vai em direção ao desmantelamento do sistema de Estado inteiro, o que é adequado. Mas se deve enfrentar o mundo em que se está. Esses movimentos neoliberais não visam estabelecer um sistema de mercado, uma empresa privada: estão fora do sistema de mercado. Se olharmos o mercado mundial, é como nos Estados Unidos: cerca de metade do comércio americano não é comércio, e sim apenas transações internas de uma empresa, administradas por uma mão bem visível. Isso acaba de acontecer do outro lado da fronteira. A metade das exportações americanas para o México nem entra na economia mexicana. Peças estão sendo montadas nos Estados Unidos e transportadas para o México, para uma outra filial da mesma Ford, como exportação, e voltam para os EUA como importação. Isso não é comércio, é mercantilismo e compreende grande parte do comércio mundial, um mercantilismo corporativo no qual o mercado funciona apenas à margem, principalmente para controlar as pessoas. Aqueles que administram a economia mundial se protegeram muito contra a disciplina do mercado. Há bons estudos de bons economistas a respeito de empresas transnacionais. Há um grande estudo de dois economistas ingleses sobre as 100 maiores empresas transnacionais. Todas se beneficiaram das políticas intervencionistas de seu próprio governo e 20 delas foram salvas de um completo colapso pela ajuda do governo. Acima disso, a própria empresa está fora do sistema de mercado. Suas transações internas são centralmente dirigidas. Então o sistema neoliberal é um ataque, na minha opinião, ao mesmo tempo, ao mercado e à democracia.
Emir Sader: Professor Chomsky, o senhor disse que, apesar de tudo que o senhor mencionou anteriormente – a opinião pública mais informada, a maior solidariedade–, há uma deterioração da democracia nos Estados Unidos. Como é possível ver todos esses elementos de avanço e, no entanto, haver uma deterioração democrática?
Noam Chomsky: Bem, o mundo é complicado. Há uma clara luta de classes. Os que controlam a sociedade e a administram temem naturalmente a democracia e usam as medidas que podem para restringi-la. Uma medida é restringir a arena pública, outra é a propaganda maciça. Os Estados Unidos têm uma grande indústria de relações públicas, que, na maior parte deste século, seus próprios líderes chamam de controle da opinião pública, com o princípio de que a opinião pública pode ser arregimentada, assim como o exército faz com os soldados. A razão é que eles dizem uns aos outros: “O risco do industrialismo crescente é o poder político crescente das massas. Isso tem que ser contido.” Não pode ser à força nos Estados Unidos, pois é uma sociedade livre, então a controlam pela propaganda, estreitando a arena pública por meio de tratados como o Nafta, que anulam as decisões da arena pública. Por outro lado, há forças populares lutando para ampliar a democracia, o conflito de sempre, que acontece há séculos, como agora, vai e volta. Nos anos 50, por exemplo, também declararam o fim da história, o fim da ideologia. Dizem que está tudo sob controle, todos são consumidores passivos, ninguém mais pensa e, poucos anos depois, o país está em tumulto. Aconteceu várias vezes no passado e creio que está acontecendo agora. Por exemplo, o movimento trabalhista, que foi severamente atacado – na verdade, um ataque criminoso nos anos 80–, agora está revivendo. Reconhece-se que uma guerra de classes unilateral levará à destruição. E não sabemos aonde estamos indo.
Alberto Dines: Professor Chomsky, a diminuição, o enfraquecimento do Estado significaria, nas suas palavras e nas de todos nós, o fortalecimento da sociedade, o revigoramento da arena pública, o senhor tem usado essa expressão. E, nessa arena pública, a mídia tem um papel fundamental e o senhor tem sido o mais vigoroso crítico da mídia internacional, da mídia privada. Eu gostaria de que o senhor também elaborasse um pouco sobre a questão: essa manipulação da mídia, esses descaminhos da mídia devem ser apenas atribuídos ao grande capital, ao grande capital nacional e internacional, interesses políticos ou é a própria instituição que está precisando ser revitalizada como serviço público, como espírito público. Qual a sua opinião a respeito desse processo todo?
Noam Chomsky: Para ser bem claro, acho que agora a arena pública está encolhendo e eu gostaria de vê-la se desenvolvendo. Então a minimização do Estado está encolhendo a arena pública devido à ampliação do poder privado. Quanto à mídia, as maiores mídias do mundo, nos EUA ou no Brasil, são empresas privadas e elas simplesmente fazem parte do sistema empresarial. Elas estão ligadas às grandes empresas, ligadas a outras maiores. Nos EUA os grandes canais de TV fazem parte de megaempresas, ligadas intimamente ao poder estatal. Os indivíduos que estão nos níveis mais altos de direção movem-se muito facilmente da suíte executiva para a administração estatal e a direção editorial e seus interesses são mais ou menos os mesmos. Eles apresentam uma imagem do mundo que reflete seus interesses. Eles têm certos objetivos que não são totalmente determinados pela estrutura da instituição, querem proteger o nexo do poder estatal privado que representam. Isso exige métodos diferentes para platéias diferentes. Para grande parte da platéia, significa marginalizá-la. Para a mídia e seus dirigentes, creio que o ideal social que eles desejam alcançar é o de uma sociedade em que a unidade social consista em uma pessoa e um aparelho de TV, sem outras associações, pois outras interações de seres humanos seriam perigosas, podem levar à participação democrática. Quanto mais perto se chegar do ideal de uma sociedade baseada em uma pessoa e uma TV, quanto mais se fizer isso, mais se estará livre para uma democracia política formal, sem a preocupação de que signifique algo, porque assim as pessoas se tornarão consumidoras passivas, trabalhadores obedientes, separados uns dos outros e a sociedade civil entrará em colapso. Para a elite educada, ela terá uma função diferente, será basicamente a doutrinação, a fim de garantir que se tenha pensamentos corretos. São eles que tomam decisões, tomam decisões certas para os que estão no poder. Dentro dessa estrutura, pode-se explicar muito do que a mídia faz.
Alberto Dines: Mas e o papel do jornalista?
Noam Chomsky: Eu diria que tenho muitos amigos na mídia, muitos deles em altos cargos. Muitos são bem mais cínicos que eu sobre a mídia, como resultado de suas próprias experiências. E vêem seu papel no trabalho como uma tentativa de trabalhar nas estruturas institucionais para fazerem o que puderem. E há muita coisa que podem fazer. Não são ditaduras militares, não serão torturados e mortos se disserem a coisa errada. Podem perder o emprego, mas esse é um problema pequeno. E as pessoas tentam pressionar suas aberturas até o limite, tantas vezes, fazendo coisas muito importantes. Outros estão subordinados ao sistema. Há muitos jornalistas bem conhecidos, em posições privilegiadas, que se consideram livres e lhe dirão “ninguém me diz o que escrever”. E é verdade, porque são tão confiáveis, que ninguém precisa lhes dizer o que escrever. Eles já internalizaram tão bem os valores, que nem podem ter outros pensamentos. Ótimo, são totalmente livres. Outros, que são independentes, são menos livres e estão sempre lutando contra os limites impostos por sistemas poderosos. Para os jornalistas independentes, o objetivo é igual ao de qualquer outro ser humano decente. Tentam fazer o que podem pelas pessoas, informam-se, trabalham juntos, cuidam dos direitos humanos e dos valores que têm.
Matinas Suzuki: Professor Chomsky, a propósito dessa questão, o senhor está recebendo um grande destaque na mídia brasileira. Como é que o senhor está se sentindo a esse respeito?
Noam Chomsky: Perfeitamente feliz de falar com qualquer um [risos], seja para um público de rede nacional de TV ou para favelados, o que também já fiz. Na minha experiência pessoal, não é muito surpreendente: tenho mais abertura fora do que dentro dos EUA. Em parte, porque meus pontos de vista são muito mais ameaçadores dentro do que fora dos EUA. Assim que cruzo a fronteira, falo para redes nacionais de TV, mas não lá dentro. Na verdade, na TV comercial dos EUA há muito mais liberdade do que na TV pública. É interessante, ainda, que a TV pública tenha a fama de ser mais liberal, no sentido norte-americano da palavra: mais progressista. Mas quer dizer que são mais doutrinárias, são comissárias culturais, entendem melhor os limites da discussão e se vêem no extremo dissidente. Pode-se chegar a esse ponto e não além. Na verdade, a TV pública tem isso por escrito, não permitindo que eu apareça nos principais programas de debate. É incomum tornar públicas tais declarações, mas é compreensível. No meu ponto de vista, esse artigo que se refere à responsabilidade dos intelectuais foi, antes de tudo, uma crítica à extremidade progressista do espectro chamado de liberal nos Estados Unidos. Não falei muito sobre a ala direita. Acho que eles são os reais comissários intelectuais, são eles os que estabelecem os limites. Agem com um certo tipo de dissidência, mas aquela que pressupõe as doutrinas do poder, assim ajudando a instilá-las melhor. E os mais espertos entendem isso e não querem ter nada a ver com algo que vá para o lado crítico. É assim que funcionam as instituições. Nada surpreendente.
Breno Altman: A crítica que o senhor tem feito à mídia é essencialmente uma crítica ao poder das corporações privadas. Como é que o senhor imagina um processo de controle social ou de democratização da mídia? Em outros termos, o senhor tem falado de controle social, sobre as corporações privadas nos outros terrenos da economia. Como o senhor imagina em relação à mídia esse processo de controle social da democratização?
Noam Chomsky: A mídia deve envolver a participação popular. Na verdade, o modelo existe. Eu vi coisas interessantes, no Rio há uns dias, quando fui aos subúrbios, em Nova Iguaçu, e assisti à TV popular. Eles provêm equipamentos e apoio técnico para grupos populares que fazem sua própria TV. Escrevem os roteiros, apresentam os programas, atuam. E as pessoas se reúnem na praça pública e assistem, discutem etc. E isso é um tipo de mídia popular. Nos Estados Unidos, há um bom número de rádios apoiadas pelas comunidades, quer dizer, rádios pequenas, mas que se estendem pelas cidades médias e são sustentadas pelo público; não têm propaganda e integram a comunidade, você pode notar a diferença. Eu viajo muito, dando palestras. Você pode sentir a diferença entre uma comunidade que tem rádio e uma que não tem. Há uma integração. As pessoas sabem uma das outras, sabem o que ocorre, participam. E isso dá um certo ânimo e vitalidade, visão para a comunidade, o que não é possível quando as pessoas estão separadas umas das outras. Essa é a mídia democrática. No momento, existe em pequena escala, mas não devemos esquecer que, há pouco tempo, existia em larga escala, mesmo nos Estados Unidos, uma sociedade altamente doutrinada, com um sistema poderoso de propaganda, uma sociedade muito livre, mas dirigida pelos negócios. Mesmo nos Estados Unidos, nos anos 50, existiam cerca de 800 jornais trabalhistas independentes, que alcançavam cerca de 30 milhões de pessoas por semana. Se voltarmos ao início do século, a mídia popular, ligada a comunidades étnicas ou jornais de trabalhadores, tinha a escala da imprensa comercial. Na Inglaterra, continuaram até os anos 60. Os grandes jornais da Inglaterra... o Daily Herald tinha mais assinantes – era socialdemocrata – tinha mais assinantes, nos anos 60, do que o Times, o [The] Guardian e os outros principais jornais juntos. Eles foram dominados pela concentração de recursos e os tablóides, na Inglaterra, a mídia de massa tinha orientação trabalhista. Muita bobagem, mas tinham orientação trabalhista. Davam um quadro do mundo muito diferente do que aquele que é orientado pelos interesses e preocupações das pessoas comuns. E era um país diferente na época. E quando isso acabou, não pela força, mas devido à pressão da concentração de recursos, de capital, o enfoque do país mudou. Houve mudanças visíveis. Um histórico do thatcherismo. Isso não está longe no passado, não estamos falando de uma utopia inimaginável, mas de coisas que existem, em parte existiram em larga escala e podem ser criadas de novo. As novas oportunidades das telecomunicações oferecem meios para criá-las, meios usados, muitas vezes, eficientemente. Vejam o último prêmio Nobel da paz, que acaba de ser anunciado: José Ramos Horta, que esteve aqui, o ganhou. Essa questão do Timor tem sido uma grande questão de direitos humanos por 20 anos, mas só chegou à arena pública há 3 anos – apesar dos esforços, nos quais também estive envolvido – em grande medida devido à internet. Ela oferece meios de conseguir informações que escapam à mídia empresarial, a qual organiza as pessoas. Nos Estados Unidos, houve tanta pressão no Congresso, que foram impostas restrições aos militares. A administração Clinton não observou as restrições, fugiu delas, mas, ainda assim, elas são importantes e o público percebe quando isso acontece nos EUA. Isso é a nova tecnologia. E a mídia democrática pode ser reconstruída e, como qualquer outro sistema de tirania particular, como ditadura militar ou totalitarismo ou empresas privadas, pode se eliminada. Não são leis da natureza, mas sim instituições humanas.
Sérgio Augusto: Professor Chomsky, que opinião o senhor tem sobre a internet?
Noam Chomsky: A tecnologia, em si, é totalmente neutra. Ela não liga se for usada para controlar ou para libertar as pessoas. Pode-se dizer o mesmo sobre a tecnologia impressa, o rádio, a TV ou a internet. Ela se torna o que as pessoas fizerem dela. A internet, como todas as partes dinâmicas da economia moderna, foi criada pelo público e à custa dele e devia ser propriedade de quem a construiu, os contribuintes. A última decisão do Congresso dos Estados Unidos entregou esse sistema criado pelo público a megaempresas privadas. Foi o que aconteceu com o rádio em 1930, quando o espectro livre foi entregue a empresas particulares. Aconteceu com a TV em 1950. Há um esforço agora, já aprovado por lei, para comercializar o sistema de telecomunicações, que foi criado às expensas do público, que foi quem pagou pelos satélites, pelos computadores e desenvolveu a tecnologia. Se isso vai dar certo ou não, não sabemos. Há muita resistência, há muito esforço popular para manter a internet como um sistema de acesso livre ao público e para que os segmentos populares possam usar para seus próprios interesses e propósitos. As empresas foram muito claras quanto ao que elas gostariam de que fosse. Queriam que fosse um serviço de compras caseiras, outra técnica de marginalização, isolamento e controle, mas não precisam ter sucesso como tiveram com o rádio, a TV ou com a imprensa, portanto a internet será o que as pessoas fizerem dela. Ela tem muitos aspectos positivos e negativos também. A comunicação pela internet estabelece contatos entre pessoas que, de outro modo, estariam isoladas, mas também isola as pessoas. Somos seres humanos, não marcianos, e há uma grande diferença entre contato cara-a-cara e ficar batendo teclas. Há efeitos psicológicos que me deixam cético. Como toda tecnologia, a internet tem muitas facetas.
