Barrabaz. Um cão em perigo. Moleques de rua vinham, frequentemente, pulando o muro de meu quintal e praticando furtos. Diziam algumas pess...
Moleques de rua vinham, frequentemente, pulando o muro de meu quintal e praticando furtos. Diziam algumas pessoas que era porque tinham fome; que não faziam por maldade; que se eu tivesse paciência, Deus me recompensaria.
Se Deus aparecesse para mim, ao menos em sonho e me prometesse recompensa, vá lá!... Mas, vocês sabem como são essas coisas de Deus não é? Quem fala em nome d’Ele, certamente nunca o viu e nem verá. Até, porque há muito maior probabilidade de ser ganhar na mega-sena sozinho do que se encontrar com Deus. Não que eu não creia; mas entre o crer, o merecer e o ver vai uma distância tão grande que é melhor a gente não se animar muito não.Sendo assim; eu a cada dia ficava mais puto com aqueles pivetes filhos–da-mãe.
Roubavam de tudo!...
Bicicleta, velocípede, galinhas, frutas, bujão de gás, roupas do arame, calçados que ficassem no quintal para secar e até torneiras e bomba de imersão na cisterna; deixando a casa sem água e causando o maior tumulto.
Daí, resolvi por cacos de vidro sobre o muro e uma cerca elétrica dita como infalível.
Realmente, a cerca era infalível. Com menos de uma semana que fora colocada; um grupinho de pivetes, os de sempre, duvidou de sua eficiência e tentou pular o muro.
Foi bater-e–valer!
Em plena madrugada fui acordado pelos vizinhos revoltados esbravejando em frente à minha casa, e pelas mães dos pivetes que faziam o maior escândalo gritando para que eu desligasse a cerca.
Atarantado de sono, assustado, nervoso e com medo de ter matado alguém, peguei o controle remoto da cerca elétrica, cliquei desesperadamente apontando para a caixa do alarme e, depois de várias e angustiantes tentativas, consegui desligá-la.
Cessou o alarme da cerca, mas a rua se encheu com o ruído do corpo de bombeiros, do SAMU e da polícia que chegaram quase juntos para prestar socorro, arrancar a cerca e me levar até à delegacia para lavrar o flagrante.
Na delegacia o delegado me olhava com ódio enquanto fazia perguntas e anotava num livro grosso e antigo, dois policiais cochichavam entre si e me apontavam com desprezo; um advogado esfregava as mãos olhando para mim com uma cara esperta e marota.
Felizmente Deus, o inacessível, compareceu também, não deixando os moleques morrerem, acalmando a multidão e transformando o flagrante apenas em uma pesada fiança que paguei sem reclamar já que estava morto de medo das conseqüências.
Conjecturei: - Tudo bem, fico sem a cerca, mas ninguém vai continuar me roubando!
- E, onde é que ficam a polícia, o SAMU, os bombeiros e esse bando de vizinhos que não vêem esses capetinhas pulando meu muro e roubando minhas coisas?... De que lado eles estão?
Pensei comigo mesmo:
- Ah!... Não aceito. Vou é comprar um cão de guarda.
Comprei!...
Comprei um cachorro fila mestiço com buldogue e, para não ficar a vida inteira esperando o animal crescer, comprei um filhote já meio erado, de mais ou menos um ano e meio.
De tão grande e tão zangado, lembrava o Barrabás da Izabel Allende de Casa dos Espíritos. Depois de muita adulação, longas conversas e afagos arriscados, o cão foi lentamente nos aceitando e, finalmente, se tornou um de nós.
Territoriais como são os cães, o nosso tratou de demarcar o terreiro com grandes esguichos de urina nos troncos das árvores, no pé do muro, nas pedras e até nos buracos de formigas do quintal.
Depois disso vigiava o quintal noite e dia atacando violentamente qualquer coisa que tentasse pular o muro: gatos, gambás, ratos e, é claro, moleques encapetados e indesejáveis.
Com o tempo e cachorro cresceu mais e ficou mais bravo ainda. Quando estava zangado punha-se de pé nas patas traseiras e mostrava a carranca ameaçadora por cima do muro, assustando os transeuntes.
