Mustafa Akyol: Fé versus tradição no Islã

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No TEDxWarwick, o jornalista Mustafa Akyol fala sobre a forma com que algumas práticas culturais (como usar véu) se tornaram, na mente da po...

No TEDxWarwick, o jornalista Mustafa Akyol fala sobre a forma com que algumas práticas culturais (como usar véu) se tornaram, na mente da população, conectadas com os artigos da fé islâmica. Tem o mundo tido uma percepção da fé islâmica muito focada na tradição e não o suficiente nas suas crenças fundamentais?


E eu fiz isso; coloquei minha vestimenta ritualística e fui para a mesquita sagrada; fiz minhas preces; observei todos os rituais. Entretanto, apesar de toda a espiritualidade, havia um detalhe mundano na Kaaba que era muito interessante para mim. Não havia separação de sexos. Em outras palavras, homens e mulheres estavam adorando juntos. Eles estavam juntos enquanto faziam a tawaf, a volta circular ao redor da Kaaba. Eles estavam juntos enquanto rezavam.

E se você quer saber porque isso é interessante, você deve observar o restante da Arábia Saudita, pois esse é um país que é rigorosamente dividido entre os sexos. Em outras palavras, como um homem, você simplesmente não deveria estar em um mesmo espaço físico que uma mulher. E notei isso de uma forma muito engraçada. Saí da Kaaba para comer algo nos subúrbios de Meca. Dirigi-me para o Burger King mais próximo. Assim que entrei - notei que havia um setor para homens cuidadosamente separado daquele destinado às mulheres. Tive que pagar, pedir e comer no setor para homens, "Isso é engraçado", disse a mim mesmo:

Você pode se misturar com o sexo oposto na sagrada Kaaba, mas não em um Burger King.

Bastante irônico. Irônico e também - acredito - bastante revelador. Pois a Kaaba e os rituais ao seu redor são relíquias da primeira fase do Islã, aquela do profeta Maomé. E se naquela época havia uma grande ênfase em separar os homens das mulheres, os rituais ao redor da Kaaba deveriam ter sido desenvolvidos de acordo com isso. Mas aparentemente não havia nenhum problema desse tipo naquela época. Então os rituais se tornaram dessa maneira. Isso é também confirmado pelo fato de que o isolamento das mulheres visando criar uma sociedade dividida é também algo que você não encontra no Corão, o núcleo principal do Islã - a cerne do Islã, aquele que todos os Muçulmanos, inclusive eu, acreditam. Acredito que não é um acidente você não achar essa ideia nas origens do Islã. Pois muitos estudiosos que estudam a história do pensamento islâmico - estudiosos Muçulmanos ou Ocidentais - pensam que, na verdade, a prática de separar homens e mulheres fisicamente surgiu de um desenvolvimento tardio do Islã, quando os Muçulmanos adotaram algumas culturas e tradições pré-existentes no Oriente Médio. O isolamento de mulheres foi, na verdade, uma prática Bizantina e Persa, que os Muçulmanos adotaram e fizeram com que fosse parte de sua religião.

E isto é somente um exemplo de um fenômeno muito maior. O que chamamos hoje de Lei Islâmica, especialmente a cultura Islâmica - e há muitas culturas Islâmicas; aquela da Arábia Saudita é muito diferente daquela de onde eu vim, em Istambul ou na Turquia. Mas mesmo assim, se você vai falar sobre uma cultura Muçulmana, ela tem um núcleo, uma mensagem divina, que começou a religião, mas então várias tradições, percepções e práticas foram acopladas à ela. E estas eram tradições do Oriente Médio - tradições medievais.

Assim, existem duas mensagens importantes, ou duas lições, para tirar dessa realidade. Antes de tudo, Muçulmanos - Muçulmanos devotos, conservadores e escrupulosos, que desejassem ser leais à sua religião - não deveriam se agarrar a tudo na sua cultura, pensando que tudo isso é mandamento divino. Talvez algumas tradições sejam ruins e necessitem ser mudadas. Por outro lado, os Ocidentais que visualizam a cultura islâmica e enxergam alguns aspectos problemáticos não deveriam prontamente concluir que isso é o que o Islã determina. Talvez sejam aspectos da cultura do Oriente Médio que se tornaram confusos com o Islã.