Ibsen Costa Manso: Eu pessoalmente gosto muito da internet, porque é o único meio da gente conseguir contatá-lo, não é, professor? A gente conseguiu uma entrevista no Jornal da Tarde e trocamos e-mails e tal. Realmente o senhor que anda pelo mundo todo, só via internet mesmo. Eu queria voltar um pouco na questão do papel dos intelectuais. Alguns críticos da sua obra dizem que elas não atingem aqueles oprimidos que o senhor próprio defende. O senhor também é um crítico dos intelectuais e dos papéis dos intelectuais, sociólogos, principalmente sociólogos franceses, vou citar aqui o Alain Touraine [(1925), sociólogo francês, cujo trabalho é baseado na "sociologia de ação", seu principal ponto de interesse tem sido o estudo dos movimentos sociais, pois acredita que a sociedade molda o seu futuro através de mecanismos estruturais e das suas próprias lutas sociais; tornou-se conhecido por ter sido o pai da expressão "sociedade pós-industrial". Foi entrevistado pelo Roda Viva em 2002], que é amigo pessoal do presidente Fernando Henrique Cardoso. Também criticou quando os intelectuais chegam ao poder. E principalmente alguns teóricos dizem que os intelectuais têm alguma dificuldade em se contrapor ao establishment [grupo sociopolítico que exerce sua autoridade, controle ou influência, defendendo seus privilégios], porque eles fazem parte, na prática, do establishment. Saem das classes mais privilegiadas e, portanto, eles têm dificuldades, ficam com as mãos atadas na hora em que chegam ao poder, de contrariar esse establishment. Qual o senhor acha que deve ser o papel do intelectual e como o intelectual no poder pode agir?
Noam Chomsky: O intelectual no poder deve agir para eliminar seu próprio poder. Isso é difícil e não acontece muito. Mas as pessoas, às vezes, me perguntam o que faria se eu fosse eleito presidente. Digo que, primeiro, estabeleceria um tribunal de crimes de trabalho, para me julgar pelos crimes de trabalho que eu cometesse. A seguir, me livraria do meu poder e o poria nas mãos do público. Isso não costuma ser feito. As críticas de Alain Touraine são corretas e antigas. E a primeira expressão que conheço data de meados do século XIX, quando [Mikhail Alexandrovich] Bakunin [(1814-1876) anarquista russo] previu que a nova classe que surgia, que ele chamou de “inteligência científica”, os intelectuais modernos, iria em duas direções [no texto "Sobre a Associação Internacional de Trabalhadores e Marx", publicado em 1872, Bakhunin pode ter sido o primeiro a prever que os intelectuais e administradores passariam a integrar o aparato do Estado – que sempre teria sido patrimônio de uma classe privilegiada–, formando a "classe burocrática"]. Alguns, ele disse, tentariam usar as lutas populares, dos trabalhadores para obter o poder para si mesmos e se tornariam a burocracia vermelha, que criaria o regime totalitário mais brutal de que se tem notícias. Outros reconheceriam que o poder está em outro lugar, no que hoje chamamos de instituições de capital do Estado e se tornariam os administradores daqueles que detêm mesmo o poder. Bateriam no povo com a vara do povo nas democracias de Estado. Foi uma boa previsão. Depois, há outro grupo de intelectuais que nem gostam de ser chamados de intelectuais. São apenas pessoas que pensam e trabalham com organizações populares, que lutam contra o poder e tentam desintegrá-lo, que se interessam por direitos, democracia, justiça social e em fazer algo. Esse é um outro grupo de intelectuais. Eles não precisam ter uma educação superior. Conheci pessoas que trabalham com as mãos e fazem um trabalho intelectual muito mais criativo do que muitas pessoas de universidade. Se é intelectual ou não, isso não tem a ver com sua posição. Como disse antes, na minha infância um dos círculos mais intelectualizados de que participei era de trabalhadores. Alguns nunca tiveram uma educação primária, mas tinham uma vida intelectual muito ativa, como muitos outros. Nós, que usamos paletó e gravata, fazemos parte das classes ricas. Temos privilégios e, quanto mais privilégio, mais responsabilidade. E como você exercita as responsabilidades? É uma escolha pessoal.
Ibsen Spartacus: Professor, voltando um pouco nessas duas últimas questões, talvez misturando-as, na instituição à qual o senhor é ligado, o MIT [Instituto Tecnológico de Massachusetts], há um laboratório de mídia que reúne a nata dos pensadores da chamada “revolução digital”. Esses pensadores acreditam e defendem que novas mídias e novas tecnologias podem alavancar processos democráticos. A internet seria o grande espaço para que esses processos democráticos surgissem e crescessem. Mas me parece que esses processos estariam restritos a quem pode pagar pelo menos 2 mil dólares para ter um bom computador. Como é que o senhor avalia essa corrente de pensamento?
Noam Chomsky: O laboratório de mídia da MIT não é diferente de nenhum outro sistema de telecomunicações. Em geral, há pessoas envolvidas genuinamente empenhadas em torná-los acessíveis e disponíveis ao público como um método para democratizar a mídia, aumentar o fluxo de informação, permitir que as pessoas se expressem, se comuniquem entre elas, etc. E outros estão empenhados em transformá-los num modo de controle e domínio. Em um microcosmos se tem um conflito que se estende por toda a sociedade. Agora, a internet ainda é um fenômeno de elite. A maior parte da população mundial nem tem telefone. O número dos que usam a internet é muito limitado e geralmente fazem parte de instituições ricas. Tentar fazer isso sozinho é muito caro. Em princípio, ela pode ser democratizada. A tecnologia está lá, mas a Lei de Telecomunicações de 1995 é um grande instrumento legal projetado para evitar a democratização da internet, passando seu controle das instituições públicas para mega empresas particulares. É interessante que, nos EUA, isso não foi tratado como uma questão pública, mas como uma questão de negócios. Você lê sobre a Lei das Telecomunicações na imprensa mercantil. É um assunto público, mas a estrutura de pensamento tem que ser comercializada. É a única opção. A idéia de que fique no controle do público nem é opção. Então, não se escreve a respeito nas primeiras páginas, mas nas páginas de negócios e a única questão é como ela deve ser comercializada. Essas são algumas das formas como a propaganda age, como as entidades doutrinárias formatam opções e pensamentos de modo que os maiores problemas nem sejam visíveis para as pessoas. Poucas sabem que isso aconteceu ou que haveria outras oportunidades. Quanto à mídia, há os que sabem e os que são a favor.
Emir Sader: Professor, o presidente Clinton finalmente anunciou, no seu segundo mandato, que virá à América Latina. Ele não cruzou a fronteira nem para assinar o Nafta, nem para ver as conseqüências do Nafta. Qual o senhor acha que é a pauta que ele trará para o Brasil? O que os Estados Unidos, o governo americano pensa do Brasil? E qual o senhor acha que deveria ser a pauta do governo brasileiro soberano, que defendesse os interesses do país, a discutir com o governo norte-americano hoje em dia?
Noam Chomsky: Se o presidente Clinton vier ao Brasil será porque tem bons campos de golfe e um comitê de boas vindas [risos] que queira discutir com ele a melhor forma de estabelecer o controle e a subordinação da economia brasileira a empresas transnacionais. Ele viria por isso. Pode dizer palavras bonitas, mas é o representante das comunidades comerciais. Não é um direitista extremo, mas um republicano moderado, do tipo de Eisenhower. Virtualmente ele não se diferencia de seu adversário nas últimas eleições. O que os brasileiros devem fazer? Não será o governo que o fará, nem precisa dizer. O que os brasileiros devem fazer é superar o escândalo da sociedade brasileira, que data de muito tempo atrás e faz parte de um escândalo latino-americano, numa forma mais exagerada do que achamos no mundo todo. O Estado se subordina aos ricos, que têm responsabilidades sociais muito limitadas. O país é radicalmente dividido. Não estou dizendo nada que não se saiba. A maior parte da população está fora do setor moderno. Isso é um escândalo. O Brasil é um país rico, tem muitos recursos e tem sido chamado de “o Colosso do Sul”, que deveria ser uma contrapartie ao “Colosso do Norte”. Se não é assim, são problemas internos do Brasil, claro que apoiados por fatores externos, como o apoio americano ao golpe militar, mas as raízes fundamentais estão aqui e, se não forem resolvidas internamente, vão piorar cada vez mais. Obviamente as respostas não virão dos donos das empresas nem dos líderes do governo nem do presidente Clinton: virão de pessoas de dentro do Brasil que lutam para superar essa situação horrível. O fato de o Brasil, depois de 20 anos de uma das mais altas taxas de nascimento do mundo, de 1970 a 1990, maior que a do Chile... O fato de que, depois disso, ficou no relatório de desenvolvimento da ONU, ao lado da Albânia, deveria escandalizar os brasileiros, incluindo o que representa. E representa um desastre para a população, o que é dramático, pois aqui não é a África Central. Os recursos materiais estão aí, os recursos humanos também. Faz com que o fracasso seja mais dramático ao se notar o potencial do que seria num país que sofre de limitações.
Breno Altman: Professor, qual é a sua opinião sobre o sociólogo Fernando Henrique Cardoso?
Noam Chomsky: Li seu trabalho, quando ele era sociólogo e achei interessante e esclarecedor. Foi há muitos anos, mas agora ele tem um papel institucional diferente. Dentro da estrutura do sistema de poder, ou não se sente livre para desafiar ou não quer desafiar. Pergunte a ele, não sei, mas o sistema de poder é muito feio. Tomemos um exemplo. As políticas do Brasil são constrangidas pelo pagamento da dívida. O povo não deveria tolerar isso. Em relação à dívida e em todos os aspectos, a política brasileira é restringida por esse limite. Quanto a isso, há duas opções: pagar ou não pagar. Acho razoável não pagar, tem sido paga mil vezes. Se decidirem pagar, suponham que eu tenha emprestado dinheiro e o tenha gasto jogando. A responsabilidade é sua? Não, eu devo pagar. A dívida do Brasil, se for paga, deveria ser paga por quem tomou emprestado. Os que moram na favela do Rio não pediram nada emprestado, não ganharam nada com isso. O dinheiro foi dado para os ricos, que o mandaram para fora e enriqueceram. Eles que paguem, os generais que paguem, não é um problema do povo do Brasil. Se o governo não é capaz de enfrentar a questão ou, para ser mais exato, se a população não o obrigar a fazê-lo, o Brasil tem muito poucas opções e quem assumir o cargo de presidente também.
Daniel Piza: Qual seria exatamente, dentro desse ponto de vista, uma política adequada em relação às multinacionais? O que o presidente Fernando Henrique deveria fazer em relação às multinacionais? Aumentar o protecionismo de que maneira?
Noam Chomsky: As escolhas não estão nas mãos do presidente, e sim nas mãos do povo. Como pessoa, ele não pode fazer muito. Quanto às empresas multinacionais ou em geral, a atitude deve ser a mesma que se toma em relação a outras formas de tirania. É interessante estudar a história das empresas. Há bons estudos acadêmicos sobre o crescimento das empresas. É interessante, vale a pena estudar. As empresas modernas – falo dos EUA, mas não é muito diferente em outras partes –, nos EUA, elas foram criadas por tribunais e advogados, não por legislação. Lendo liberais clássicos, como Thomas Jefferson [(1743-1826) terceiro presidente dos Estados Unidos, de 1801 a 1809, e principal autor da Declaração da Independência Americana], eles eram radicalmente contrários a elas. No início da história, eram grupos de interesse público. As pessoas se reuniam para construir uma ponte. A uma certa altura, no início do século XIX, elas começaram a mudar. Jefferson, por exemplo, que era um importante liberal clássico da história americana, em 1820 avisou que o crescimento de instituições financeiras e empresas industriais seria o fim da democracia. Tocqueville [Alexis Henri Charles Clérel ou visconde de Tocqueville (1805-1859) foi um pensador político, historiador e escritor francês. Tornou-se célebre por suas análises da Revolução Francesa] disse o mesmo. Ele é a outra figura do liberalismo clássico. Quando descreveu os EUA em 1830, ele avisou que a aristocracia industrial, que crescia perante nossos olhos – isso foi há 170 anos –, era a mais dura do mundo e, se obtivesse o poder, seria o fim da democracia americana. Durante o século, eles conseguiram o poder – e não por lei, mas principalmente pelos tribunais– e conseguiram os direitos das pessoas, de palavra livre, direitos individuais. No início do século XX, eram enormes instituições dominando a sociedade. Não por desejo popular, muito pelo contrário. Se olharem suas raízes intelectuais, verão que são muito similares ao bolchevismo e ao fascismo. Tem idéias hegelianas que se desenvolveram no final do século XIX quanto aos direitos das grandes instituições sobre os indivíduos. Raízes muito parecidas. Daí os progressistas, muitas vezes, apoiarem as empresas, os mesmos que apoiaram o que se tornou o bolchevismo no começo do século XX. Isso não é incorreto, uma corporação é uma indústria totalitária. As ordens vêm de cima para baixo. Você se insere nela, recebe as ordens de cima e as leva para baixo. No topo, há um setor integrado de proprietários, investidores, bancos, instituições financeiras etc, o mais perto possível do ideal totalitarista que os humanos construíram. Se se está de fora, a única escolha é alugar-se para ele, ou seja, conseguir um emprego ou comprar o que produz. São empresas de mídia. Não são pequenas ilhas no cenário de mercado livre, são enormes tiranias ligadas umas às outras, é com o Estado que controlam em grande parte, integradas através das fronteiras. A atividade deveria ser a mesma usada com outras formas de tirania. O fascismo foi derrubado, o bolchevismo foi derrubado, o corporativismo também pode ser.