Não tardou muito e veio uma ordem judicial determinando que eu contivesse o animal, amordaçasse e colocasse placas avisando de sua periculosidade; ou abrandasse o seu gênio.
Não tive dúvidas. A solução era abrandar o gênio.
Após consultar vários entendidos, ficou estabelecido que castração seria a solução para o abrandamento do gênio do bicho.
Castração não me parecia difícil. Digo da execução. Faca amolada, alguém distraindo o cão, coragem, destreza e decisão; já que anatomicamente não parecia haver dificuldade alguma. O que devia ser extirpado estava bem à mostra e bastante acessível. Duas bolotas acondicionadas em uma pequena bolsa pendurada bem na parte de trás do cachorro. Como se estivesse ali para se exibir.
Preparei todo o meu material necessário para o ato médico: Uma tigela para receber a peça retirada, uma bacia com água limpa e morna conforme via nos filmes, compressas, sabão, álcool iodado, agulha e fio para sutura.
Tomei um trago duplo de cachaça para aumentar a coragem e passei a amolar bem uma grande faca de churrasco.
Amolava a faca pacientemente enquanto observava o cão que não tirava os olhos de mim. Ora me olhava com um olhar triste e incrédulo, ora com uns olhos arregalados de espanto.
Parece que ele desconfiou da maçada não só por ver aquela faca grande ser amolada com tanto esmero, como também porque alguém o havia ludibriado dando-lhe um osso enquanto outra pessoa foi por trás e deu um banho de água morna na peça visada para o ato cirúrgico e em suas adjacências. Depois passaram uma solução de iodo chamada povidine e, em seguida, vestiram-lhe uma espécie de fralda com uma abertura própria para deixar de fora a bolsa com as duas glândulas.
Desconfiado, ele se aproximou de mim e roçou seu corpanzil em meu joelho, primeiro o lado esquerdo, depois o direito, em seguida latiu duas ou três vezes como que querendo certificar-se de nossa amizade. Afastou-se então e foi postar-se a cerca de cinco ou seis metros de mim.
Em certo momento o cão começou a choramingar num ganido triste e secular, a uivar baixinho num uivo longo como a se despedir da vida; sentou-se sobre os testículos, cruzou as pernas traseiras e adotou, ao mesmo tempo, uma expressão de quem implorava piedade, mas deixando bem claro que lutaria até a morte para defender sua macheza.
Meu coração gostava daquele bicho.
Sua expressão, seu lamento triste, sua lealdade, a solidariedade própria de nós os machos; essas coisas todas foram minando-me em minha decisão até que, por fim, guardei a faca, afaguei a cabeça de meu cachorro e desisti de castrá-lo.
Ficamos ambos aliviados.
Mandei fazer uma grade interna a mais ou menos um metro do muro, em toda sua extensão para manter o Sultão longe dele. Não amordacei o cão, mas deixei mordaças à disposição de quem as quisesse colocar nele e esparramei placas do lado externo do muro, avisando:
Cuidado... Hulk no quintal. Só ataca quando zangado. Só se zanga quando alguém pula o muro para dentro. Uma vez zangado fica enorme e agressivo. Ninguém consegue contê-lo.
Nunca mais tive problemas com os pivetes, que não tendo como roubar e ter vida fácil devem ter procurado caminhos como estudo, disciplina, dedicação e trabalho e, por certo, arrumaram suas vidas e deixaram a minha em paz.
26.4.2009
Muito interessante sua história, e ainda bem que não cometeste essa maldade com seu cão! Curioso mesmo, fui assaltada á mão armada por tres viciados muito educados, que nos deixaram trancados no quarto de meu filho de 22 anos enquanto colocavam tudo no carro e o levaram, felizmente deixando meu filho a salvo. Nem um policial apareceu em meu portão... Mesmo registrando queixa e ligando imediatamente para a delegacia. Está fazendo um ano hoje! Mas agora já sei como proceder, caso aconteça com mais alguém: digo que atirei num dos bandidos e que ele está caído em meu quintal!
ResponderExcluirObrigado pelo seu comentário. É muito bom ser avaliado por quem gosta de Drummond e Exupéry.
ResponderExcluir`Dê uma olhada no post Diálogos possíveis - O Prego e o Martelo
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