Lá existe uma prática chamada de circuncisão feminina. É algo terrível, realmente horrível. É basicamente uma operação para privar as mulheres do prazer sexual. Ocidentais, Europeus ou Americanos, que nada sabiam a respeito disso anteriormente, viram essa prática inserida dentro de algumas comunidades Muçulmanas que migraram do norte da África. E pensaram, "Nossa, que religião terrível é essa que ordena algo desse tipo." Mas, na verdade, quando você analisa a circuncisão feminina, você observa que isto não tem nada a ver com o Islã, isto é somente uma prática do norte da África, que precede o Islã. Ela existia a milhares de anos. Vale a pena explicar, que alguns Muçulmanos de fato praticam isso. Os Muçulmanos do norte da África, não em outros lugares. Porém, também aqueles que não são Muçulmanos do norte da África - os Animistas, alguns Cristãos e mesmo algumas tribos Judias do norte da África são conhecidas pela prática feminina da circuncisão. Então, o que pode parecer um problema dentro da fé Islâmica pode vir a ser, na verdade, uma tradição à qual os Muçulmanos aderiram.

O mesmo pode ser dito para os crimes de honra, que é um tema recorrente na mídia Ocidental - o que é, na verdade, uma tradição horrível. E nós, de fato, vemos esta tradição em algumas comunidades Muçulmanas. Mas nas comunidades não Muçulmanas do Oriente Médio, como em algumas comunidades Cristãs ou mesmo comunidades Orientais, você vê a mesma prática. Nós tivemos um trágico caso de crime de honra dentro da comunidade armeniana na Turquia apenas alguns meses atrás.

Agora, essas coisas são sobre cultura geral, mas também estou bem interessado em cultura política e se a liberdade e democracia são apreciadas ou se há uma cultura política autoritária na qual estado deve impor coisas aos cidadãos. E não há nenhum segredo que muitos dos movimentos Islâmicos no Oriente Médio tendem a ser autoritários, e alguns dos assim chamados "Regimes Islâmicos" como a Arábia Saudita, Irã e o pior caso, o Talibãn no Afeganistão, são muito autoritários - sem dúvidas a respeito disso.

Por exemplo, na Arábia Saudita há um fenômeno chamado polícia religiosa. E esta polícia religiosa impõe o suposto modo de vida islâmico em cada cidadão, pela força - como as mulheres são forçadas a cobrir suas cabeças - vestir a hijab, a cobertura facial Islâmica. Isto é muito autoritário e é algo do qual eu sou muito crítico. Quando eu percebi que os não Muçulmanos, ou aqueles que não tem a mentalidade Islâmica, agiam similarmente em uma mesma região geográfica, percebi que o problema talvez esteja na política cultural da região como um todo, não somente do Islã. Deixe-me dar um exemplo: na Turquia, de onde eu vim, - que é uma república secular - até muito recentemente costumávamos ter o que chamo de polícia do secularismo, a qual vigiava as universidades contra estudantes que estavam com a cabeça coberta. Em outras palavras, eles forçavam os estudantes a descobrirem suas cabeças. Assim, acredito que forçar as pessoas a descobrirem as suas cabeças é uma atitude tão tirânica quanto forçá-las a cobrir. Esta é uma decisão que cabe ao cidadão.

Porém quando vi isto, eu disse:

Talvez o problema seja somente uma cultura autoritária da região, e alguns Muçulmanos foram influenciados por ela.

Mas a mentalidade secular das pessoas pode ser influenciada por isso. Talvez este seja um problema da política cultural e nós temos que pensar a respeito de como mudar essa política cultural. Estas são algumas questões que tinha em minha cabeça alguns anos atrás quanto sentei para escrever um livro. Eu disse, "Bem, eu farei uma pesquisa sobre como o Islã veio a se transformar no que ele é hoje, quais caminhos foram seguidos e quais caminhos poderiam ser seguidos." O nome do livro é "Islã sem extremos: O caso Muçulmano pela liberdade." E como o subtítulo sugere, eu examinei a tradição islâmica e a história do pensamento islâmico a partir da perspectiva da liberdade individual, e tentei encontrar quais são as forças que dizem respeito à liberdade individual.

E existem pontos fortes na tradição Islâmica, o Islã, na verdade, enquanto uma religião monoteísta, a qual define o homem como um agente responsável por ele mesmo, criou a ideia do indivíduo no Oriente Médio e o salvou do comunitarismo, o coletivismo da tribo. Você pode derivar muitas ideias a partir disto. Mas além disso, também vejo problemas dentro da tradição Islâmica. Porém, uma coisa foi curiosa: muitos destes problemas foram problemas que emergiram depois, não do mais divino núcleo do Islã, o Corão, mas de, mais uma vez, tradições e mentalidades, ou interpretações do Corão feitas pelos Muçulmanos durante a Idade Média. O Corão, por exemplo, não tolera apedrejamento. Não há punição por apostasia. Não há punição em coisas pessoais como bebidas. Estas coisas que compõem a Lei Islâmica, os aspectos preocupantes da Lei Islâmica, foram desenvolvidos posteriormente em interpretações do Islã. O que significa que os Muçulmanos podem, hoje, enxergar essas coisas e dizer, "Bem, o núcleo de nossa religião está aqui para ficar conosco. É a nossa fé e seremos leais a isso." Mas podemos mudar como isto foi interpretado, pois foi interpretado de acordo com a época e o meio social da Idade Média. Hoje vivemos em um mundo diferente, com valores diferentes e diferentes sistemas políticos. Esta intepretação é muito possível e factível.