Alberto Dines: Professor, o senhor falou agora que o fascismo foi derrubado, mas nós estamos vendo aí no mundo o neofascismo, em todos continentes, surgindo com muita força popular. A França, um caso clássico, que é a pátria do fascismo científico, desde o fim do século passado... o caso Dreyfus. O senhor não vê a possibilidade de esse fascismo popular que está surgindo – a Áustria agora – se juntar às grandes corporações, ou melhor, as grandes corporações perceberem no neofascismo uma oportunidade de ganhar legitimidade popular?
Noam Chomsky: Estou pensando nos movimentos atuais, como o de Le Pen. Os movimentos populares podem tomar formas diferentes. O mesmo grupo social pode lutar por liberdade ou ser a base popular do fascismo. Isso é verdade no caso de Le Pen. [Adolf] Hitler [ditador austro-germânico que deflagrou a Segunda Guerra Mundial, criou o Partido Nacional-Socialista na Alemanha e foi o responsável pelo extermínio de milhões de judeus e de outros grupos minoritários como eslavos, poloneses, ciganos, negros, homossexuais, deficientes físicos e mentais, no que se convencionou chamar de Holocausto] foi o líder mais popular da história da Alemanha. A base popular de Hitler foi, em parte, não só os industriais, mas movimentos sociais que, em outras circunstâncias, poderiam estar lutando. Era o movimento trabalhista mais militante da Europa. Veja nos Estados Unidos: os que hoje estão na chamada milícia de direita são os mesmos que organizavam o CIO [Comitê por uma Internacional Operária, organização que congrega partidos socialistas de 35 países] há 60 anos. Vêm do mesmo setor socioeconômico, têm os mesmos tipos de problemas e estão desaparecendo, o mundo está se desintegrando. E, nos anos 30, eles criaram o movimento dos trabalhadores americanos e obtiveram direitos e liberdade. Nos anos 90 são o movimento direitista, que é muito perigoso, sob controle de líderes fanáticos, muitos deles fanáticos religiosos. Os mesmos grupos populares e é a mesma história de todos os assuntos humanos. Como vão se desenvolver depende do que fizerem e do que os outros farão – outros, como nós, que têm o privilégio de interagir com eles. Sempre foi assim e ainda é assim. Os grupos populares podem ser uma fonte de fascismo perigoso ou de grande libertação.
Ibsen Costa Manso: Professor, o senhor é conhecido, o seu trabalho é muito conhecido, o senhor foi um dos primeiros a denunciar a Guerra do Vietnã, quando isso não havia ocupado o espaço da mídia. O senhor denunciou a questão do Burundi, quando a gente nem sabia onde esse país africano ficava e, atualmente, o senhor está engajado, já há algum tempo, na questão do Timor. Essa semana que nós estivemos juntos aqui, em São Paulo, o senhor, inclusive, esteve com o prêmio Nobel da Paz, o José Ramos Horta, que é seu amigo de duas décadas. Agora a questão é como ajudar... como o Brasil, que tem tantos laços em comum – senão tantos, pelo menos, a língua –, concretamente, como o senhor defende que seja uma campanha a nível mundial para ajudar o Timor? Essa, aliás, é uma outra questão que se coloca para os intelectuais, quer dizer, existe uma análise muito clara, dos problemas mundiais, mas não se apontam por muitas vezes, soluções práticas para combater essas situações. Eu perguntei, inclusive, isso ao professor Ramos Horta: “o senhor acha que é válido que haja um boicote governamental ao comércio bilateral com a Indonésia, por exemplo?” Ele disse: “Não, isso precisa ser uma ação da sociedade e, portanto, os governos vão atrás”. O que o senhor acha desta questão?
Noam Chomsky: Fico feliz em recomendar soluções práticas. É isso que faço nos Estados Unidos o tempo todo, mas não me sinto livre para recomendar ações para vocês. Decidam vocês. Faço isso onde moro. O papel do Brasil nesse assunto poderia ser enorme. Podem ver como seria enorme olhando a história. Ao ponto que pessoas como José puderam fazer algo. Foi porque ele teve o apoio dos governos? Quais? Moçambique, São Tomé, governos desse porte. Ele não teve o apoio do Brasil, do ex-mundo português. O Brasil é muito mais poderoso obviamente. O tipo de apoio de Moçambique, o Brasil poderia tê-lo dado cem vezes. Isso significa criar formas de apoio internacional, ajudar a pôr o assunto na agenda internacional, obter publicidade e participar de pressões econômicas. Ele tem suas idéias quanto ao que deve ser feito, eu tenho as minhas. Eu sinto que os generais indonésios estão prestes a decidir sobre isso, podem ir para qualquer lado. O chanceler, há dois ou três anos, quando a opinião pública crescia, disse que Timor Leste era uma pedra no sapato, “talvez devêssemos nos livrar dela”. Essa é a implicação. “Está nos dando muito trabalho”. O Wall Street Journal, que não é muito progressista, fez um editorial que chamou “Uma pedra no sapato”, dizendo aos generais indonésios: “Não vale a pena, livrem-se disso. Só causa problemas”. Nessa última semana, a Far Eastern Economic Review, o grande jornal sobre a economia asiática, publicou entrevistas com altos executivos. Ainda não a vi. Estava viajando, mas José Ramos me contou. É de segunda mão. Disse-me que estavam recomendando que a Indonésia se livrasse “da pedra”. Pressão faz diferença. Os tipos de pressão vindos do Brasil são diferentes dos que vêm dos Estados Unidos. As pressões dos Estados Unidos são mais importantes, eles são o poder dominante do mundo. Fazemos do nosso jeito. Mas as que vêm do Brasil não são pequenas, sejam ameaças de cooperação econômica, sejam ameaças políticas, demonstrações públicas. Devem decidir de acordo com o contexto brasileiro.
Breno Altman: Senhor Noam Chomsky, eu queria fazer uma pergunta sobre um dos mais longos processos de discriminação imperialista deste século. O povo cubano, com o segundo mandato de Bill Clinton, pode ter esperança de que caia o bloqueio econômico?
Noam Chomsky: Novamente, as decisões estão nas mãos do povo dos Estados Unidos e dos outros países do mundo. Depois da queda da União Soviética, quando não se podia mais fingir que havia uma ameaça soviética, as sanções contra Cuba ficaram mais rigorosas e o esforço para estrangular Cuba cresceu em intensidade. E cresceu de novo no ano passado. No momento, a maior parte do mundo está objetando retoricamente. Há objeções retóricas para romper o boicote americano. Se isso der certo, se outros países começarem a negociar com Cuba, verão exatamente o que aconteceu com o Vietnã. No caso do Vietnã, depois da guerra, os Estados Unidos tentaram estrangular o Vietnã e eles já tinham ganho a guerra. A Indochina estava mais ou menos destruída, mas queriam ter certeza de que não se recuperaria. Era um golpe econômico. Durou até que outros países começassem a desobedecer. A maioria dos países obedecem aos Estados Unidos. É um país poderoso e perigoso. Mas, depois de um tempo, o Japão deixou de ligar e as companhias européias também começaram a negociar com o Vietnã, a instalar escritórios de negócios. Daí, os negociantes americanos começaram a se queixar: estavam sendo excluídos de mercados importantes. E, de repente, num curto período de tempo, a política dos Estados Unidos mudou. Descobriram que a situação dos direitos humanos estava melhorando no Vietnã, portanto, podíamos lidar com isso. Nada tinha mudado, na verdade – exceto que os rivais econômicos estavam agindo –, e os negociantes americanos começaram a se queixar. Isso começa a acontecer com Cuba. Na última visita de [Fidel] Castro [em janeiro de 1959, Fidel assume o poder em Cuba, torna-se primeiro-ministro (1959 a 1976) e presidente do governo e primeiro secretário do Partido Comunista a partir de 1976. Em 1961, declara Cuba um estado socialista. No mesmo ano, os Estados Unidos cortam relações diplomáticas com a ilha e iniciam um embargo econômico ao país, que dura até hoje] a Nova Iorque, ele... O governo não queria nada com ele, a mídia fez grandes ataques a ele, exceto por uma coisa: David Rockefeller [banqueiro e filantropo americano, esteve entre 1961 e 1981 no comando do banco Chase Manhattan, do qual era também o maior acionista. Durante esse período, a instituição se tornou uma das maiores credoras individuais da dívida externa brasileira] fez uma reunião de industriais para conhecê-lo, porque o mundo comercial americano não gosta do fato de que o México comece a se envolver com o ramo de telefones e negocie com a Europa. Cuba e Vietnã não são a mesma coisa. A maioria dos americanos não tinha ouvido falar do Vietnã, mas Cuba tem sido a questão principal de política externa há 170 anos. Aí por 1820, os Estados Unidos estavam empenhados em conquistar Cuba e eu diria que eram pessoas boas como Thomas Jefferson que diziam: “Sim, temos que incorporar Cuba ao império”. Não conseguiram, na época, devido à frota britânica, não à russa, mas à inglesa. No final do século, o poder mudou. Podiam fazer e fizeram. A pretexto de libertar Cuba, os Estados Unidos se uniram à liberação de Cuba e a conquistaram até 1959. Cuba não passava de uma fazenda americana. É uma questão profunda nos Estados Unidos reintegrar, subordinar Cuba de novo ao sistema americano. Acima disso, a elite americana se preocupa não com a falta de democracia em Cuba. Isso não importa. Importam os padrões sociais que foram alcançados. Há padrões altos de saúde e de educação, na verdade, único nas Américas. Quase no nível do Canadá e dos Estados Unidos, o que é notável dadas as circunstâncias. É um país pobre, não só pobre, mas sob o ataque das superpotências do hemisfério e, ainda assim, manteve os padrões e isso é perigoso, porque manda o recado errado. Diz às pessoas: “Olhem, podem fazer algo com suas vidas”. E é algo perigoso pensar assim. Eis as principais razões dos EUA quererem garantir que Cuba não siga um caminho independente, e não será fácil de superar. Mas a questão principal é parecida com a do Vietnã. Se outros países romperem o boicote e houver protestos populares suficientes nos EUA, a política muda.
Matinas Suzuki: Professor Chomsky, infelizmente nosso programa está chegando ao final, eu e o Sérgio Augusto, aqui, temos uma curiosidade, uma pequena curiosidade. O senhor votou nas últimas eleições americanas?
Noam Chomsky: Na verdade, sim. Foi um dia antes de vir à América do Sul. Acho que é uma decisão de importância relativa, mas não sem importância. Os dois partidos políticos são mais ou menos idênticos, mas têm formações diferentes por razões históricas. Os que votam para os democratas tendem a ser os de renda menor, minorias, mulheres etc. Os que votam para os republicanos tendem a ser mais ricos, religiosos, fundamentalistas, racistas, outros setores da população. Em qualquer sistema, seja tirania ou democracia, os governantes terão de responder aos eleitores. Os generais brasileiros tinham que prestar atenção ao que estava acontecendo na sociedade. Quando se tem uma democracia política como no EUA, basicamente com um partido e duas facções, eles jogam migalhas aos eleitores, seguem a política básica, do mesmo modo. Mas fazem algo para os eleitores, coisas diferentes. Não muda o mundo, mas faz diferença, se uma criança de sete anos tem comida para comer. É uma razão para votar, para um ou para o outro. Na verdade, eu divido meu voto. Às vezes voto para os republicanos, outras para os democratas, mas é a minha base de consideração.
Matinas Suzuki: Eu agradeço muita a sua presença aqui esta noite e acredito que sua passagem pelo Brasil vai contribuir muito para o debate sobre nosso futuro. Eu gostaria também de agradecer bastante a presença dos nossos entrevistadores aqui esta noite no Roda Viva e agradecer sua atenção.
[Via BBA]
Matinas Suzuki: Boa noite. Ele é um dos mais importantes pensadores deste final de século. No centro do Roda Viva está o professor americano Noam Chomsky.
[Comentarista]: Anos 60, tempo de paz, amor e uma revolução de costumes. Como contraste, o confronto entre Estados Unidos e União Soviética na Baía dos Porcos em Cuba, a Guerra do Vietnã. E é nesse cenário que, no início da década, sai do anonimato o lingüista Noam Chomsky e, com ele, a teoria de uma gramática universal, já presente no código genético, que ordena a fala do ser humano, relegando a língua a uma mera questão cultural. A idéia provoca um rebuliço na comunidade científica. A polêmica incentiva Noam Chomsky a expor sua visão política, suas críticas contra a Guerra do Vietnã chamam a atenção. Começava aí, um caminho sem volta contra qualquer modelo de poder, do comunismo ao liberalismo totalitário norte-americano. Outro alvo de ataque é a mídia de massa. Chomsky trata as grandes redes de comunicação como veículos manipuladores a serviço de quem ele considera os verdadeiros donos de governos e nações, os grandes conglomerados multinacionais. Decifrar a história por trás da mídia é um dos passatempos favoritos desse anarquista confesso. Em Repensando Camelot, um de seus mais de 50 livros, o filósofo estarrece os leitores com uma interpretação reveladora, arranca a máscara pacifista do ex-presidente John Kennedy e apresenta JFK como um dos mentores da invasão de Cuba e articulador da guerra contra o Vietnã e dos golpes no Chile e no Brasil. Chomsky é filho de judeus; o interesse pela lingüística herdou do pai, um erudito em hebraico. Aos 32 anos, Chomsky se tornou catedrático do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, um dos mais prestigiados centros de pesquisas do mundo. Hoje, aos 68 anos, é considerado um dos maiores intelectuais de esquerda e um crítico ferrenho das atuais políticas interna e externa dos Estados Unidos. Mesmo de origem judaica, é uma voz dissonante ao atacar a política israelense e se posicionar em favor de um estado palestino. A perspectiva de Chomsky para a virada do século é um balde de água fria nos apóstolos da globalização. Para ele, a eliminação das culturas regionais e a interferência de instrumentos de poder, como o FMI [Fundo Monetário Internacional], o Banco Mundial e o Nafta [Tratado Norte-Americano de Livre Comércio], funcionarão como geradores de pobreza, aumentando os problemas de distribuição de renda em favor das elites.
Matinas Suzuki: Para entrevistar o pensador Noam Chomsky, nós convidamos Alberto Dines, do Laboratório de Estudos Avançados de Jornalismo da Unicamp; o Ibsen Costa Manso, que é secretário assistente do Jornal da Tarde; o jornalista Sérgio Augusto, dos jornais O Globo e O Estado de S. Paulo; Daniel Piza, editor de cultura da Gazeta Mercantil; Breno Altman, diretor de redação da revista Atenção; o Emir Sader, que é cientista político, e o Ibsen Spartacus, diretor editorial da Nova Cultural. Boa noite, professor Noam Chomsky. Eu gostaria de começar este programa do início, ou seja, o senhor ficou conhecido no início como um estudioso dos fenômenos da linguagem, e a partir de um certo momento, passou também a fazer uma intervenção política. A partir de quando o senhor sentiu necessidade de interferir na questão política?
Noam Chomsky: Bem, meu primeiro artigo político escrevi quando eu tinha 10 anos, no jornal da escola, depois da queda de Barcelona. Estava muito interessado na guerra civil espanhola e envolvido, àquela altura, com grupos de esquerda, preocupados com a difusão do fascismo na Europa, seja lá como um garoto de 10 anos possa entender isso. E as coisas não mudaram muito desde então. Então, não é primeiro lingüística e depois política. Foi muito antes de saber que existia algo chamado lingüística ou o estudo da língua.
Emir Sader: Professor Chomsky, terminada a chamada Guerra Fria e os conflitos entre Estados Unidos e União Soviética, segundo o professor Samuel Huntington, a dinâmica dos conflitos contemporâneos se daria no nível das civilizações, no nível das culturas [e não no plano ideológico ou econômico]; na verdade, a cultura ocidental contra o resto das culturas. É um artigo famoso, seguiu a trajetória do [Francis] Fukuyama, primeiro artigo da Foreign Affairs [revista científica norte-americana sobre relações internacionais], depois um livro [O choque de civilizações e a recomposição da ordem mundial, livro originalmente publicado em 1996 – no Brasil saiu em 1997– em que expande a tese defendida anos antes]; segundo [Henry] Kissinger [ex-secretário de Estado e ex-conselheiro de Segurança Nacional dos EUA], é o livro mais importante, desde o começo da Guerra Fria. Queria saber que opinião o senhor tem a respeito dessa concepção?
Noam Chomsky: Não tenho muita consideração pela maior parte do trabalho de intelectuais respeitados, admito. Eles têm uma função a cumprir, que é fazer as coisas parecerem complicadas e apresentar uma imagem do mundo que sirva a seus interessas de poder, e o fim da história foi declarado, pelo menos meia dúzia de vezes, nos últimos 130 anos, sempre da forma errada. Acho que a Guerra Fria foi seriamente mal interpretada. Do meu ponto de vista, foi uma fase do conflito Norte-Sul, um eufemismo para a conquista européia do mundo. A Europa Oriental era o Terceiro Mundo original desde o século XV, até quando começou a andar em direção à independência em 1917. E evocou a mesma reação que o extremo oposto, Granada, que começou a estabelecer cooperativas de pesca. A escala é radicalmente diferente, mas é a estrutura básica que está dentro desse molde e as coisas continuam. O que o professor Huntington chama de conflito de civilizações tem ocorrido há séculos e ocorre do mesmo modo de hoje. A idéia dele de que os Estados Unidos são os líderes do Ocidente se confrontados com a civilização islâmica, não faz sentido. Um dos mais próximos aliados dos EUA é talvez o país mais fundamentalista islâmico do mundo, a Arábia Saudita, e isso pode mudar amanhã se houver uma revolução na Arábia Saudita. A dinâmica e os processos são iguais aos de antes. Na verdade, chama a atenção, no caso dos Estados Unidos que, desde 1970, todas as intervenções americanas, principalmente desde 1945, foram justificadas como ligadas ao perigo soviético. Mas o que aconteceu antes da Guerra Fria, que na verdade começou em 1917, bem antes de [Thomas] Woodrow Wilson [1856-1924) presidente dos Estados Unidos pelo Partido Democrata por duas vezes seguidas, ficando no cargo de 1912 a 1921] invadir o Haiti e a República Dominicana. Isso não foi para defender-se da União Soviética, mas sim para se defender dos hunos [um dos povos bárbaros mais violentos e ávidos por guerras e pilhagens, eram nômades e provenientes da região da Mongólia, na Ásia]. Antes disso, foi para defender-se de outros. Considerando o desenvolvimento da marinha americana, há 110 anos, foi para defender-se do Chile. Navios de guerra americanos estavam nas costas do Chile. Logo depois da queda do Muro de Berlim, o que aconteceu? Poucas semanas depois, os Estados Unidos invadiram o Panamá. Foi algo tão convencional, que nem chega a nota de rodapé na história. A única diferença entre essa e outras intervenções, por muitos anos, foi a falta de pretextos. Não podia ser para defender-se da União Soviética. Então era contra os narcotraficantes hispânicos. Da próxima vez, será outra coisa. Olhando os conflitos que existem pelo mundo, a maioria já existe há muito tempo. Os únicos novos ocorrem dentro do império soviético desmoronado. Chechênia [Em 1991, a Chechênia declarou independência da Rússia, mas o ex-presidente russo Boris Yeltsin se opôs e, em 1994, enviou tropas à região, para restaurar a autoridade de Moscou. Em 1996, as forças russas foram derrotados pelas tropas chechenas, mas, apesar disso, a Rússia não reconheceu sua independência], isso é novo, mas é o resultado da queda de qualquer sistema imperial. Quando o império português desmoronou, havia, de fato, grandes conflitos ocorrendo no sistema colonial português: Angola, Moçambique, Timor, no sudeste asiático. Quando os sistemas britânico e francês desmoronaram, houve grandes massacres, chacinas e conflitos. Alguns ainda continuam. Os da África Central, no momento, são resíduos do imperialismo belga, alemão e francês. Há sempre coisas novas acontecendo, mas a dinâmica fundamental não muda substancialmente, na verdade, por muito tempo.
Alberto Dines: Professor Chomsky, aproveitando a sua biografia, já que estamos no início do programa, o senhor foi educado numa família de forte tradição cultural, pelo menos judaica, uma família, inclusive, progressista, onde as notícias da guerra de Espanha chegavam, entravam dentro de casa. Como é que o senhor vê dois problemas ligados a sua formação? Um: no próximo ano, nós vamos ter o 1º século de existência do sionismo [movimento religioso e político, originado no século 19, que pregava o restabelecimento, na Palestina, de um Estado judaico] político. Qual o futuro que vê para o Estado de Israel? E qual o futuro que vê para o judaísmo na diáspora: religião, cultura apenas, uma idéia moral e ética? Eu queria que o senhor elaborasse um pouco sobre essas duas questões.
Noam Chomsky: Meus pais foram da primeira geração de imigrantes da Europa Oriental e, profundamente envolvidos na comunidade judaica, viviam num gueto cultural. Ao mesmo tempo, eram liberais do new deal [depois da grave crise finaneceira pela qual passaram os Estados Unidos em 1929, o então presidente Roosevelt, inspirado nas idéias do economista inglês John Maynard Keynes, lançou um conjunto de medidas econômicas pelas quais o Estado aumentava sua participação na economia, criando uma demanda que, para ser atendida, mobilizava setores da economia paralisados pela crise], de [Franklin Delano] Roosevelt [(1882-1945) presidente dos Estados Unidos entre 1933 e 1945]. Essa era a política basicamente. Outras partes da família, com as quais eu era ligado desde cedo, eram da classe trabalhadora, na maioria desempregados. Era o final dos anos 30, havia uma cultura intelectual rica e animada na época, uma cultura muito elevada, debates sobre psicanálise, [Karl] Marx [(1818-1883), teórico do socialismo e revolucionário alemão, autor, entre outras obras, de O capital, sua obra-prima e referência para as gerações posteriores de sociólogos e economistas] e Quarteto de cordas de Budapeste e assim por diante. Muitos quase não tinham educação, mas uma rica tradição cultural da qual eu fazia parte. É uma mistura de envolvimento judeu muito forte a minha vida toda. Na época, eu era o que se chamava de sionista [que defende o direito do povo judeu à autodeterminação e à criação de um Estado judaico]. Na verdade a maior parte do meu ativismo na adolescência foi sionista, mas em oposição a um Estado judeu, pois isso fazia parte do movimento sionista na época. Havia muitas ilusões sobre isso. O primeiro compromisso dos sionistas com um Estado judeu foi em 1942 nos Estados Unidos. Antes disso, incluía fortes tendências binacionalistas, mesmo incluindo a liderança de David Ben-Gurion e outros. Eu fazia parte da ala socialista radical, que era ligada à cooperação dos trabalhadores árabe-judeus. Talvez tenha sido uma ilusão ou foi real – pode-se debater isso–, mas o compromisso era esse e eu fiquei. Vivi em um kibutz por algum tempo, em Israel, e podia ter ficado lá, mas voltei. Mas, quanto ao futuro do sionismo, ele mudou. Em 1948 o sionismo político se tornou o sionismo de modo que as tendências anti-Estado foram absorvidas pelo Estado e, daquela época em diante, é apenas um outro Estado no sistema internacional comportando-se como qualquer outro Estado. Principalmente depois de 1967, com as conquistas, tornou-se um apêndice dos Estados Unidos. Então agora é o 51º estado, o que não é muito preciso, porque recebe muito mais subsídios federais do que qualquer outro dos 50 estados originais. Assim sendo é um posto avançado do poder dos EUA e dentro de um arranjo complicado, Israel tornou-se parte do... Os Estados Unidos tomaram da Inglaterra a dominação do Oriente Médio em 1945, como assumiram o domínio da América do Sul. Parte do sistema constitui um tipo de gendarmes [guardas] locais ou, como o secretário da Defesa os chamou, de “policial local de ronda”. A sede da polícia fica em Washington, Israel é uma delas. Faz parte de um imenso sistema que se estende do Pacífico até os Açores que visa o Oriente Médio, controlando o petróleo, o sistema do petróleo.
Alberto Dines: O futuro do judaísmo?
Noam Chomsky: O futuro? O futuro das pessoas está em suas próprias mãos. Não dá para prever coisas como o curso da civilização. Mesmo Israel está rigorosamente dividido de muitos modos. Quase metade da população é de países árabes, metade da Europa. Há uma divisão nítida de linhas religiosas, quase uma guerra civil. Lendo a imprensa israelense, como faço regularmente, pode-se ler na imprensa principal, avisos sobre perigos de um golpe militar com elementos religiosos nos meios oficiais. Muitos estão preocupados com isso. As últimas eleições mostraram uma nítida divisão cultural e é difícil prever o que virá. Nas diásporas, por exemplo, nos EUA, que conheço melhor, há um nível alto de assimilação, mas, ao mesmo tempo, há uma volta a algo como uma versão ficcionalizada dos séculos XVII e XVIII na Europa Oriental que está influenciando centenas de milhares de pessoas. Os negócios humanos são complicados, eu não tentaria prever [risos].
Breno Altman: Professor Chomsky, as opiniões sobre globalização e nova ordem majoritariamente têm se dividido em dois tipos: os eufóricos, que vibram com esse novo modelo de desenvolvimento dos países, e os conformados, que criticam esse modelo, mas o consideram inevitável. Na sua opinião, o senhor, que é um dos grandes críticos da globalização, há alternativa para os povos fora desse caminho? Há possibilidade de um outro modelo de organização da sociedade em resposta à globalização? Como no passado, por exemplo, houve modelos de uma sociedade não-capitalista, algum modelo alternativo à globalização e à nova ordem mundial?
Noam Chomsky: Primeiro, a globalização em si não é boa nem má, depende de que forma de globalização se trata. Se for do tipo que une as pessoas ao redor do mundo, é maravilhosa, sou a favor. O tipo de globalização que transfere o poder para as mãos do que a imprensa mercantil chama de governo “de fato” do mundo, das instituições financeiras internacionais que representam corporações transnacionais e seus afiliados locais, isso é ruim, é prejudicial para todas as pessoas do mundo. A questão é: que forma assume a globalização? Incidentalmente, quanto à inevitabilidade da globalização, deve-se cuidar de distinguir doutrina de realidade, medir fluxos de negócios, investimentos etc. O nível de globalização no mundo não é tão dramaticamente diferente do que foi no passado. Há diferenças, mas não dramáticas, nem em escala, e a maioria das interações é interna para os países ricamente desenvolvidos. Então, a maior parte, 75%, dentro da Europa, Japão e Estados Unidos. E a forma que toma depende do que as pessoas fazem com isso. Pode-se ter uma forma muito construtiva de globalização, na qual existam intercâmbios culturais e econômicos, ligações vitais se desenvolvendo entre as pessoas ou pode-se ter um tipo que transformará o mundo em uma espécie de Brasil. O Brasil é um caso extremo com dois países radicalmente diferentes, um pequeno e rico que faz parte da elite internacional e outro país enorme que é como a África Central. O mundo poderia se transformar nisso. Com efeito, está acontecendo nos Estados Unidos e na Inglaterra e em menores extensões em outras partes nesse momento. Mas esses são assuntos que estão sob controle, não há nada de inevitável neles. Não são leis da natureza. São decisões em instituições humanas que podem ser mudadas como todas as outras. Que tipo de mundo poderá ser? De maior liberdade e justiça. Tenho meu próprio ponto de vista de como deveria ser, penso como um anarquista à moda antiga, como era aos 10 anos. Acho que a ordem mundial deve ser baseada em associação mútua e voluntária onde quer que as pessoas estejam juntas, ou seja, controle do trabalhador no local de trabalho, controle da comunidade, associações voluntárias, arranjos federais entre atravessar fronteiras facilmente, não há nada de especial nelas. Acho que é totalmente viável um mundo assim, mas isso significa eliminar concentrações de poder. E, no momento, o poder está concentrado, a democracia está declinando e isso é algo contra o qual devemos lutar, pois não é inevitável. E não é uma lei da história. Olhando a história, houve de tudo: houve vitórias da liberdade, houve expansões de democracia, houve contrações. Estamos num período de contração, mas isso mudará, como mudou antes.