Agora, se eu fosse a única pessoa que pensasse desta forma, estaríamos em grande dificuldade. Mas este não é o caso. Na verdade, desde o século XIX, há uma grande tradição de revisionistas, reformistas - ou como queira chamar - uma tendência do pensamento Islâmico. E estes eram intelectuais ou estadistas do século XIX e, mais tarde, do século XX, que analisaram basicamente a Europa e viram que a Europa tem muitas coisas para se admirar, como a ciência e tecnologia. Mas não só isso; também a democracia, o parlamento, a ideia de representação, a ideia de cidadania igual. Estes pensadores Muçulmanos, intelectuais e estadistas do século XIX, analisaram a Europa e viram estas coisas. E disseram, "Porque não temos isto?" Assim, olharam para trás na tradição Islâmica e viram que havia alguns aspectos problemáticos, mas que esses aspectos não eram o núcleo da religião, então talvez eles pudessem reinterpretar e o Corão poderia ser relido agora no mundo moderno.

Esta tendência é comumente chamada de modernismo Islâmico, e foi adiantada por intelectuais e estadistas, embora não apenas como uma ideia intelectual, mas também como um programa político. E este é o porquê de, na verdade, durante o século XIX o Império Otomano, que em seguida englobou totalmente o Oriente Médio, ter feito importantes reformas - reformas como dar aos Cristãos e Judeus um status igual de cidadania, aceitar uma constituição, aceitar um parlamento representativo, e avançar na ideia de liberdade de religião. E este é o porquê do Império Otomano nas suas últimas décadas ter se transformado em uma pseudo-democracia, uma monarquia constitucional. A liberdade era um valor político muito importante naquela época.

De maneira similar, no mundo Árabe, existe algo que o grande historiador árabe Albert Hourani define como Era Liberal. Ele escreveu um livro, "Pensamento Árabe sobre a Era Liberal." Ele define a Era Liberal como o século XIX e o início do século XX. De maneira muito especial, esta era a tendência dominante nos início do século XX entre os pensadores Islâmicos, estadistas e teólogos. Mas há um padrão muito curioso no restante do século XX, pois vemos um drástico declínio na linha do pensamento Islâmico moderno. E no lugar deste pensamento, o que de fato acontece é que o Islamismo cresce como uma ideologia autoritária, que é muito discordante, antiocidental, e que quer moldar a sociedade baseada em uma visão utópica.

Dessa forma, o Islamismo é a ideia problemática que de fato criou muitos problemas no mundo Islâmico durante o século XX. E mesmo aquelas formas mais extremas do Islamismo levaram ao terrorismo em nome do Islã - que é, na verdade, uma prática que eu acredito ser contra o Islã, mas alguns extremistas obviamente não pensam dessa forma. Mas há uma questão curiosa: Se o modernismo Islâmico foi tão popular durante o século XIX e o início do século XX, por que o Islamismo se tornou tão popular no restante do século XX? E este é um questionamento que, na minha opinião, precisa ser discutido cuidadosamente. E no meu livro analisei profundamente esta questão. Na verdade, você não precisa ser um cientista espacial para entender isto. Você só precisa olhar para a história política do século XX, e ver que as coisas mudaram consideravelmente. O contexto mudou.

No século XIX, quando os Muçulmanos estavam encarando a Europa como um exemplo, eles eram independentes, eles eram mais confiantes em si mesmo. No começo do século XX, com o final do Império Otomano, todo o Oriente Médio foi colonizado. E quando há colonização você tem anti-colonização. Dessa forma, a Europa não era mais um exemplo a ser seguido; era um inimigo para se combater e resistir. Então há um agudo declínio nas ideias liberais no mundo Muçulmano, e o que você vê é mais uma ação defensiva, rígida e reacionária, que levou ao socialismo Árabe, ao nacionalismo Árabe e por fim à ideologia Islâmica. Assim, quando o período colonial foi finalizado, o que você tinha no lugar disto eram, normalmente, ditadores seculares, que diziam ser países, mas que não traziam democracia para o país e estabeleciam o seu próprio regime ditatorial. Acredito que o Ocidente, pelo menos alguns poderes no Ocidente, particularmente os Estados Unidos, cometeram o erro de apoiar esses ditadores seculares, acreditando que eles eram mais úteis aos seus interesses. Porém, o fato de que esses ditadores suprimiam a democracia nos seus países e suprimiam grupos Islâmicos nos seus países, na verdade, fizeram os Islâmicos muito mais radicais.