Matinas Suzuki: Professor Chomsky, mas o que o senhor pensa do marxismo? O marxismo ainda tem alguma contribuição a dar para essas novas transformações que o senhor está afirmando?
Noam Chomsky: Acho complicado o conceito de marxismo. Na física, por exemplo, não existe “einsteinismo”, porque [Albert] Einstein [físico alemão (1879-1955) que alterou as perspectivas teóricas e práticas de sua disciplina, formulando a partir do trabalho de outros pesquisadores a teoria da relatividade e explicando o efeito foto-elétrico, pelo qual recebeu o prêmio Nobel de física de 1921] não é um deus que se adore, mas um ser humano que tinha coisas importantes a dizer e, como qualquer ser humano, cometeu erros [por exemplo, entre 1927 e 1930 Einstein tentou mostrar que a teoria quântica era incorreta e lançou uma série de paradoxos, que Niels Bohr resolveu, mostrando que os experimentos propostos não violavam o princípio da incerteza. Depois disso, Einstein teve de aceitar que a mecânica quântica era ao menos consistente]. Você aprende o que ele disse e desconsidera seus erros. O conceito de marxismo, na minha opinião, pertence à história da religião organizada. É um tipo de adoração de um indivíduo que não faz sentido. Quanto ao próprio Marx e outros da mesma tradição, aprende-se o que tem valor e descarta-se o que é errado. Depois é só observar. Quanto ao socialismo, por exemplo, Marx não tinha quase nada a dizer. Não sou um grande especialista em Marx, mas pelo que eu entendo – e li bastante – há apenas algumas menções de Marx ao socialismo. Ele é um teórico do capitalismo, era um teórico basicamente do capitalismo do século XIX. É perfeitamente natural. Ele desenvolveu uma espécie de modelo abstrato do sistema capitalista e suas propriedades, do qual temos muito a aprender. Uma pessoa pode ler e aprender disso tanto quanto aprendemos de outros, mas presumir que isso ofereça uma doutrina para hoje não faz sentido. Não consigo imaginar que Marx acreditasse nisso. Ele também escreveu coisas importantes sobre assuntos contemporâneos, como os ingleses na Índia. Certamente vale a pena ler, mas, se estivéssemos repetindo isso ainda agora, a civilização estaria morta. Tínhamos que aprender algo nos últimos 100 anos. Existem, sim, contribuições, como há no resto de nossa tradição cultural. Aprender deles o que é importante e descartar o que não é útil...
Ibsem Spartacus: Professor, eu queria saber como o senhor avalia a possibilidade de fortalecimento político internacional de países como China, Índia e Brasil, se o crescimento econômico, que tem sido registrado nesses países, poderia, de alguma forma, ameaçar a nova ordem mundial?
Noam Chomsky: Primeiramente, acho que devemos ter cuidado quando nos referimos a um país como a Índia, a China ou o Brasil, por exemplo. Devemos reconhecer que existe um grande nível de abstração. O Brasil não é uma entidade de ordem internacional, nem a Índia. Na Índia há um setor em desenvolvimento e um grande setor que... ou está estagnado ou provavelmente declinando. Estive lá há pouco tempo e vi os dois lados. Ao se falar de crescimento na Índia, de novo, cuidado. Quando as reformas neoliberais foram instituídas na Índia, houve, como sempre, um grande declínio e colapso. Isso é comum. Depois uma recuperação do colapso. O Wall Street Journal [jornal publicado na cidade de Nova Iorque] fala do crescimento maravilhoso, mas partem do período de recuperação. Voltem 10 anos e verão que, nesse período, o crescimento foi menor do que foi antes, mas é altamente concentrado e também multinacional. A Índia se abriu para penetrações estrangeiras, principalmente de empresas americanas. E foi interessante a forma como o fizeram. Primeiro, tomaram conta da indústria de propaganda. Vê-se a propaganda de bens estrangeiros, com o propósito de podar a indústria doméstica e tornar as pessoas dependentes de produtos estrangeiros. Há setores da sociedade indiana que se beneficiam com isso, vivendo muito melhor do que antes. Há outros setores que estão sofrendo. O mesmo ocorre na China. Ela está bem nitidamente dividida. Partes da China estão se desenvolvendo e outras estão devastadas. Tanto que estudiosos chineses temem a possibilidade de voltar para as guerras camponesas do passado. Observando coisas como a taxa de mortalidade, vê-se que o sistema de saúde em geral melhorou, se desenvolveu muito. Por volta de 1979, começou a se estabilizar e, nas mais recentes estatísticas, está em pleno declínio, isso paralelamente ao grande crescimento. E os yuppies [derivação da sigla YUP, expressão inglesa que significa "young urban professional", ou seja, jovem profissional urbano, e descreve um conjunto de atributos e traços de comportamento de jovens profissionais entre 20 e 40 anos, que vieram a constituir um estereótipo que se acredita ser comum nos EUA. Os yuppies, em geral, têm pouco tempo de formados em universidades, trabalham em suas profissões de formação e seguem as últimas tendências da moda] que aparecem na CNN [sigla de Cable News Network, rede de televisão norte-americana pertencente ao grupo Time Warner especializada na transmissão de notícias vinte e quatro horas por dia]... são duas Chinas diferentes. Como isso vai afetar a nova ordem mundial? Depende de qual será ela. Se a ordem mundial for dirigida por elites transnacionais em seu próprio interesse, com a maioria da população marginalizada, vai estar tudo bem. Se for uma ordem mundial baseada em democracia popular, liberdade e justiça, vai romper as estruturas que estão em desenvolvimento na China e na Índia, como vai romper as estruturas que ocorrem no Brasil.
Ibsem Spartacus: Mas essas elites locais não poderão vir a se associar de uma maneira a intercambiarem produtos, serviços e de protegerem seus mercados, porque são grandes mercados e podem vir a interessar uns aos outros, a algum desses países entre si. Isso não pode ser uma proteção contra o que seria essa elite internacional, basicamente que seria o Norte?
Noam Chomsky: A mesma estrutura. O que é o Nafta, o Acordo de Livre Comércio da América do Norte? É um acordo altamente protecionista, instituído pelos EUA e elites associadas no México e Canadá, dirigido contra as populações de seus próprios países, os três, e também contra Europa e Japão. Quanto aos tratados do Nafta, cerca de 10% deles consistem em exigências quanto à origem, o que quer dizer que alta porcentagem de produção da área norte-americana deva ser exportada. É só uma arma protecionista contra Europa e Japão. Os EUA gostariam de incorporar parte da América do Sul dentro de um bloco protecionista de comércio. A Ásia Oriental tem interesse em fazer a mesma coisa, a Europa está fazendo a mesma coisa. Por outro lado, eles não estão só em guerra. As ligações entre as empresas internacionais na Europa, Japão, nos EUA como também em áreas da Ásia Oriental e no Brasil, são elos muito fortes, são transnacionais. Então, há muitas coisas complicadas acontecendo ao mesmo tempo, mas a maior tendência agora é em direção à transferência de poder para tiranias particulares e longe dos temores públicos. Isso é perigoso. Está acontecendo em certos países, em níveis diferentes, está acontecendo internacionalmente e acho que será muito prejudicial para valores que devemos partilhar, como a democracia por exemplo...
Ibsen Costa Manso: Professor, eu queria voltar um pouco ao passado, na linha do que o professor Sader estava dizendo. Após a Guerra Fria, houve uma mudança na política externa americana no sentido de não mais temer o inimigo interno. E, por outro lado, criou-se, principalmente nos militares – e o Brasil foi usado como uma espécie de laboratório na questão da segurança nacional–... ou seja, a volta para dentro do país. O senhor teve acesso a documentos secretos no governo americano que contam um pouco desse nosso período aqui no Brasil. Como é que o senhor analisa esse período, que informações o senhor tem sobre isso?
Noam Chomsky: Há muitos documentos. Os EUA são uma sociedade bem aberta e uma das coisas boas nela é que se tem bom acesso aos planos secretos. Talvez uns 30 anos atrás, mas às vezes até bem recentemente. Não acho que a política externa dos EUA tenha mudado muito depois da Guerra Fria. Vejamos, por exemplo, o Oriente Médio, Cuba, Panamá, é tudo igual, nada muda muito. Algumas mudanças, mas a política não foi guiada por medo da União Soviética. Isso foi um pretexto. Vê-se claramente pelo fato de que as políticas continuam sob diferentes pretextos. No caso de Cuba, por 30 anos, o pretexto foi o perigo da União Soviética depois da Guerra Fria, o que aconteceu? As políticas endurecem. Agora, de repente, os Estados Unidos amam a democracia. Logo será outro pretexto. Acho que a política não mudou. Com relação ao Brasil, conhecemos bem a ficha. No final dos anos 50, a administração [Dwight David] Eisenhower [(1890-1969) presidente dos Estados Unidos entre 1953 e 1961 e comandante supremo das forças aliadas durante a Segunda Guerra Mundial] começou a propor o fortalecimento militar da América Latina e uma troca da missão militar, determinada, em grande parte, pelos EUA. Propunha uma mudança que não pôde ser instituída na época, o Congresso não a aceitou. Mas foi aceita, no governo Kennedy, em 1962. A administração Kennedy mudou a missão militar da América Latina para defesa hemisférica, que é algo da Segunda Guerra, que era chamado de segurança interna, que é um termo técnico que significa guerra contra as suas próprias populações. E o golpe militar brasileiro, logo depois, foi um dos primeiros exemplos disso, muito bem recebido nos Estados Unidos, mesmo publicamente. Não é preciso ler documentos secretos para isso. Foi bem-vindo publicamente pelo pessoal de Kennedy – ele já tinha sido assassinado – por Lincoln Gordon [(1913) foi embaixador dos Estados Unidos no Brasil entre 1961 e 1966], Robert McNamara [secretário de Defesa dos Estados Unidos de 1961 a 1968, durante a Guerra do Vietnã, e presidente do Banco Mundial de 1968 a 1981], como uma grande vitória pela liberdade no século XX e assim por diante. O Brasil é um país grande e isso teve um efeito-dominó, espalhou-se pelo hemisfério até a América Central. Nos anos 80, houve ondas enormes de repressão, únicas na história deste continente sangrento. E foi devastador. Acabou com muitas organizações populares e estabeleceu a base para as políticas que estão sendo seguidas agora. Pode-se encontrar a origem disso na mudança da missão militar. Os militares brasileiros eram chamados de uma ilha de sanidade no Brasil e sua tomada de posse foi muito bem recebida. E o Brasil se tornou o que a imprensa comercial chamou de “a menina dos olhos latino-americana da comunidade comercial”. Sabemos o suficiente para mencionar o que aconteceu com a população, mas o setor se beneficiou e continuou assim até os anos 80. Uma grande taxa de crescimento, uma divisão em dois países, tudo isso muito bem-vindo nos círculos internacional e financeiro e pode-se achar a origem disso. Não temos as fichas dos anos recentes, mas temos as fichas dos anos 60 e são claras. As mais importantes são as feitas por volta de 1965, que estão disponíveis há alguns anos. São discussões entre os intelectuais de Kennedy. McNamara era secretário da Defesa, [McGeorge] Bundy era conselheiro de Segurança Nacional e eles discutiam que o desenvolvimento do Brasil, dois anos depois do golpe, era um grande sucesso. E discutiam que, dentro do que eles chamavam de contexto cultural latino-americano, era necessário que os militares derrubassem o governo civil quando, na opinião deles, esse governo civil não estivesse agindo no interesse da nação. E o interesse da nação é descrito em termos explícitos que parecem vindos de algo malicioso. Referem-se claramente à luta revolucionária pelo poder nas classes conflitantes da América Central e à necessidade de melhorar os investimentos etc. As discussões internas eram muito francas. E a tomada de posse militar contribuiu para isso e era bem recebida. Pouco tempo depois, há o apoio aberto dos EUA para a derrubada do governo Allende [(1970-1973), o presidente do Chile, Salvador Allende, foi deposto por um golpe de Estado comandado pelo general Augusto Pinochet, que instaurou a ditadura no país] e depois as atrocidades na América Central etc. E nada disso tinha a ver com os russos. Quantos russos havia no Brasil em 1964? Na verdade, os russos estavam apoiando os generais argentinos. Estavam entre os principais parceiros comerciais deles. Claro que, para a população americana, sempre se falava em ameaça russa. É assim que se controla as pessoas: você as assusta. Mas, nos Estados Unidos, na realidade, isso é uma piada. Não havia ameaça russa no hemisfério ocidental. Os russos ameaçavam o hemisfério ocidental, tanto quanto os EUA ameaçavam a Europa Oriental.
Sérgio Augusto: Professor Chomsky, em 1967 o senhor publicou um ensaio polêmico, chamado "O poder americano e os novos mandarins", em que o senhor apontava a responsabilidade dos intelectuais americanos que trabalhavam atrás da política externa americana. O senhor acha que nesses últimos 30 anos intelectuais americanos ficaram mais ou menos responsáveis?
Noam Chomsky: Falar de intelectuais é como falar de países, deve-se distinguir. Há aqueles que são chamados de intelectuais responsáveis, os que servem ao poder, e há aqueles que são os dissidentes, que estão fora do sistema de poder e não o servem. Há intelectuais de todos os tipos desde que existe a história registrada. Volte à Bíblia e achará a mesma distinção. Entre aqueles dos anos recentes é difícil dizer. Houve uma grande mudança nos EUA desde os anos 60. Houve uma mudança cultural de grande escala. Os anos 60 levaram a uma mudança na sociedade em geral... à libertação da sociedade. Ela é muito mais aberta do que era há 40 anos. Há mais preocupação por questões de opressão racial, os direitos da mulher se tornaram uma preocupação, questões ambientais, solidariedade com o terceiro mundo. Isso tudo mudou, afetando todo o país. O ativismo era maior nos anos 80 que nos 60 e mais profundamente enraizado na sociedade americana e, entre as pessoas envolvidas, estão os intelectuais. O que isso significa? São pessoas que têm o privilégio de devotar esforço substancial ao trabalho da mente. E, para alguns, isso significa trabalhar com pessoas que estão lutando por uma vida melhor, liberdade ou direitos humanos. Para outros é servir ao poder, sempre foi assim, mas a sociedade está diferente de muitos outros modos, está muito mais saudável.
Daniel Piza: Senhor Chomsky, o senhor tem dito, em várias entrevistas, que acha que a democracia está sofrendo uma ofensiva no mundo inteiro hoje e que o neoliberalismo seria essa ameaça à democracia. O senhor não diria também que o que a gente poderia chamar de capitalismo de consumo foi justamente o que levou as pessoas do Leste Europeu, por exemplo, a lutarem por regimes democráticos e pelo fim do socialismo?
Noam Chomsky: Primeiro, nunca houve nada nem remotamente parecido com o socialismo da Europa Oriental. Lá os países se chamavam de socialistas e democráticos, eram democracias populares. O Ocidente ridicularizava a alegação de serem democracias, mas adorava a alegação de serem socialistas, porque é uma forma de difamar o socialismo. Mas, de fato, eram tão socialistas quanto democratas. Não acho que o fator motivador na Europa Oriental fosse um desejo de consumo. Na verdade, os níveis de consumo se reduziram muito na Europa Oriental desde o fim da Guerra Fria. A busca por liberdade, sim. Lutavam por liberdade e democracia, mas o que mais conseguiram, na maior parte, foi uma volta ao Terceiro Mundo. E, quanto à primeira parte do seu comentário... Sim, acho que o que se chama de neoliberalismo é um ataque aberto, não-secreto à democracia. O objetivo é minimizar o Estado e, ao minimizá-lo, se maximiza uma outra coisa. O que se está se maximizando? A tirania particular. O Estado é a arena em que o público tem o papel, pelo menos, a princípio, de determinar a política e o setor privado não tem regras. Quanto mais a arena pública é minimizada e o poder particular é maximizado, menos democracia se tem. Acho o Estado uma instituição ilegítima, que deveria ser desfeita, mas não enquanto o poder particular subsistir. Isso é pior, pois é um sistema que não presta contas ao público e o impulso principal do neoliberalismo é restringir a arena onde o povo possa fazer diferença.
Entrevistador: E o que o senhor propõe?
Noam Chomsky: Minha sugestão é expandir a arena pública – e do modo clássico. Principalmente, como disse antes, os trabalhadores devem ter o controle dos locais de trabalho, não os tiranos particulares. As pessoas devem ter o controle de sua comunidade e devem interagir umas com as outras, isso aumenta a esfera pública. Se a pesada concentração de poder particular for eliminada, daí eu acho que se vai em direção ao desmantelamento do sistema de Estado inteiro, o que é adequado. Mas se deve enfrentar o mundo em que se está. Esses movimentos neoliberais não visam estabelecer um sistema de mercado, uma empresa privada: estão fora do sistema de mercado. Se olharmos o mercado mundial, é como nos Estados Unidos: cerca de metade do comércio americano não é comércio, e sim apenas transações internas de uma empresa, administradas por uma mão bem visível. Isso acaba de acontecer do outro lado da fronteira. A metade das exportações americanas para o México nem entra na economia mexicana. Peças estão sendo montadas nos Estados Unidos e transportadas para o México, para uma outra filial da mesma Ford, como exportação, e voltam para os EUA como importação. Isso não é comércio, é mercantilismo e compreende grande parte do comércio mundial, um mercantilismo corporativo no qual o mercado funciona apenas à margem, principalmente para controlar as pessoas. Aqueles que administram a economia mundial se protegeram muito contra a disciplina do mercado. Há bons estudos de bons economistas a respeito de empresas transnacionais. Há um grande estudo de dois economistas ingleses sobre as 100 maiores empresas transnacionais. Todas se beneficiaram das políticas intervencionistas de seu próprio governo e 20 delas foram salvas de um completo colapso pela ajuda do governo. Acima disso, a própria empresa está fora do sistema de mercado. Suas transações internas são centralmente dirigidas. Então o sistema neoliberal é um ataque, na minha opinião, ao mesmo tempo, ao mercado e à democracia.
Emir Sader: Professor Chomsky, o senhor disse que, apesar de tudo que o senhor mencionou anteriormente – a opinião pública mais informada, a maior solidariedade–, há uma deterioração da democracia nos Estados Unidos. Como é possível ver todos esses elementos de avanço e, no entanto, haver uma deterioração democrática?
Noam Chomsky: Bem, o mundo é complicado. Há uma clara luta de classes. Os que controlam a sociedade e a administram temem naturalmente a democracia e usam as medidas que podem para restringi-la. Uma medida é restringir a arena pública, outra é a propaganda maciça. Os Estados Unidos têm uma grande indústria de relações públicas, que, na maior parte deste século, seus próprios líderes chamam de controle da opinião pública, com o princípio de que a opinião pública pode ser arregimentada, assim como o exército faz com os soldados. A razão é que eles dizem uns aos outros: “O risco do industrialismo crescente é o poder político crescente das massas. Isso tem que ser contido.” Não pode ser à força nos Estados Unidos, pois é uma sociedade livre, então a controlam pela propaganda, estreitando a arena pública por meio de tratados como o Nafta, que anulam as decisões da arena pública. Por outro lado, há forças populares lutando para ampliar a democracia, o conflito de sempre, que acontece há séculos, como agora, vai e volta. Nos anos 50, por exemplo, também declararam o fim da história, o fim da ideologia. Dizem que está tudo sob controle, todos são consumidores passivos, ninguém mais pensa e, poucos anos depois, o país está em tumulto. Aconteceu várias vezes no passado e creio que está acontecendo agora. Por exemplo, o movimento trabalhista, que foi severamente atacado – na verdade, um ataque criminoso nos anos 80–, agora está revivendo. Reconhece-se que uma guerra de classes unilateral levará à destruição. E não sabemos aonde estamos indo.
Alberto Dines: Professor Chomsky, a diminuição, o enfraquecimento do Estado significaria, nas suas palavras e nas de todos nós, o fortalecimento da sociedade, o revigoramento da arena pública, o senhor tem usado essa expressão. E, nessa arena pública, a mídia tem um papel fundamental e o senhor tem sido o mais vigoroso crítico da mídia internacional, da mídia privada. Eu gostaria de que o senhor também elaborasse um pouco sobre a questão: essa manipulação da mídia, esses descaminhos da mídia devem ser apenas atribuídos ao grande capital, ao grande capital nacional e internacional, interesses políticos ou é a própria instituição que está precisando ser revitalizada como serviço público, como espírito público. Qual a sua opinião a respeito desse processo todo?
Noam Chomsky: Para ser bem claro, acho que agora a arena pública está encolhendo e eu gostaria de vê-la se desenvolvendo. Então a minimização do Estado está encolhendo a arena pública devido à ampliação do poder privado. Quanto à mídia, as maiores mídias do mundo, nos EUA ou no Brasil, são empresas privadas e elas simplesmente fazem parte do sistema empresarial. Elas estão ligadas às grandes empresas, ligadas a outras maiores. Nos EUA os grandes canais de TV fazem parte de megaempresas, ligadas intimamente ao poder estatal. Os indivíduos que estão nos níveis mais altos de direção movem-se muito facilmente da suíte executiva para a administração estatal e a direção editorial e seus interesses são mais ou menos os mesmos. Eles apresentam uma imagem do mundo que reflete seus interesses. Eles têm certos objetivos que não são totalmente determinados pela estrutura da instituição, querem proteger o nexo do poder estatal privado que representam. Isso exige métodos diferentes para platéias diferentes. Para grande parte da platéia, significa marginalizá-la. Para a mídia e seus dirigentes, creio que o ideal social que eles desejam alcançar é o de uma sociedade em que a unidade social consista em uma pessoa e um aparelho de TV, sem outras associações, pois outras interações de seres humanos seriam perigosas, podem levar à participação democrática. Quanto mais perto se chegar do ideal de uma sociedade baseada em uma pessoa e uma TV, quanto mais se fizer isso, mais se estará livre para uma democracia política formal, sem a preocupação de que signifique algo, porque assim as pessoas se tornarão consumidoras passivas, trabalhadores obedientes, separados uns dos outros e a sociedade civil entrará em colapso. Para a elite educada, ela terá uma função diferente, será basicamente a doutrinação, a fim de garantir que se tenha pensamentos corretos. São eles que tomam decisões, tomam decisões certas para os que estão no poder. Dentro dessa estrutura, pode-se explicar muito do que a mídia faz.
Alberto Dines: Mas e o papel do jornalista?
Noam Chomsky: Eu diria que tenho muitos amigos na mídia, muitos deles em altos cargos. Muitos são bem mais cínicos que eu sobre a mídia, como resultado de suas próprias experiências. E vêem seu papel no trabalho como uma tentativa de trabalhar nas estruturas institucionais para fazerem o que puderem. E há muita coisa que podem fazer. Não são ditaduras militares, não serão torturados e mortos se disserem a coisa errada. Podem perder o emprego, mas esse é um problema pequeno. E as pessoas tentam pressionar suas aberturas até o limite, tantas vezes, fazendo coisas muito importantes. Outros estão subordinados ao sistema. Há muitos jornalistas bem conhecidos, em posições privilegiadas, que se consideram livres e lhe dirão “ninguém me diz o que escrever”. E é verdade, porque são tão confiáveis, que ninguém precisa lhes dizer o que escrever. Eles já internalizaram tão bem os valores, que nem podem ter outros pensamentos. Ótimo, são totalmente livres. Outros, que são independentes, são menos livres e estão sempre lutando contra os limites impostos por sistemas poderosos. Para os jornalistas independentes, o objetivo é igual ao de qualquer outro ser humano decente. Tentam fazer o que podem pelas pessoas, informam-se, trabalham juntos, cuidam dos direitos humanos e dos valores que têm.
Matinas Suzuki: Professor Chomsky, a propósito dessa questão, o senhor está recebendo um grande destaque na mídia brasileira. Como é que o senhor está se sentindo a esse respeito?
Noam Chomsky: Perfeitamente feliz de falar com qualquer um [risos], seja para um público de rede nacional de TV ou para favelados, o que também já fiz. Na minha experiência pessoal, não é muito surpreendente: tenho mais abertura fora do que dentro dos EUA. Em parte, porque meus pontos de vista são muito mais ameaçadores dentro do que fora dos EUA. Assim que cruzo a fronteira, falo para redes nacionais de TV, mas não lá dentro. Na verdade, na TV comercial dos EUA há muito mais liberdade do que na TV pública. É interessante, ainda, que a TV pública tenha a fama de ser mais liberal, no sentido norte-americano da palavra: mais progressista. Mas quer dizer que são mais doutrinárias, são comissárias culturais, entendem melhor os limites da discussão e se vêem no extremo dissidente. Pode-se chegar a esse ponto e não além. Na verdade, a TV pública tem isso por escrito, não permitindo que eu apareça nos principais programas de debate. É incomum tornar públicas tais declarações, mas é compreensível. No meu ponto de vista, esse artigo que se refere à responsabilidade dos intelectuais foi, antes de tudo, uma crítica à extremidade progressista do espectro chamado de liberal nos Estados Unidos. Não falei muito sobre a ala direita. Acho que eles são os reais comissários intelectuais, são eles os que estabelecem os limites. Agem com um certo tipo de dissidência, mas aquela que pressupõe as doutrinas do poder, assim ajudando a instilá-las melhor. E os mais espertos entendem isso e não querem ter nada a ver com algo que vá para o lado crítico. É assim que funcionam as instituições. Nada surpreendente.
Breno Altman: A crítica que o senhor tem feito à mídia é essencialmente uma crítica ao poder das corporações privadas. Como é que o senhor imagina um processo de controle social ou de democratização da mídia? Em outros termos, o senhor tem falado de controle social, sobre as corporações privadas nos outros terrenos da economia. Como o senhor imagina em relação à mídia esse processo de controle social da democratização?
Noam Chomsky: A mídia deve envolver a participação popular. Na verdade, o modelo existe. Eu vi coisas interessantes, no Rio há uns dias, quando fui aos subúrbios, em Nova Iguaçu, e assisti à TV popular. Eles provêm equipamentos e apoio técnico para grupos populares que fazem sua própria TV. Escrevem os roteiros, apresentam os programas, atuam. E as pessoas se reúnem na praça pública e assistem, discutem etc. E isso é um tipo de mídia popular. Nos Estados Unidos, há um bom número de rádios apoiadas pelas comunidades, quer dizer, rádios pequenas, mas que se estendem pelas cidades médias e são sustentadas pelo público; não têm propaganda e integram a comunidade, você pode notar a diferença. Eu viajo muito, dando palestras. Você pode sentir a diferença entre uma comunidade que tem rádio e uma que não tem. Há uma integração. As pessoas sabem uma das outras, sabem o que ocorre, participam. E isso dá um certo ânimo e vitalidade, visão para a comunidade, o que não é possível quando as pessoas estão separadas umas das outras. Essa é a mídia democrática. No momento, existe em pequena escala, mas não devemos esquecer que, há pouco tempo, existia em larga escala, mesmo nos Estados Unidos, uma sociedade altamente doutrinada, com um sistema poderoso de propaganda, uma sociedade muito livre, mas dirigida pelos negócios. Mesmo nos Estados Unidos, nos anos 50, existiam cerca de 800 jornais trabalhistas independentes, que alcançavam cerca de 30 milhões de pessoas por semana. Se voltarmos ao início do século, a mídia popular, ligada a comunidades étnicas ou jornais de trabalhadores, tinha a escala da imprensa comercial. Na Inglaterra, continuaram até os anos 60. Os grandes jornais da Inglaterra... o Daily Herald tinha mais assinantes – era socialdemocrata – tinha mais assinantes, nos anos 60, do que o Times, o [The] Guardian e os outros principais jornais juntos. Eles foram dominados pela concentração de recursos e os tablóides, na Inglaterra, a mídia de massa tinha orientação trabalhista. Muita bobagem, mas tinham orientação trabalhista. Davam um quadro do mundo muito diferente do que aquele que é orientado pelos interesses e preocupações das pessoas comuns. E era um país diferente na época. E quando isso acabou, não pela força, mas devido à pressão da concentração de recursos, de capital, o enfoque do país mudou. Houve mudanças visíveis. Um histórico do thatcherismo. Isso não está longe no passado, não estamos falando de uma utopia inimaginável, mas de coisas que existem, em parte existiram em larga escala e podem ser criadas de novo. As novas oportunidades das telecomunicações oferecem meios para criá-las, meios usados, muitas vezes, eficientemente. Vejam o último prêmio Nobel da paz, que acaba de ser anunciado: José Ramos Horta, que esteve aqui, o ganhou. Essa questão do Timor tem sido uma grande questão de direitos humanos por 20 anos, mas só chegou à arena pública há 3 anos – apesar dos esforços, nos quais também estive envolvido – em grande medida devido à internet. Ela oferece meios de conseguir informações que escapam à mídia empresarial, a qual organiza as pessoas. Nos Estados Unidos, houve tanta pressão no Congresso, que foram impostas restrições aos militares. A administração Clinton não observou as restrições, fugiu delas, mas, ainda assim, elas são importantes e o público percebe quando isso acontece nos EUA. Isso é a nova tecnologia. E a mídia democrática pode ser reconstruída e, como qualquer outro sistema de tirania particular, como ditadura militar ou totalitarismo ou empresas privadas, pode se eliminada. Não são leis da natureza, mas sim instituições humanas.