Então durante século XX, havia um ciclo vicioso no mundo Árabe, onde você tinha um ditador suprimindo o seu próprio povo, incluindo os devotos do Islamismo, e o povo reagindo de maneira reacionária. Houve um país, no entanto, que foi capaz de escapar e se manter longe deste ciclo vicioso. E este é o país de onde eu venho, a Turquia. A Turquia nunca foi colonizada, se manteve como uma nação independente após a queda do Império Otomano. Esta é uma coisa a ser lembrada. A Turquia não compartilhava do mesmo clamor anti-colonial que você encontrava em outros países da região. Em segundo lugar - e mais importante - a Turquia se tornou uma democracia antes de qualquer país dos quais estamos falando. Em 1950, a Turquia teve a sua primeira eleição livre e justa, que finalizou o regime secular mais autoritário, o que foi o começo da Turquia. Assim, os devotos Muçulmanos na Turquia viram que eles poderiam mudar o sistema político através do voto. Dessa maneira, viram que a democracia é algo compatível com o Islã, compatível com seus valores, e apoiaram a democracia. Esta é uma experiência que nenhuma outra nação Muçulmana no Oriente Médio teve até muito recentemente.

Nas duas últimas décadas, graças à globalização, graças à economia de mercado, graças à ascensão da classe média, vemos na Turquia o que eu defino como o renascimento do modernismo Islâmico. Lá existe a classe média urbana de devotos Muçulmanos que, mais uma vez, enxerga as suas tradições e vê que existem alguns problemas com as suas próprias tradições. Eles entendem que precisam mudar, questionar e reformar. Assim, olharam para a Europa, e viram, mais uma vez, um exemplo a ser seguido. Veem um exemplo no qual, pelo menos, se inspirarem. Este é o porquê do processo na UE, o esforço da Turquia em fazer parte da UE tem sido apoiado dentro da Turquia pelos religiosos Islâmicos, enquanto que alguns países seculares foram contrários a isso. Bem, este processo tem sido um pouco desfocado pelo fato de nem todos europeus serem acolhedores da ideia - mas essa é uma outra discussão. Mas aquele sentimento a favor da UE na Turquia durante a última década se tornou quase uma causa Islâmica, apoiada pelos liberais Islâmicos, assim como pelos antigos liberais, é claro.

E graças a isso, a Turquia tem sido capaz de criar uma história de sucesso de maneira racional, na qual o Islã e as interpretações mais religiosas do Islã tem feito parte de um jogo democrático, que contribui tanto para o avanço da democracia e da economia quanto do próprio país. E este tem sido um exemplo inspirador para alguns movimentos Islâmicos e para alguns países do mundo árabe.

Você deve ter ouvido falar da Primavera Árabe, que começou da Tunísia e no Egito. As massas Árabes recém revoltadas contra seus ditadores. Eles clamavam por democracia; clamavam por liberdade. E eles não vieram a ser as marionetes Islâmicas que os ditadores costumavam utilizar para justificarem o seu regime. Eles disseram "nós queremos liberdade, nós queremos democracia. Nós somos Muçulmanos, mas queremos viver como pessoas livres em sociedades livres." Claro que esta é uma longa jornada. Democracia não é uma conquista que se faz do dia para a noite; É um processo. Mas esta é uma era promissora no mundo Muçulmano.

Acredito que o modernismo Islâmico que começou no século XIX, e que deve um retrocesso no século XX por causa de problemas políticos no mundo Islâmico, está renascendo. E acredito que a mensagem disso é que o Islã, apesar de alguns céticos do Ocidente, tem o potencial em si mesmo de criar o seu próprio caminho na democracia, criar o seu próprio caminho para o liberalismo, criar o seu próprio caminho para a liberdade. Eles só precisam ter a permissão de trabalhar por isso.

Muito obrigado.

(Aplausos)

Fonte: Faith versus tradition in Islam
[Via BBA]

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Brasil Acadêmico: Mustafa Akyol: Fé versus tradição no Islã
Mustafa Akyol: Fé versus tradição no Islã
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Brasil Acadêmico
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