Sérgio Augusto: Professor Chomsky, que opinião o senhor tem sobre a internet?
Noam Chomsky: A tecnologia, em si, é totalmente neutra. Ela não liga se for usada para controlar ou para libertar as pessoas. Pode-se dizer o mesmo sobre a tecnologia impressa, o rádio, a TV ou a internet. Ela se torna o que as pessoas fizerem dela. A internet, como todas as partes dinâmicas da economia moderna, foi criada pelo público e à custa dele e devia ser propriedade de quem a construiu, os contribuintes. A última decisão do Congresso dos Estados Unidos entregou esse sistema criado pelo público a megaempresas privadas. Foi o que aconteceu com o rádio em 1930, quando o espectro livre foi entregue a empresas particulares. Aconteceu com a TV em 1950. Há um esforço agora, já aprovado por lei, para comercializar o sistema de telecomunicações, que foi criado às expensas do público, que foi quem pagou pelos satélites, pelos computadores e desenvolveu a tecnologia. Se isso vai dar certo ou não, não sabemos. Há muita resistência, há muito esforço popular para manter a internet como um sistema de acesso livre ao público e para que os segmentos populares possam usar para seus próprios interesses e propósitos. As empresas foram muito claras quanto ao que elas gostariam de que fosse. Queriam que fosse um serviço de compras caseiras, outra técnica de marginalização, isolamento e controle, mas não precisam ter sucesso como tiveram com o rádio, a TV ou com a imprensa, portanto a internet será o que as pessoas fizerem dela. Ela tem muitos aspectos positivos e negativos também. A comunicação pela internet estabelece contatos entre pessoas que, de outro modo, estariam isoladas, mas também isola as pessoas. Somos seres humanos, não marcianos, e há uma grande diferença entre contato cara-a-cara e ficar batendo teclas. Há efeitos psicológicos que me deixam cético. Como toda tecnologia, a internet tem muitas facetas.
Ibsen Costa Manso: Eu pessoalmente gosto muito da internet, porque é o único meio da gente conseguir contatá-lo, não é, professor? A gente conseguiu uma entrevista no Jornal da Tarde e trocamos e-mails e tal. Realmente o senhor que anda pelo mundo todo, só via internet mesmo. Eu queria voltar um pouco na questão do papel dos intelectuais. Alguns críticos da sua obra dizem que elas não atingem aqueles oprimidos que o senhor próprio defende. O senhor também é um crítico dos intelectuais e dos papéis dos intelectuais, sociólogos, principalmente sociólogos franceses, vou citar aqui o Alain Touraine [(1925), sociólogo francês, cujo trabalho é baseado na "sociologia de ação", seu principal ponto de interesse tem sido o estudo dos movimentos sociais, pois acredita que a sociedade molda o seu futuro através de mecanismos estruturais e das suas próprias lutas sociais; tornou-se conhecido por ter sido o pai da expressão "sociedade pós-industrial". Foi entrevistado pelo Roda Viva em 2002], que é amigo pessoal do presidente Fernando Henrique Cardoso. Também criticou quando os intelectuais chegam ao poder. E principalmente alguns teóricos dizem que os intelectuais têm alguma dificuldade em se contrapor ao establishment [grupo sociopolítico que exerce sua autoridade, controle ou influência, defendendo seus privilégios], porque eles fazem parte, na prática, do establishment. Saem das classes mais privilegiadas e, portanto, eles têm dificuldades, ficam com as mãos atadas na hora em que chegam ao poder, de contrariar esse establishment. Qual o senhor acha que deve ser o papel do intelectual e como o intelectual no poder pode agir?
Noam Chomsky: O intelectual no poder deve agir para eliminar seu próprio poder. Isso é difícil e não acontece muito. Mas as pessoas, às vezes, me perguntam o que faria se eu fosse eleito presidente. Digo que, primeiro, estabeleceria um tribunal de crimes de trabalho, para me julgar pelos crimes de trabalho que eu cometesse. A seguir, me livraria do meu poder e o poria nas mãos do público. Isso não costuma ser feito. As críticas de Alain Touraine são corretas e antigas. E a primeira expressão que conheço data de meados do século XIX, quando [Mikhail Alexandrovich] Bakunin [(1814-1876) anarquista russo] previu que a nova classe que surgia, que ele chamou de “inteligência científica”, os intelectuais modernos, iria em duas direções [no texto "Sobre a Associação Internacional de Trabalhadores e Marx", publicado em 1872, Bakhunin pode ter sido o primeiro a prever que os intelectuais e administradores passariam a integrar o aparato do Estado – que sempre teria sido patrimônio de uma classe privilegiada–, formando a "classe burocrática"]. Alguns, ele disse, tentariam usar as lutas populares, dos trabalhadores para obter o poder para si mesmos e se tornariam a burocracia vermelha, que criaria o regime totalitário mais brutal de que se tem notícias. Outros reconheceriam que o poder está em outro lugar, no que hoje chamamos de instituições de capital do Estado e se tornariam os administradores daqueles que detêm mesmo o poder. Bateriam no povo com a vara do povo nas democracias de Estado. Foi uma boa previsão. Depois, há outro grupo de intelectuais que nem gostam de ser chamados de intelectuais. São apenas pessoas que pensam e trabalham com organizações populares, que lutam contra o poder e tentam desintegrá-lo, que se interessam por direitos, democracia, justiça social e em fazer algo. Esse é um outro grupo de intelectuais. Eles não precisam ter uma educação superior. Conheci pessoas que trabalham com as mãos e fazem um trabalho intelectual muito mais criativo do que muitas pessoas de universidade. Se é intelectual ou não, isso não tem a ver com sua posição. Como disse antes, na minha infância um dos círculos mais intelectualizados de que participei era de trabalhadores. Alguns nunca tiveram uma educação primária, mas tinham uma vida intelectual muito ativa, como muitos outros. Nós, que usamos paletó e gravata, fazemos parte das classes ricas. Temos privilégios e, quanto mais privilégio, mais responsabilidade. E como você exercita as responsabilidades? É uma escolha pessoal.
Ibsen Spartacus: Professor, voltando um pouco nessas duas últimas questões, talvez misturando-as, na instituição à qual o senhor é ligado, o MIT [Instituto Tecnológico de Massachusetts], há um laboratório de mídia que reúne a nata dos pensadores da chamada “revolução digital”. Esses pensadores acreditam e defendem que novas mídias e novas tecnologias podem alavancar processos democráticos. A internet seria o grande espaço para que esses processos democráticos surgissem e crescessem. Mas me parece que esses processos estariam restritos a quem pode pagar pelo menos 2 mil dólares para ter um bom computador. Como é que o senhor avalia essa corrente de pensamento?
Noam Chomsky: O laboratório de mídia da MIT não é diferente de nenhum outro sistema de telecomunicações. Em geral, há pessoas envolvidas genuinamente empenhadas em torná-los acessíveis e disponíveis ao público como um método para democratizar a mídia, aumentar o fluxo de informação, permitir que as pessoas se expressem, se comuniquem entre elas, etc. E outros estão empenhados em transformá-los num modo de controle e domínio. Em um microcosmos se tem um conflito que se estende por toda a sociedade. Agora, a internet ainda é um fenômeno de elite. A maior parte da população mundial nem tem telefone. O número dos que usam a internet é muito limitado e geralmente fazem parte de instituições ricas. Tentar fazer isso sozinho é muito caro. Em princípio, ela pode ser democratizada. A tecnologia está lá, mas a Lei de Telecomunicações de 1995 é um grande instrumento legal projetado para evitar a democratização da internet, passando seu controle das instituições públicas para mega empresas particulares. É interessante que, nos EUA, isso não foi tratado como uma questão pública, mas como uma questão de negócios. Você lê sobre a Lei das Telecomunicações na imprensa mercantil. É um assunto público, mas a estrutura de pensamento tem que ser comercializada. É a única opção. A idéia de que fique no controle do público nem é opção. Então, não se escreve a respeito nas primeiras páginas, mas nas páginas de negócios e a única questão é como ela deve ser comercializada. Essas são algumas das formas como a propaganda age, como as entidades doutrinárias formatam opções e pensamentos de modo que os maiores problemas nem sejam visíveis para as pessoas. Poucas sabem que isso aconteceu ou que haveria outras oportunidades. Quanto à mídia, há os que sabem e os que são a favor.
Emir Sader: Professor, o presidente Clinton finalmente anunciou, no seu segundo mandato, que virá à América Latina. Ele não cruzou a fronteira nem para assinar o Nafta, nem para ver as conseqüências do Nafta. Qual o senhor acha que é a pauta que ele trará para o Brasil? O que os Estados Unidos, o governo americano pensa do Brasil? E qual o senhor acha que deveria ser a pauta do governo brasileiro soberano, que defendesse os interesses do país, a discutir com o governo norte-americano hoje em dia?
Noam Chomsky: Se o presidente Clinton vier ao Brasil será porque tem bons campos de golfe e um comitê de boas vindas [risos] que queira discutir com ele a melhor forma de estabelecer o controle e a subordinação da economia brasileira a empresas transnacionais. Ele viria por isso. Pode dizer palavras bonitas, mas é o representante das comunidades comerciais. Não é um direitista extremo, mas um republicano moderado, do tipo de Eisenhower. Virtualmente ele não se diferencia de seu adversário nas últimas eleições. O que os brasileiros devem fazer? Não será o governo que o fará, nem precisa dizer. O que os brasileiros devem fazer é superar o escândalo da sociedade brasileira, que data de muito tempo atrás e faz parte de um escândalo latino-americano, numa forma mais exagerada do que achamos no mundo todo. O Estado se subordina aos ricos, que têm responsabilidades sociais muito limitadas. O país é radicalmente dividido. Não estou dizendo nada que não se saiba. A maior parte da população está fora do setor moderno. Isso é um escândalo. O Brasil é um país rico, tem muitos recursos e tem sido chamado de “o Colosso do Sul”, que deveria ser uma contrapartie ao “Colosso do Norte”. Se não é assim, são problemas internos do Brasil, claro que apoiados por fatores externos, como o apoio americano ao golpe militar, mas as raízes fundamentais estão aqui e, se não forem resolvidas internamente, vão piorar cada vez mais. Obviamente as respostas não virão dos donos das empresas nem dos líderes do governo nem do presidente Clinton: virão de pessoas de dentro do Brasil que lutam para superar essa situação horrível. O fato de o Brasil, depois de 20 anos de uma das mais altas taxas de nascimento do mundo, de 1970 a 1990, maior que a do Chile... O fato de que, depois disso, ficou no relatório de desenvolvimento da ONU, ao lado da Albânia, deveria escandalizar os brasileiros, incluindo o que representa. E representa um desastre para a população, o que é dramático, pois aqui não é a África Central. Os recursos materiais estão aí, os recursos humanos também. Faz com que o fracasso seja mais dramático ao se notar o potencial do que seria num país que sofre de limitações.
Breno Altman: Professor, qual é a sua opinião sobre o sociólogo Fernando Henrique Cardoso?
Noam Chomsky: Li seu trabalho, quando ele era sociólogo e achei interessante e esclarecedor. Foi há muitos anos, mas agora ele tem um papel institucional diferente. Dentro da estrutura do sistema de poder, ou não se sente livre para desafiar ou não quer desafiar. Pergunte a ele, não sei, mas o sistema de poder é muito feio. Tomemos um exemplo. As políticas do Brasil são constrangidas pelo pagamento da dívida. O povo não deveria tolerar isso. Em relação à dívida e em todos os aspectos, a política brasileira é restringida por esse limite. Quanto a isso, há duas opções: pagar ou não pagar. Acho razoável não pagar, tem sido paga mil vezes. Se decidirem pagar, suponham que eu tenha emprestado dinheiro e o tenha gasto jogando. A responsabilidade é sua? Não, eu devo pagar. A dívida do Brasil, se for paga, deveria ser paga por quem tomou emprestado. Os que moram na favela do Rio não pediram nada emprestado, não ganharam nada com isso. O dinheiro foi dado para os ricos, que o mandaram para fora e enriqueceram. Eles que paguem, os generais que paguem, não é um problema do povo do Brasil. Se o governo não é capaz de enfrentar a questão ou, para ser mais exato, se a população não o obrigar a fazê-lo, o Brasil tem muito poucas opções e quem assumir o cargo de presidente também.
Daniel Piza: Qual seria exatamente, dentro desse ponto de vista, uma política adequada em relação às multinacionais? O que o presidente Fernando Henrique deveria fazer em relação às multinacionais? Aumentar o protecionismo de que maneira?
Noam Chomsky: As escolhas não estão nas mãos do presidente, e sim nas mãos do povo. Como pessoa, ele não pode fazer muito. Quanto às empresas multinacionais ou em geral, a atitude deve ser a mesma que se toma em relação a outras formas de tirania. É interessante estudar a história das empresas. Há bons estudos acadêmicos sobre o crescimento das empresas. É interessante, vale a pena estudar. As empresas modernas – falo dos EUA, mas não é muito diferente em outras partes –, nos EUA, elas foram criadas por tribunais e advogados, não por legislação. Lendo liberais clássicos, como Thomas Jefferson [(1743-1826) terceiro presidente dos Estados Unidos, de 1801 a 1809, e principal autor da Declaração da Independência Americana], eles eram radicalmente contrários a elas. No início da história, eram grupos de interesse público. As pessoas se reuniam para construir uma ponte. A uma certa altura, no início do século XIX, elas começaram a mudar. Jefferson, por exemplo, que era um importante liberal clássico da história americana, em 1820 avisou que o crescimento de instituições financeiras e empresas industriais seria o fim da democracia. Tocqueville [Alexis Henri Charles Clérel ou visconde de Tocqueville (1805-1859) foi um pensador político, historiador e escritor francês. Tornou-se célebre por suas análises da Revolução Francesa] disse o mesmo. Ele é a outra figura do liberalismo clássico. Quando descreveu os EUA em 1830, ele avisou que a aristocracia industrial, que crescia perante nossos olhos – isso foi há 170 anos –, era a mais dura do mundo e, se obtivesse o poder, seria o fim da democracia americana. Durante o século, eles conseguiram o poder – e não por lei, mas principalmente pelos tribunais– e conseguiram os direitos das pessoas, de palavra livre, direitos individuais. No início do século XX, eram enormes instituições dominando a sociedade. Não por desejo popular, muito pelo contrário. Se olharem suas raízes intelectuais, verão que são muito similares ao bolchevismo e ao fascismo. Tem idéias hegelianas que se desenvolveram no final do século XIX quanto aos direitos das grandes instituições sobre os indivíduos. Raízes muito parecidas. Daí os progressistas, muitas vezes, apoiarem as empresas, os mesmos que apoiaram o que se tornou o bolchevismo no começo do século XX. Isso não é incorreto, uma corporação é uma indústria totalitária. As ordens vêm de cima para baixo. Você se insere nela, recebe as ordens de cima e as leva para baixo. No topo, há um setor integrado de proprietários, investidores, bancos, instituições financeiras etc, o mais perto possível do ideal totalitarista que os humanos construíram. Se se está de fora, a única escolha é alugar-se para ele, ou seja, conseguir um emprego ou comprar o que produz. São empresas de mídia. Não são pequenas ilhas no cenário de mercado livre, são enormes tiranias ligadas umas às outras, é com o Estado que controlam em grande parte, integradas através das fronteiras. A atividade deveria ser a mesma usada com outras formas de tirania. O fascismo foi derrubado, o bolchevismo foi derrubado, o corporativismo também pode ser.
Alberto Dines: Professor, o senhor falou agora que o fascismo foi derrubado, mas nós estamos vendo aí no mundo o neofascismo, em todos continentes, surgindo com muita força popular. A França, um caso clássico, que é a pátria do fascismo científico, desde o fim do século passado... o caso Dreyfus. O senhor não vê a possibilidade de esse fascismo popular que está surgindo – a Áustria agora – se juntar às grandes corporações, ou melhor, as grandes corporações perceberem no neofascismo uma oportunidade de ganhar legitimidade popular?
Noam Chomsky: Estou pensando nos movimentos atuais, como o de Le Pen. Os movimentos populares podem tomar formas diferentes. O mesmo grupo social pode lutar por liberdade ou ser a base popular do fascismo. Isso é verdade no caso de Le Pen. [Adolf] Hitler [ditador austro-germânico que deflagrou a Segunda Guerra Mundial, criou o Partido Nacional-Socialista na Alemanha e foi o responsável pelo extermínio de milhões de judeus e de outros grupos minoritários como eslavos, poloneses, ciganos, negros, homossexuais, deficientes físicos e mentais, no que se convencionou chamar de Holocausto] foi o líder mais popular da história da Alemanha. A base popular de Hitler foi, em parte, não só os industriais, mas movimentos sociais que, em outras circunstâncias, poderiam estar lutando. Era o movimento trabalhista mais militante da Europa. Veja nos Estados Unidos: os que hoje estão na chamada milícia de direita são os mesmos que organizavam o CIO [Comitê por uma Internacional Operária, organização que congrega partidos socialistas de 35 países] há 60 anos. Vêm do mesmo setor socioeconômico, têm os mesmos tipos de problemas e estão desaparecendo, o mundo está se desintegrando. E, nos anos 30, eles criaram o movimento dos trabalhadores americanos e obtiveram direitos e liberdade. Nos anos 90 são o movimento direitista, que é muito perigoso, sob controle de líderes fanáticos, muitos deles fanáticos religiosos. Os mesmos grupos populares e é a mesma história de todos os assuntos humanos. Como vão se desenvolver depende do que fizerem e do que os outros farão – outros, como nós, que têm o privilégio de interagir com eles. Sempre foi assim e ainda é assim. Os grupos populares podem ser uma fonte de fascismo perigoso ou de grande libertação.
Ibsen Costa Manso: Professor, o senhor é conhecido, o seu trabalho é muito conhecido, o senhor foi um dos primeiros a denunciar a Guerra do Vietnã, quando isso não havia ocupado o espaço da mídia. O senhor denunciou a questão do Burundi, quando a gente nem sabia onde esse país africano ficava e, atualmente, o senhor está engajado, já há algum tempo, na questão do Timor. Essa semana que nós estivemos juntos aqui, em São Paulo, o senhor, inclusive, esteve com o prêmio Nobel da Paz, o José Ramos Horta, que é seu amigo de duas décadas. Agora a questão é como ajudar... como o Brasil, que tem tantos laços em comum – senão tantos, pelo menos, a língua –, concretamente, como o senhor defende que seja uma campanha a nível mundial para ajudar o Timor? Essa, aliás, é uma outra questão que se coloca para os intelectuais, quer dizer, existe uma análise muito clara, dos problemas mundiais, mas não se apontam por muitas vezes, soluções práticas para combater essas situações. Eu perguntei, inclusive, isso ao professor Ramos Horta: “o senhor acha que é válido que haja um boicote governamental ao comércio bilateral com a Indonésia, por exemplo?” Ele disse: “Não, isso precisa ser uma ação da sociedade e, portanto, os governos vão atrás”. O que o senhor acha desta questão?
Noam Chomsky: Fico feliz em recomendar soluções práticas. É isso que faço nos Estados Unidos o tempo todo, mas não me sinto livre para recomendar ações para vocês. Decidam vocês. Faço isso onde moro. O papel do Brasil nesse assunto poderia ser enorme. Podem ver como seria enorme olhando a história. Ao ponto que pessoas como José puderam fazer algo. Foi porque ele teve o apoio dos governos? Quais? Moçambique, São Tomé, governos desse porte. Ele não teve o apoio do Brasil, do ex-mundo português. O Brasil é muito mais poderoso obviamente. O tipo de apoio de Moçambique, o Brasil poderia tê-lo dado cem vezes. Isso significa criar formas de apoio internacional, ajudar a pôr o assunto na agenda internacional, obter publicidade e participar de pressões econômicas. Ele tem suas idéias quanto ao que deve ser feito, eu tenho as minhas. Eu sinto que os generais indonésios estão prestes a decidir sobre isso, podem ir para qualquer lado. O chanceler, há dois ou três anos, quando a opinião pública crescia, disse que Timor Leste era uma pedra no sapato, “talvez devêssemos nos livrar dela”. Essa é a implicação. “Está nos dando muito trabalho”. O Wall Street Journal, que não é muito progressista, fez um editorial que chamou “Uma pedra no sapato”, dizendo aos generais indonésios: “Não vale a pena, livrem-se disso. Só causa problemas”. Nessa última semana, a Far Eastern Economic Review, o grande jornal sobre a economia asiática, publicou entrevistas com altos executivos. Ainda não a vi. Estava viajando, mas José Ramos me contou. É de segunda mão. Disse-me que estavam recomendando que a Indonésia se livrasse “da pedra”. Pressão faz diferença. Os tipos de pressão vindos do Brasil são diferentes dos que vêm dos Estados Unidos. As pressões dos Estados Unidos são mais importantes, eles são o poder dominante do mundo. Fazemos do nosso jeito. Mas as que vêm do Brasil não são pequenas, sejam ameaças de cooperação econômica, sejam ameaças políticas, demonstrações públicas. Devem decidir de acordo com o contexto brasileiro.
Breno Altman: Senhor Noam Chomsky, eu queria fazer uma pergunta sobre um dos mais longos processos de discriminação imperialista deste século. O povo cubano, com o segundo mandato de Bill Clinton, pode ter esperança de que caia o bloqueio econômico?
Noam Chomsky: Novamente, as decisões estão nas mãos do povo dos Estados Unidos e dos outros países do mundo. Depois da queda da União Soviética, quando não se podia mais fingir que havia uma ameaça soviética, as sanções contra Cuba ficaram mais rigorosas e o esforço para estrangular Cuba cresceu em intensidade. E cresceu de novo no ano passado. No momento, a maior parte do mundo está objetando retoricamente. Há objeções retóricas para romper o boicote americano. Se isso der certo, se outros países começarem a negociar com Cuba, verão exatamente o que aconteceu com o Vietnã. No caso do Vietnã, depois da guerra, os Estados Unidos tentaram estrangular o Vietnã e eles já tinham ganho a guerra. A Indochina estava mais ou menos destruída, mas queriam ter certeza de que não se recuperaria. Era um golpe econômico. Durou até que outros países começassem a desobedecer. A maioria dos países obedecem aos Estados Unidos. É um país poderoso e perigoso. Mas, depois de um tempo, o Japão deixou de ligar e as companhias européias também começaram a negociar com o Vietnã, a instalar escritórios de negócios. Daí, os negociantes americanos começaram a se queixar: estavam sendo excluídos de mercados importantes. E, de repente, num curto período de tempo, a política dos Estados Unidos mudou. Descobriram que a situação dos direitos humanos estava melhorando no Vietnã, portanto, podíamos lidar com isso. Nada tinha mudado, na verdade – exceto que os rivais econômicos estavam agindo –, e os negociantes americanos começaram a se queixar. Isso começa a acontecer com Cuba. Na última visita de [Fidel] Castro [em janeiro de 1959, Fidel assume o poder em Cuba, torna-se primeiro-ministro (1959 a 1976) e presidente do governo e primeiro secretário do Partido Comunista a partir de 1976. Em 1961, declara Cuba um estado socialista. No mesmo ano, os Estados Unidos cortam relações diplomáticas com a ilha e iniciam um embargo econômico ao país, que dura até hoje] a Nova Iorque, ele... O governo não queria nada com ele, a mídia fez grandes ataques a ele, exceto por uma coisa: David Rockefeller [banqueiro e filantropo americano, esteve entre 1961 e 1981 no comando do banco Chase Manhattan, do qual era também o maior acionista. Durante esse período, a instituição se tornou uma das maiores credoras individuais da dívida externa brasileira] fez uma reunião de industriais para conhecê-lo, porque o mundo comercial americano não gosta do fato de que o México comece a se envolver com o ramo de telefones e negocie com a Europa. Cuba e Vietnã não são a mesma coisa. A maioria dos americanos não tinha ouvido falar do Vietnã, mas Cuba tem sido a questão principal de política externa há 170 anos. Aí por 1820, os Estados Unidos estavam empenhados em conquistar Cuba e eu diria que eram pessoas boas como Thomas Jefferson que diziam: “Sim, temos que incorporar Cuba ao império”. Não conseguiram, na época, devido à frota britânica, não à russa, mas à inglesa. No final do século, o poder mudou. Podiam fazer e fizeram. A pretexto de libertar Cuba, os Estados Unidos se uniram à liberação de Cuba e a conquistaram até 1959. Cuba não passava de uma fazenda americana. É uma questão profunda nos Estados Unidos reintegrar, subordinar Cuba de novo ao sistema americano. Acima disso, a elite americana se preocupa não com a falta de democracia em Cuba. Isso não importa. Importam os padrões sociais que foram alcançados. Há padrões altos de saúde e de educação, na verdade, único nas Américas. Quase no nível do Canadá e dos Estados Unidos, o que é notável dadas as circunstâncias. É um país pobre, não só pobre, mas sob o ataque das superpotências do hemisfério e, ainda assim, manteve os padrões e isso é perigoso, porque manda o recado errado. Diz às pessoas: “Olhem, podem fazer algo com suas vidas”. E é algo perigoso pensar assim. Eis as principais razões dos EUA quererem garantir que Cuba não siga um caminho independente, e não será fácil de superar. Mas a questão principal é parecida com a do Vietnã. Se outros países romperem o boicote e houver protestos populares suficientes nos EUA, a política muda.
Matinas Suzuki: Professor Chomsky, infelizmente nosso programa está chegando ao final, eu e o Sérgio Augusto, aqui, temos uma curiosidade, uma pequena curiosidade. O senhor votou nas últimas eleições americanas?
Noam Chomsky: Na verdade, sim. Foi um dia antes de vir à América do Sul. Acho que é uma decisão de importância relativa, mas não sem importância. Os dois partidos políticos são mais ou menos idênticos, mas têm formações diferentes por razões históricas. Os que votam para os democratas tendem a ser os de renda menor, minorias, mulheres etc. Os que votam para os republicanos tendem a ser mais ricos, religiosos, fundamentalistas, racistas, outros setores da população. Em qualquer sistema, seja tirania ou democracia, os governantes terão de responder aos eleitores. Os generais brasileiros tinham que prestar atenção ao que estava acontecendo na sociedade. Quando se tem uma democracia política como no EUA, basicamente com um partido e duas facções, eles jogam migalhas aos eleitores, seguem a política básica, do mesmo modo. Mas fazem algo para os eleitores, coisas diferentes. Não muda o mundo, mas faz diferença, se uma criança de sete anos tem comida para comer. É uma razão para votar, para um ou para o outro. Na verdade, eu divido meu voto. Às vezes voto para os republicanos, outras para os democratas, mas é a minha base de consideração.
Matinas Suzuki: Eu agradeço muita a sua presença aqui esta noite e acredito que sua passagem pelo Brasil vai contribuir muito para o debate sobre nosso futuro. Eu gostaria também de agradecer bastante a presença dos nossos entrevistadores aqui esta noite no Roda Viva e agradecer sua atenção.
[Via BBA]
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